Quando os mortos caminham - Capítulo V - O Canibal

Droga! Estou realmente sem forças. È estranho estar dentro de uma fossa, a cinco metros da superfície, sentindo literalmente na pele o fedor das fezes que ainda estão impregnadas em minha boca e em todo meu corpo.

Esse mergulho foi realmente intenso, nojento, algo completamente repugnante.

Devo estar alucinando, pois não devia estar aqui falando sozinho. Não tem ninguém aqui, mas que merda, isso é o que tem me mantido vivo até então. Provavelmente devo ter pegado essa mania daquele vidente maluco.

Então vamos lá, deixe-me contar para vocês como vim parar nessa merda, ao lado desse braço em completo estado de putrefação.

...

Quando os Mortos Caminham – Capítulo V – O Canibal

Aquilo parecia ser uma maldita visão. Em pleno apocalipse, um anjo de repente aterrissava a minha frente. Não sei o que me deu, tampouco porque meu coração parou naquele momento, mas senti algo tão forte e intenso que mal posso explicar do que se tratava.

Não era só o decote, tampouco aquele olhar selvagem e tentador. Havia algo mais que os lábios envolventes e displicentes, muito mais do que eu poderia realmente definir.

Se bem que agora olhando diretamente para o cano do revólver que mira descuidosamente bem no centro de minha testa, minhas perspectivas realmente mudam em relação a esse falso anjo.

- Calma aí garota, olha lá pra onde aponta essa arma – tentei acalmá-la, mas a resposta veio no som de um clique sarcástico. Ela simplesmente engatilhou a arma.

- Saia da minha frente seu mendigo de uma figa! – Ela disse levantando seu corpo cautelosamente, e confesso que ali pude ver ainda melhor seus seios, que insistentemente teimavam em se mostrar além do decote.

Relutantemente minha atenção estava voltada para a arma, enquanto o som raivoso dos mortos parecia estar em rota de colisão com nossos corpos. Suas bocas famintas sangravam e salivavam enquanto nosso cheiro, o odor indistinguível do sangue quente que circulava por nossas veias, os atraia como fosse um bando de coiotes preparando-se para emboscada.

- Não é hora para isso Jackie – interveio Pedro supostamente chamando-a pelo nome.

- Que parada é essa? – Perguntei aturdido – mais uma vez algum desses fantasmas malucos te contou o nome dela?

Pedro me olhou e sorriu, senti a tensão aumentar enquanto os dedos de Jackie escorregavam pelo gatilho. Ela olhou para ele e então para mim, parecia indecisa, mas pude encontrar rapidamente uma melhor distinção para aquele sentimento que transbordava do ser daquela garota, ela estava acuada, imersa em todo o medo que a situação havia a proporcionado.

- Pedro – Eles mataram meu pai – Ela disse olhando-o nos olhos e revelando que realmente o conhecia, mirou no meu rosto apático, mal cuidado e cheio de pêlos, e disparou sem nenhum receio.

...

Estou sentindo o cheiro da morte cada vez mais perto e essas lembranças me deixam confuso. Já tomei tantas decisões em minha curta vida. Optei por amar e sofri por não poder suportar essa dor tão intensa. Caminhei pela sarjeta e nunca me imaginei em meio à merda. Esqueci o que era sorrir quando o mesmo me fazia tão bem.

Somos somente corpos, recipientes que são carregados o tempo todo, recarregados... Sentimentos bons e ruins nos encontram toda hora. Somos a droga viciosa que esse Deus maluco implantou no mundo. Somos carne, sexo, sentimento, somos o tormento dele. Ah, quiçá esse Deus maluco não se arrependeu de tudo e simplesmente nos abandonou.

Desculpe o desabafo, sei que estava contando uma história para vocês, mas às vezes, às vezes tudo parece tão pejorativo, queria que os dois entendessem que não era para ser assim. Droga, não queria que eles estivessem mortos.

...

Senti a morte tão próxima de mim. Era como se pudesse sentir o toque do vento, e o rasto do projétil que passara a milímetros de meu pescoço e se perdesse no olho esquerdo de um morto vivo que caiu ao lado de tantos outros que mau se importavam com aquela perda. Afinal não era daquela carne podre que iriam se alimentar.

- Entrem logo, Pedro! – Ela gritou e assim pude contemplar todo o calor e sensualidade daquela voz, voz tão suave e cheia de uma rouquidão que parecia massagear meu desejo. Ali, parado, ainda tentando entender toda aquela situação senti alguém se esbarrar em mim, e então quase caí, porém ele me segurou.

Pedro olhou diretamente nos meus olhos e então falou.

- Vai ficar parado aí meu filho, anda logo, entra no carro! – Disse ele enquanto pulava para o banco de traz e chutava o cadáver do velho para fora do carro. Entrei e sentei ao lado de Jackie, vi as mãos delicadas dela engatarem marcha ré enquanto os mortos vivos debruçavam-se sobre o capo do veiculo que salvaria nossas vidas.

Era estranho olhar para aquela jovem e sentir vertigens de um passado quase distante. Afinal, meu desejo havia se despertado de novo. Naquele súbito momento não queria saber de mais nada, levei as mãos a minha face e olhei em direção ao retrovisor do carro apenas com o intuito de perceber meu reflexo.

Parecia que não me via há anos, senti a barba grossa e por que não dizer visguenta, senti o rosto sujo e olhar banido de qualquer felicidade. Menosprezei minha vida por tanto tempo, afinal eu só queria me refugiar de mim mesmo, fugir de um passado que certamente nunca passaria, alcançar um exílio que não existia nem mesmo com a morte.

O que me despertou naquele momento foi o braço gordo do defunto que acabara de ressuscitar se agarrando a janela a minha esquerda, e segurando o braço de Jackie com uma força estranhamente sobre humana.

- Aaaaaaaaaahhh! – O grito dela ecoou. Pedro tentou livrar o braço dela, fazia força com seus dedos tentando desvencilhar o homem morto que a afligia, o mesmo homem que ela acabara de matar.

Não sei se aquela seria a melhor maneira de ganhar alguns pontos com ela, tampouco com Pedro, mas não dava tempo de procurar a arma que ela deixara cair debaixo do banco ao ser agarrada.

Invadi o espaço dela, quase deitando sobre seu colo e o ataquei como um cão raivoso e feroz. Como um lobo que abocanha sua vitima em total desdém.

Cravei meus dentes enferrujados por sobre o braço do mendigo que ainda estava dependurado na porta. Senti o gosto do sangue que ainda parecia ser vivo em suas veias e então um amargo irreconhecível inundou meu paladar.

Um gosto estranho, mas um tanto quanto revigorante. Senti uma força maior e minhas presas pressionaram ainda mais, até que senti o osso dele, puxei aquilo com toda minha força e abruptamente dobrei o pescoço sentindo o estalo. A mão dele quebrou-se com certa facilidade, afinal havia atacado justamente o punho.

O corpo deslizou pela lateral do carro e as rodas dianteiras saltaram sobre ele, como se fosse um quebra molas qualquer. Queria ficar ali no colo dela por mais um tempo, mas, tudo que é bom, dura muito pouco.

- Saia de cima de mim seu – ela obviamente queria me chamar de algo muito nojento, afinal, quem seria capaz de morder um morto vivo e quebrar o punho dele de uma maneira tão bizarra e porque não dizer idiota.

Ainda com o sangue na boca, saí de cima dela e me sentei novamente a seu lado. Pedro bateu a mão sobre meus ombros e então me disse algo ainda mais estranho.

- Carambaa meu, ela tinha me falado que você era um pouco maluco, mas que ia acabar nos salvando – Ele disse com olho estatelado. Ainda pude ouvir o grunhido de Jackie.

- Onde é que você arrumou esse cara? – Ela perguntou para Pedro enquanto víamos apenas as silhuetas dos mortos vivos se perderem ao longo do caminho.

- Você não acreditaria se eu dissesse quem me falou sobre esse cara! – Pedro disse e logo mudou de assunto – Mas que bom que você apareceu na hora certa. Quem era aquele homem? – Disse referindo-se ao velho.

- Não sei. O que ouvi enquanto fingia que estava desmaiada era que ele estava indo para algum lugar. Acho que nesse lugar encontraremos a resposta para essa loucura, Pedro.

Olhei para os dois, de onde se conheciam afinal, como Pedro poderia saber tanto sobre mim, seria possível que ele soubesse quem eu realmente era?

Deduzi que no momento aquilo seria irrelevante, olhei para o interior do carro me dispersando daquela conversa e então vi a ponta de um papel me chamando à atenção, escapando do porta-luvas, e o abri.

- O que é? – Ela me perguntou.

- Um mapa? – Pedro tentou adivinhar com certa incerteza dessa vez.

- Sim – Disse enquanto tentava entender aquilo, havia um destino traçado, aquilo era ainda mais intrigante. Ergui minhas sobrancelhas, tentei entender o que aquela rota absurda poderia nos revelar, e se realmente era possível que algo pudesse existir ali. Olhei para ela e então a perguntei – Acha mesmo que nesse lugar temos chance de descobrir o que realmente está acontecendo? – Indaguei.

- Você fala muito bem para um mendigo – ela deduziu e ironizou – pelo que ouvi, tem mais pessoas lá, ao menos um homem – Ela finalizou.

- Bem, não sei se vale à pena correr o risco – presumi, portanto confiei pela primeira vez na voz mais sábia por detrás daquele estranho trio acabamos de formar – O que você acha, ou melhor, o que essa voz maluca te diz? – pela primeira vez eu verdadeiramente sorri em quase uma década.

- Para onde o mapa quer que sigamos? – Ele perguntou.

- Cemitério Regional, da para entender isso? – indaguei novamente.

- Fala sério! – Disse, Jackie – Não vamos pra lá né Pedro? – Ela titubeou.

- Confie em mim priminha, estamos juntos agora, acredite, tenho motivos para confiar nesse homem – Pedro afirmou aquilo com tanta certeza que eu mesmo acreditaria nele, não fosse por me conhecer tão bem.

E assim seguimos enquanto o som dos helicópteros se aproximava cada vez mais da cidade. Atrás de nós pudemos ouvir as explosões, barulhos de metralhadoras, enquanto uma cidade era destruída.

No nosso caminho encontramos carros abandonados pelas ruas, alguns seguiam, poucos na verdade. Vi pessoas se matando, cerca de trinta pessoas seguiam um padre e um pastor, com as bíblias em mãos, abraçados numa imagem única, em lágrimas e rezando a oração única do Pai nosso.

E repetiam o tempo todo – Venha a nós o vosso reino! Seja feita vossa vontade! Venha a nós o vosso reino! Seja feita vossa vontade! – e choravam e oravam e se entregavam a sua fé.

Jackie não estava nem aí para aquilo, buzinou repetidas vezes para que abrissem caminho. Chegamos a um ponto que estrada estava lotada, um campo enorme a nossa direita, a esquerda uma plantação de eucaliptos, quinhentos metros à frente a divisa da cidade.

- Que merda! – Disse Jackie – enquanto a voz chegava a nossos ouvidos.

- Afastem-se ou abriremos fogo! – era o general do exército, enquanto do outro lado da ponte um exército apontava suas armas.

- O que faremos agora? – Perguntei como se alguém pudesse ter a resposta.

- Abra o porta-luvas – Disse Pedro.

Essas coisas sempre aconteciam, pense em ter um maldito vidente na tua cola, pense que tem alguém sussurrando algo a seu ouvido, pense ser ele por um pequeno intervalo de tempo. Acho que estou ficando louco, mas eu acreditei nele.

Abri o porta-luvas e então a encontrei. Doutor Filipe Dias, lá estava ele, um crachá de alta patente, membro do mais alto escalão do exército Brasileiro, doutor em anatomia humana, físico renomado internacionalmente, e uma estranha estrela maior como doutor em Ufologia.

- Que merda é essa? – Perguntei.

- Esse foi o cara que eu matei? – Surpreendeu-se Jackie – Vixe!

- Parece que sim – respondi olhando aqueles lindos olhos, era o pecado mais perfeito que já havia vislumbrado. Eu realmente estava tentando entender, como é que ela poderia ser prima daquele desajeitado?

Enfim tínhamos uma chance – pena que o tiroteio começou rápido demais.

Continua em...

Quando os mortos caminham – Aniquilação – Capítulo VI

Estou saindo desse buraco e prometo pegar os cretinos que me deixaram preso aqui. Por todos esses anos quis mudar, queria ser diferente, não sentir esse desejo que me atormenta a alma.

Estou subindo, estou saindo, eu e minha única chance de sobrevivência, eu e minha fome.

Sejam sempre bem vindos!

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 27/12/2012
Reeditado em 10/01/2013
Código do texto: T4055505
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