A SEITA
 
 
         Branderburg é uma cidade de colonização alemã na região serrana, tem  pouco mais  de cinco mil habitante, dos quais metade deles não fala português, mas sim um alemão singular.
         Fica em uma encosta de pedras, a sua única saída por terra é a ponte, que os habitantes chamam de “ponte do Cavalo”, uma estrutura feita de madeira que ligava a cidade ao asfalto que levava à capital.
         Quando conheci Adriana era um viúvo amargurado, com duas filhas gêmeas, uma delas com síndrome de Down, a perda subida da esposa retirou tudo que eu tinha.
         Trabalhava como oftalmologista chefe do hospital central tinha uma carreira acadêmica, tudo foi perdido quando a única pessoa que me dava uma sustentação real amanheceu com uma dor estranha na mama, e uma vermelhidão no bico do seio direito, um ano depois estava morta.
         “Casa de ferreiro espeto de pau” é assim que diz o ditado. Surpreendido pela morte do amor da vida. Louco eu me agarrei no trabalho com força e abandonei minhas filhas, uma delas quase morreu de meningite. Culpado, resolvi que era tempo de mudar.
         Quando conheci Adriana em um espaço onde as crianças ficam para brincar, uma mulher linda e de sorriso fácil, perguntou pela mãe das crianças, expliquei a situação e ela disse que sentia muito.
         A amizade foi crescendo e começamos a namorar, Michele a minha filha com Síndrome de Down não gostava de Adriana, Aline, que se deliciava com as brincadeiras, gostava muito.
         Aos poucos fui ficando com pena de Adriana que fazia de tudo para agradar Michele, resolvi que filhos tem que aceitar certas coisas, em uma conversa com Michele disse que Adriana faria parte da nossa família, ela gritou disse que não aceitaria, procurei sublimar esse conflito.
         Casei-me com ela dois anos depois, Michele ficou de cama, fui até o quarto dela e perguntei.
         -Meu bem, o que você tem contra Adriana? – disse passando a mão nos cabelos dela, muito parecidos com os de sua mãe.
         -Ela é muito má papai, tem um monstro que anda com ela – disse chorando – a mamãe me disse para dizer para você não falar com ela.
         O neurologista disse que é comum esse comportamento após a perda da mãe em qualquer criança, até as crianças especiais como Michele.
         Todos viam a diferença em Michele, eu não, achava inteligente, esforçada nos estudos e com um coração de tremenda bondade, mas ela não se adaptava a minha nova esposa.
 
Branderburg
 
      A chegada com o caminhão de mudanças não abalou o pequeno vilarejo, segundo me avisou Adriana, os moradores eram pessoas isoladas que praticavam uma religião maniqueísta, usando roupas típicas, metade não falava português e a outra metade tem uma cultura “a baixo de zero”.
         A ponte, feita de madeira, era frágil, parecia possuir vários remendos, o calor estava terrível, e a saída da civilização estava começando a não parecer atrativa, não havia asfalto, quando saímos da ponte, um homem de chapéu e uma bata, que só havia visto igual nos padres que rezavam missa na minha infância.
         -O senhor esteja convosco. – disse o homem, que segundo Adriana era o diretor espiritual do local, seu nome Nazareno Batista, bem sugestivo  para um homem religioso
         Adriana disse baixinho no meu ouvido.
         -É o Nazareno – ela sorriu – ele veio pessoalmente receber você.
         Michele começou a gritar, ela estava muito nervosa, já tinha escutado rumores sobre esses ataques histéricos, mas aquilo foi desconcertante, o velho Nazareno caiu em choro e começou uma  nova oração, Adriana tinha uma fisionomia de desprezo que nunca tinha visto antes, Michele gritava sem parar, então o velho Nazareno e os outros entraram na farmácia. Michele parou de gritar instantaneamente, isso nunca aconteceu com ela, Michele já tinha completado sete anos durante todo esse tempo foi uma menina calma e amorosa.
 
NAZARENO E A SUA  COMUNIDADE CRISTÃ.
         Fui até a igreja conversar com o senhor Filipe Branderburg, pedi desculpas, ele muito simpático disse ter entendido.
         -Minha filha tem síndrome de Down, na maioria das vezes ela é muito tranquila – disse apertando a mão dele.
         -Nunca tinha visto um – disse olhando com aqueles olhos pequenos e o cabelo grisalho colado na cabeça.
         -Um o que? – disse retirando a mão.
         -Um espécime, eles são sensitivos, cuidado com o mal que existe nessa cidade, ela pode ficar susceptível ao demônio, nunca se sabe? – disse ele rindo e aparecendo um único dente.
         -Síndrome de Down é uma trissomia do cromossoma 23, se quiser pesquise na internet, não existe nada de bizarro na minha filha. – estava aborrecido, já havia sofrido preconceito antes com uma das minhas gêmeas, mas aquilo era ridículo.
         Decidi que deixaria tudo naquela cidade de loucos,  voltaria para Vitória, ou passaria uma temporada em BH, tudo estava muito louco, deixaria Adriana um pouco, minhas filhas estavam confusas, e a situação de Michele era pior, não podia expor a menina que tenho que proteger pelo resto da minha vida.
 
ADRIANA
 
         -Como acha que o povo da cidade vai me tratar quando partir? – disse colocando o indicador na minha cara.
         -Adriana é só um tempo – disse, mas era mentira, as coisas foram boas no começo, agora estavam fora de controle.
         - Me leve de volta para BH – disse Adriana – aqui eu não posso ficar.
 
A PEÇA DO CARRO
         A verdade é que os vinte dias que a minha família passou naquele lugar foi um transtorno, eu estava esperando trocarem uma peça do meu carro, as pessoas não falavam comigo nem com Adriana, que chorava noite e dia.
         O Nazareno passava em frente ao hotel e jogava praga e chamava a minha filha Michele de demônio, minha preocupação era que o tempo estava mudando e Aline tinha asma, meu arsenal de medicações era pequeno e tinha sido proibido de entrar no hospital.
         Vi um homem, que Adriana disse ser o prefeito, apontar para a janela do hotel e mandou me chamar.
         Nazareno entrou pela porta da sala de chapéu na mão.
         -O prefeito Jacó quer lhe ver – disse olhando para minha filha Michele com ódio.
         -Não tenho nada a falar. Estou de partida.
         -Não vai poder partir, são cento e cinquenta quilômetros de estrada de chão, e vai chover muito.
         -Vou ariscar.
         -A filha dele está com tosse que não para, pode ajudar ou não? – os olhos do nazareno estavam vermelhos de ódio.
 
FILHA DO PREFEITO
         Era coqueluche, talvez Aline não estivesse com crise de asma, talvez ela fosse a ser portadora da coqueluche, aqueles meninos sem vacinação ficaram susceptíveis, um povo daqueles nunca usaria a vacinação como opção.
         Uma mulher de branco, magra, com rugas grossas, bochecha carcomida pelo tempo, tinha no jaleco o nome enfermeira Valéria.
         -Muito bem Valéria, temos Eritromicina?
         -Não, não usamos antibióticos nesta cidade.
         Dei uma olhada nas minhas amostras grátis, duas caixas de Eritromicina, a filha do prefeito estava salva.
Havia feito como no começo do século, quando a invenção da penicilina salvou muitas pessoas.
 
 
A BRONCA EM NAZARENO E O PEDIDO PARA FICAR.
 
         -Muito grato – disse o prefeito, um homem simples e olhar vivo, usava um chapéu de palha, sua roupa era suja de terra.
         -Só fiz a minha obrigação – disse apertando a mão do homem.
         -Precisamos de um doutor aqui, isso foi mágica, e ouvi falar que pelo menos mais três crianças foram salvas pelo seu remédio.
         -A cidade deve ser imunizada, a religião de vocês  eu acho que proíbe...
         O prefeito olhou sério para o canto da parede e disse.
         -OH! Lázaro, traz aquele capeta do Nazareno aqui, fica com coisa de religião e quase que a minha filha morre, atraso doutor, essa cidade é muito atrasada, culpa desse Nazareno.
         O homem chegou de chapéu na mão, seus olhos estavam vermelhos, havia sangue nos joelhos e nas costas.
         -Você estava se martirizando – disse o prefeito.
         -Um pecador tem que pagar, os adoradores de Satanás pagaram, pois os guerreiros de Cristo estão aqui – disse o Nazareno.
         -Quero te dizer que de agora  em diante, quem quiser fazer o que bem entender com a sua religião vai fazer sozinho, o resto da cidade quero fora dessa coisa de pastor, caso contrário perde o emprego, você e sua mulher.
         Uma lágrima desceu do canto do olho esquerdo de Nazareno.
         -Sim senhor meu patrão. Cuidado com os adoradores do mal, eles usam a cruz invertida.
 
A CONVERSA DAS GÊMEAS
 
         Estava na varanda do quarto e escutei as minhas duas filhas gêmeas conversando.
         -Você disse que tem um homem de chifres atrás dele – perguntou Aline.
         -Bem feio – disse Michele – e mamãe disse que já era para ter ido embora.
         -Você vê a mamãe, por que eu não vejo?
         -Sei lá, a maioria das vezes vejo ela do seu lado. – disse Michele.
        
FOGO
 
         Grande labareda de fogo se ergue na cidade, fui até a janela e fiquei surpreso com a aglomeração na rua, no meio do povo Nazareno, ele olhou para a janela onde eu estava.
         Nazareno levantou as duas mãos para que eu pudesse ver, de um lado ele segurava a cabeça do prefeito do outro a da filha do prefeito de apenas sete meses.
         -Quem manda na cidade é Deus – disse Nazareno – e pecador tem que pagar.
         Michele estava do meu lado, ela apontou para esquerda de Nazareno e disse.
         -O monstro anda do lado dele, tem chifres e olhos de fogo.
         -O que vamos fazer papai? – perguntou Aline.
         -A mamãe vai guiar a gente para fora – disse Michele mostrando o caminho da porta.
 
         O TÚNEL
         -Você tem certeza que é por aqui Michele? – perguntei andando pela trilha escura, parou em frente a uma abertura no chão.
         O local parecia abandonado, Michele apontava para a abertura, estava lacrada, havíamos deixado Adriana para trás, confiando apenas na intuição de Michele.
         Peguei uma barra de ferro e levantei a tampa de aço, cortei o dedo com isso, ouvi o trovão, a tempestade estava chegando, teríamos que correr.
         Desci a primeira, Aline, depois Michele, por último eu mesmo pulei, o local era feio e fedia a podre, Aline começou a sentir falta de ar e pedi que usasse a bombinha.
         Michele guiava o grupo, começou a chover torrencialmente, ouvia a chuva cair enquanto andávamos pelo túnel, comecei a sentir água nos meus pés, pelo jeito o túnel seria inundado logo.
         Aline parou, estava com muita dificuldade de respirar, peguei na minha mochila a seringa com adrenalina, fiz um quarto da ampola subcutâneo, ela melhorou.
         Michele estava em transe, andava depressa, até que virou e gritou.
         -Pare aqui. – disse com uma voz que não parecia sua.
         -O que está acontecendo, logo esse túnel será inundado – disse olhando para Michele.
         Michele deu uma gargalhada.
         -Quem está ai – disse desesperado – quem está no corpo de minha filha.
         -Pensou que podia fugir de mim – disse a voz – esse é o meu santuário, daqui não tem saída.
         -Por favor, poupe as crianças – disse desesperado.
         Uma mão segurou o meu ombro, girei a cabeça para ver, a surpresa quase me derrubou, era Nazareno.
         -O mal está em sua filha – disse o homem de roupa sacerdotal, com um chapéu preto.
         -Você é responsável por isso? Você matou o prefeito e a filha dele? – disse desesperado.
         Adriana veio correndo, passou na frente de Nazareno e falou.
         -Como você é preconceituoso Roberto, Nazareno é um homem de Deus, quem matou o prefeito foi o profeta Túlio, um louco que cultuava a cruz invertida do satanista, provavelmente foi influenciado pelo demônio que está na sua filha.
         Olhei para trás para ver Michele, estava confuso, ele não estava mais lá e tinha levado Aline, quase sem ar. Agora só escutava a gargalhada do demônio.
 
SALVAÇÃO E MORTE.
         Nazareno dobrou o joelho e começou a rezar, a coisa em minha filha apareceu, seu ódio por Nazareno era tanto que jogou Aline desacordada e pulou em Nazareno para morder a face.
         O homem segurou minha filha pelo braço e derramou um líquido na sua face, parecia água, mas queimou como acido, tentei intervir, mas Adriana me segurou.
         -É água benta.
         Quando ele acabou de fazer a oração um vulto preto saiu de Michele, mas olhei para ela estava desacordada, parecia morta, coloquei a mão na carótida, estava viva.
         Olhei para o Nazareno e disse.
         -Obrigado.
         Ele balançou a cabeça, depois Adriana me abraçou, o túnel estava quase cheio de água.
         -Temos que sair daqui – disse Adriana – as tempestades aqui são fortes.
 
EPILOGO
         -O que aconteceu? – perguntei para Adriana, minhas filhas estavam dormindo no carro, banco de tras sedadas – tinha certeza que ele que havia assassinado o prefeito e a filha.
         -Não, ele seria incapaz, é um homem de Deus.
         -Ele ergueu a cabeça deles.
         Adriana olhou no espelho, viu se a maquiagem estava boa.
         -Existe uma suspeita da existência de uma seita satânica na cidade, ele quis mostrar como as pessoas dessa seita acabam, o prefeito pertencia a seita, era a conversa que rondava a cidade.
         -Parecia sinistro levantando a cabeça dos dois.
         Um cachorro passou em frente ao carro, dei uma freada brusca, a bolsa de Adriana caiu no chão, à primeira coisa que vi foi à cruz invertida.
         
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 05/12/2012
Reeditado em 23/04/2013
Código do texto: T4021573
Classificação de conteúdo: seguro
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