Amor de Verdade

Um casal brigava energicamente, em frente ao motel de beira de estrada.

– Eu te odeio! – esbravejou Gabrielle.

– Você é louca! – retrucou Carlos.

– Por quê? Por que me trocou por essa vadia? – ela berrou, com lágrimas se formando nos olhos.

– Ah, quer saber?! Dane-se você, acabou. – disse o rapaz, virando-lhe as costas.

Gabrielle segurou-o pelo braço, tomada por sentimentos ambíguos. Ela desejava açoitar o namorado com as mais duras palavras, porém, a ideia de perdê-lo apertava-lhe o coração. Carlos, impaciente, jogou para longe a mão da garota – que a essa altura, ocupava o lugar de “ex-namorada”. Levando as mãos ao rosto, Gabrielle tentava amenizar o pranto, saído dos olhos já inchados de tristeza.

Ela sentia a terrível amargura de ter anos e planos jogados em uma vala de esgoto. E as promessas de viajarem pelo país afora, escutando rock no opala preto? De estarem sempre juntos, não importa o que houvesse? Até mesmo planejaram ter uma filha – de nome Sofia – a qual seria educada à base de Black Sabbath e Led Zeppelin. Quem agora lhe chamaria de “Gabilinda”, afagaria seus cabelos loiros e beijaria a ponta de seu nariz? Tudo se dissipava como fumaça. O futuro escorria como areia pelos dedos.

Carlos, por sua vez, parecia não se importar tanto. Sempre fora um “bad boy”, autossuficiente e pavio curto. Seus longos cabelos castanhos expressavam o gosto pela liberdade e rebeldia. Sem olhar para trás, foi até o carro com a amante e levou um cigarro à boca. De fato, era encantado por Gabrielle – ele adorava aquele sorriso tímido, quando ela colocava os cabelos atrás da orelha e dizia que o amava. Porém, Carlos seguia religiosamente seu melhor provérbio: “A vida é muito curta pra comer uma mulher só!”.

Ele rumava para o bar de motoqueiros, onde sinucas, outras mulheres suculentas e bebidas esperavam-no. Já Gabrielle, ainda estática no mesmo lugar, amargurava as intempéries da desilusão. A dor dilacerava seu interior, quase lhe colocando de joelhos. Ela resolveu seguir o lado contrário de Carlos, andando a pé pela estrada escura, seguindo sabe-se lá para onde, minutos a fio.

Solitária e com fome, ouviu a própria barriga roncar, pois não se alimentava direito há dias, desde que suspeitara da traição. Aspirando a secreção do nariz e enxugando as últimas lágrimas, Gabrielle resolveu entrar em uma estranha lanchonete, anexada a um posto de gasolina, cujos letreiros falhavam de modo negligente.

Ao abrir as portas, a garota deparou-se com um muquifo – chão de madeira velha, cheiro de gordura no ar, lixeiras abarrotadas, má iluminação, nenhuma alma viva além de uma mulher gorda e nada simpática. Gabrielle sentou-se à mesa, apoiou os cotovelos e cobriu o rosto com as mãos.

– O que vai querer? – indagou a garçonete, que mais parecia resmungar.

Gabrielle, que juntava energias para poder responder, foi apressada pela funcionária que insistia:

– Vamos garota, o que vai querer? – disse, batendo os pés nos chão.

-… Um hambúrguer.

De imediato, a ignorante garçonete deu-lhe as costas. Por alguns minutos, Gabrielle remoeu os fatos recentes, até sentir uma estranha sensação: a de estar sendo observada. Ela ergueu a visão e mirou um sujeito que antes não tinha percebido – na verdade, ela jurava não ter visto ninguém. Era um homem atraente, na casa de seus trinta e poucos anos; trajava um blazer e uma gravata solta; seus olhos faiscavam penetrantes, e pareciam possuir brilho próprio naquele canto escuro. Ele aproximou-se devagar. Gabrielle, quase em transe, apenas o acompanhava com o olhar. O sujeito sentou-se à mesa, encarando-a profundamente.

– Está tudo bem? Percebi que algo muito errado está te perturbando.

– E-Eu… – Gabrielle balbuciou, estranhando a situação.

– Não tenha medo. Sei que parece loucura desabafar com um completo estranho, mas, talvez, seja isso justamente o que você precisa.

Gabrielle sentiu uma inexplicável confiança. Aquele sedutor misterioso parecia penetrar em seu crânio e acalentar-lhe o coração. Ela fervilhava em um misto de atração e grande respeito, então, respirou fundo e revelou as angústias, enquanto o homem acariciava-lhe a face.

– Eu entendo querida. O amor é assim! Ele me queima, sabia? Machuca… mas é uma dor prazerosa. Sofrer, às vezes, é delicioso.

Gabrielle silenciou-se, confusa com as palavras que acabara de escutar.

– Venha comigo! — disse o sujeito, animado.

– Ma-mas meu hambur… – ela cessou a fala ao ser puxada pelo homem.

Surpresa, Gabrielle não resistiu e aceitou ser guiada, por mais que a razão alertasse sua imprudência. De mãos dadas, foram andando em meio à estrada, compartilhando uma felicidade sem motivo. Andaram por minutos, até chegarem ao conhecido bar de motoqueiros. A loira sentiu uma fisgada gelada na barriga — o opala de Carlos estava estacionado. Ela hesitou os passos, sentindo o coração acelerar:

– Por que estamos aqui? Eu não quero entrar! – protestou.

O homem tocou-lhe o queixo e desferiu um olhar flamejante. Uma sensual ausência de palavras sucedeu-se, e apesar da respiração ofegante, Gabrielle não relutou quando os lábios do sujeito aproximaram-se. Teve inicio um longo e demorado beijo, com as línguas entrelaçadas, apurando o sabor uma da outra. A garota, mesmo com o separar das bocas, permaneceu de olhos fechados, pois nunca recebera um beijo tão bom.

– Estamos aqui por que eu quero. – enfatizou o sujeito, nutrindo um sorriso.

Enfim, entraram no bar e Gabrielle consentiu, sequer titubeou. Passaram pela amante, por bêbados, garotas seminuas e som de heavy metal, até chegarem ao banheiro, onde o sujeito parou diante da porta.

– Prepare-se, meu amor. Isso vai ser uma loucura… – ele cochichou.

E para surpresa de Gabrielle, o homem chutou a porta tão fortemente que a despedaçou. Dentro do banheiro, Carlos urinava e tremeu-se inteiro. Gabrielle abafou o grito assustado com as mãos, sem entender uma gota do mar incompreensível que ainda estava por vir. O sujeito apanhou Carlos pelo pescoço, com uma força descomunal que lhe tirou os pés do chão.

O rapaz debatia-se como um peixe, exibindo uma cabeça vermelha que parecia prestes a explodir. Voltando a si, Gabrielle tentou ajudar Carlos, segurando inutilmente o braço do homem. De súbito, jogou-se para trás, impulsionada pelo medo. A face do sujeito, antes com traços tão lindos, tornou-se uma coisa horrenda.

As pupilas tomaram formato horizontal como as dos polvos. Exibia também um sorriso macabro com uma bocarra cheia de dentes pontiagudos. Com uma enorme língua, que mais parecia um tentáculo, lambeu o rosto do rapaz e riu insanamente. A monstruosa criatura esticou os dedos – que agora eram garras – e perfurou a barriga de Carlos, puxando as entranhas.

Gabrielle esbugalhou os olhos, fitando aquele emaranhado de carne que parecia uma grande cobra pálida saindo do namorado. O rapaz teve o pescoço mastigado e um banho de sangue ocorreu naquele cubículo. A última coisa que a garota viu, antes de desmaiar, foi o olhar desesperado de Carlos em um último suspiro.

***

Gabrielle acordou assustada na própria cama, contraindo o corpo em um grito. Foi amparada por Carlos, que a abraçou amorosamente.

– Finalmente você acordou meu amor! – disse o rapaz.

– Carlos?! – Gabrielle berrou descrente, tocando no rosto do namorado, conferindo se estava tudo realmente bem.

– Encontrei você desmaiada, perto do bar dos motoqueiros. Eu estava lá e quando ia saindo, te vi. Céus, eu fiquei maluco! O que houve?

– E-Eu, eu não sei… Eu… oh, meu deus, eu te amo! – choramingou Gabrielle, aliviada por tudo estar normal.

Após horas de conversas e carícias, Gabrielle pôs-se a pensar. Tudo não passara de uma grande alucinação? Parecia tão real! No dia seguinte, procurou a lanchonete e sua estúpida funcionária, mas ela não avistara nenhum “homem de blazer” durante a noite anterior. Gabrielle foi ao bar dos motoqueiros, mas ninguém viu coisa alguma.

Enfim, os dias se passaram e o casal se entendeu. Carlos estava mais amoroso, atencioso, prestativo e seus beijos tornaram-se incríveis. Cinemas, parques, teatros, praias, shows, flores e chocolates – o casal estava em núpcias permanentes. Muitos meses se passaram, desabrochando uma felicidade ímpar. Em uma noite ardente, Gabrielle repousava no peitoral de Carlos:

– Em pensar que todo aquele sofrimento iria acabar assim… Eu te amo demais, Carlos! – confessou a garota, ruborizada.

– Eu entendo querida. O amor é assim! Ele me queima, sabia? Machuca… Mas é uma dor prazerosa. Sofrer, às vezes, é delicioso.

Gabrielle já tinha ouvido tais palavras em algum lugar, mas logo esqueceu, pois não tinha importância. O que realmente importava é que ela vivia um incrível amor. “Que seja eterno enquanto dure”, ela pensou. Carlos, por sua vez, sorriu de um jeito incomum…

RRodriguez
Enviado por RRodriguez em 06/12/2012
Reeditado em 26/11/2015
Código do texto: T4022353
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