Bonecas de Porcelana

Esse museu que se renova a cada dia. Não é possível saber quantos já cruzaram esses corredores, restando apenas essas figuras imóveis, passivas diante de olhares curiosos e medíocres. Minha sombra desaparece, não por falta de luz, mas por algum motivo que eu desconheça. Nem escuto os passos desses pés que calçam sapatos com sola de madeira. Quase pareço um fantasma, deslizando por esse ambiente quieto. Só meu pensamento, consigo ouvir, ecoando em minha mente, como se fosse um sino que insiste em me perturbar. Se não tivesse deixado o maço de cigarros dentro do carro, poderia dar umas baforadas, causando nuvens nessa noite artificial. Somente suspiro. E por estar calor, nem produzo aquela névoa de hálito quente confrontando clima frio.

Poderia existir pelo menos um quadro da Mona Lisa. Sempre me pareceu que Da Vinci quis esconder o jogo, já que aquela Gioconda possui olhar de malícia, o recato das roupas, encobre um corpo lascivo. Imagino o tamanho daqueles peitos, se na época havia esses enchimentos de agora, bem como a vasta penugem entre as pernas, pois não se tinha o critério da depilação dos higienistas. Chega de divaga r a respeito dessa criatura fóssil. Pretendo invadir aquele salão privado, de onde nunca se viu alguém sair ou entrar, a não ser que alguém tenha entrado e nunca saído. Nesse caso, serei o segundo a penetrar neste recinto. Com certeza, antes de lacrarem o lugar, alguém o adentrou, nem que seja através do simples olhar.

Curioso, como não percebo nenhuma vigilância. Nem uma câmera ou guarda noturno. Finalmente, após as galerias de arte moderna, que pra mim não passam de angústia de um mundo com imaginação aniquilada, cheguei ao destino. Uma porta apenas. Forço sem resultado. Utilizo objetos, como grampos, para tentar destravar a tranca. Sou um incompetente arrombador. Já havia percorrido os andares em busca de algum molho de chaves, mas nenhuma servia naquela porta. Já conhecia cada sala, sabendo qual chave abria cada uma delas. Desanimado, encostei na porta, que se abriu com o peso de meu corpo, me fazendo cair dentro do lugar secreto, com uma batida sutil que fez a tranca fechar a sala.

Dentro do ambiente, o teto de vidro, fazia a luminosidade que a lua refletia, penetrar. Distingui uns enormes castiçais, bem como duas poltronas de tecido que faze as nádegas de uma bunda sedentária, relaxarem a ponto de adquiri escaras. Não quis me render a sedução do assento. Mesmo porque, havia deixado meu livro de Baudelaire em casa. E pensar que o li, quase inteiro, naquela desconfortável cadeira de madeira, onde tenho tive quase a certeza de ter adquirido um novo rego. Dei alguns passos até o fundo do salão, me deparando com uma espécie de alçapão, que ergui, adentrando um outro cômodo, menor e mais velado, só que muito mais claro, com jogos de espelhos que faziam a claridade noturna, aumentar por formas que criavam um prisma magnífico.

Magnífico. Um pelotão de bonecas de porcelana, que me fizeram recordar, aquele exército chinês de pedra enterrado para proteger o imperador. Mas as bonecas, muito mais charmosas, com seus rostos infantis e pernas de fora, usando o que pareciam ser minissaias. Os pares de coxas me causaram uma excitação. Os rostos apáticos, me recordaram as mulheres frias com que me deparei debaixo de lençóis quentes. Logo meu olhar pousou sobre uma garrafa em cima de uma bancada. Parecia uma bebida saborosa e alcoólica, o que me fez apossar do objeto, retirar a rolha e despejar goela abaixo. Comecei a formigar a boca. Foi quando me assustei, percebendo que bebia formigas e elas me picavam a língua, causando essa ardência que me fez acreditar ser consequência de um bom trago. Sai cuspindo formigas, xingando, só me detendo diante daquelas lolitas de porcelana.

Olhei a lua. Me despi, mantendo o membro rígido. Ajoelhei diante das figuras paralisadas. Com um sabre que havia furtado na outra galeria, rasguei a garganta, tombando sobre uma poça de sangue, o corpo em espasmos. O sangue escorria entre as pernas das bonecas, como se todas menstruassem naquele momento. Os sapatinhos delicados, banhados pela viscosidade púrpura. Meus olhos vidrados, encarando aqueles olhinhos inocentes, que brilhavam pra dentro, absorvendo meu último momento de luz. Talvez por delírio. Acreditei no momento final, ter percebido um sorriso maldoso na boca de uma daquelas bonecas, justamente uma que ficava no fundo, escondida pelas outras. Durante a noite o teto se abria, se fechando ao longo da madrugada, antes que os raios mais poderosos do sol, pudessem adentrar o recinto. A escuridão completa logo se apossou daquele túmulo. O silêncio permaneceu. O espetáculo da morte, fora ocultado pelas trevas. Tudo de volta ao mistério.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 11/12/2012
Código do texto: T4030996
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