BARRABÁS


                Duas da manhã, eu esperava ela sair, não foi à primeira vez que ficava na porta até meia noite, aquele era o horário que ela saia do trabalho, o shopping ficava cheio até as dez, depois funcionava a praça de alimentação e o cinema, lentamente aquela massa de gente deixava tudo para mim, vazio e sombrio.
         Começou em outubro eu não trabalhava mais, recebia o seguro desemprego, morava em um quarto em um bairro no centro, uma morada coletiva com dez apartamentos, gastava pouco, quatrocentos de aluguel e quase não comia, o dinheiro dava, afinal não havia nada para fazer com minha vida medíocre, desabitada de sentimentos e vontades.
         Fiquei sem família com vinte anos, minha avó morreu, não sei quem foi meu pai, minha mãe tinha lúpus, a doença engoliu a sua vida três anos depois do meu nascimento, foi ela que colocou o nome que nego até hoje.
         Minha avó achava que era por isso que eu era assim, vovó ficava horas chorando sem motivo, eu não tinha amigos, nem conseguia permanecer muito tempo no trabalho, fiz de tudo: auxiliar de necropsia, padeiro, assistente administrativo, coveiro, em tudo que paga mal já trabalhei.
         Há dois anos segui o conselho da minha finada avó, procurei um psicólogo, fui ao posto de saúde para me tratar, o médico me passou uns remédios, o psicólogo ficava me olhando e dizia coisas como, “você é inteligente”, “cuide da sua autoestima”, acho que eles não sabem nada, o médico tinha uma cara cansada, corpulento e de fala aguda, não falava nada sobre doença, conversava sobre futebol e política, uma chatice, tome esse remédio, pronto, jogava a receita fora, quando o remédio era para dormir ficava com a receita, dizem que esse remédio trás uma morte tranquila.
         Uma vez tomei o remédio um desses prescrito para loucos , nada aconteceu, queria um motivo para viver, nunca acreditei em Deus, nem em santos.
         Vejo essas pessoas passando de um lugar para o outro e nada sei delas, para mim são como zumbis.
         Comecei a colecionar revistas em quadrinho, só para passar o tempo, dois meses depois o meu quarto estava cheio delas, não sabia mais quantas tinha, havia tantas que se eu ficasse sentado lendo, passaria quarenta anos só fazendo isso, peguei tudo e joguei no lixo, vinte mil.
  Todo o dinheiro das minhas economias consumido em porcarias.
         Queimei, fiquei olhando o fogo, um tonel de metal, foi quando ela passou, tinha olhos pequenos, e boca macia, sua pele era branca, lembrava uma princesa da Disney, a menos enjoativa, Branca de neve, usava um vestido largo e segurava um lenço rosa nas mãos, sorriu para mim, nunca ninguém havia sorrido para mim antes, aquilo me deixou desconcertado e disse:
         -Bom dia – às três horas da tarde, que idiota!
         Passei dois dias sem dormir pensando quando sentiria o prazer de ver novamente aquela princesa. Numa tarde de domingo, quando dormia no sofá, vendo um programa ridículo na TV ele apareceu, tinha rabo, cabeça grande, três chifres, um olhinho minúsculo, cabeça quadrada e uma semelhança com meu pai que vi no retrato, como o vento sul ele falava com eco.
         -O que você faz ai sentado? – sim se o meu pai tivesse uma voz seria aquela.
         Tomei um susto, escorreguei do sofá e senti a minha cabeça bater forte na quina da mesa de cabeceira, desfaleci, quando acordei ele estava lá, tinha olhos vermelhos, se bebesse meu pai teria olhos vermelhos como aquele, na cabeça havia pelos e gomos putrefatos, a boca era desproporcional, realmente era como o meu pai no retrato, ele disse.
         -Meu nome é Barrabás, estou aqui tentando fazer uma boa ação, tirar um verme de seu buraco – disse me dando um copo com água.
         Esfreguei a minha vista, talvez seja a minha vista, esfreguei muitas vezes, enquanto ele balançava a cabeça impaciente.
         -Barrabás? Você quer dizer... – Minha estupidez ligou logo o nome do demônio que me perseguia ao ladrão zelote que foi libertado no lugar de Cristo por Pilatos, com isso, mesmo ateu comecei a rezar, mesmo sendo ateu? Que idiotice, afinal, desde criança nunca acreditei em nada que não fosse visível e palpável, parei subitamente a reza.
         -Para com essa reza que eu sei que você é ateu – disse indo até a geladeira e pegando uma cerveja.  –Barrabás é só um nome que escolhi. Gosto desse nome, gosto desse personagem da história que mostra a hipocrisia do ser humano – me empurrou para sentar e continuou – vim aqui para te ajudar com Flávia. – Ele fez um gesto com a cerveja, como se quisesse me explicar quem era Flávia – a garotinha com rosto de princesa, acho que ela pode resolver a sua vida patética.
         -Mas como? Ela nem me conhece – disse com cara de estúpido, me arrumei no sofá, afinal tinha alguém para conversar, nem que fosse um demônio de três chifres.
         -Você acredita no amor? – Ele riu – claro que não, só acredita no amor quem foi amado, principalmente na infância, você é um abandonado de pai fugido e mãe inválida.
         -Barrabás, você não pode falar assim, tive o amor de minha avó.
         -A pobre não teve escolha – disse tomando mais um gole da cerveja – andava chorando pelos cantos.
         -Você veio aqui para me deixar para baixo?
         -A vida dos homens, mesmo bem sucedidos, os espertos, os bonitos, não é sobre poder ou dinheiro, é sempre uma mulher – ele fez uma pausa pegando um retrato antigo da minha avó – não digo um fracassado igual a você que vive sentindo pena de se mesmo.
         Interrompi para fazer uma pergunta.
         -Você é um demônio? – perguntei tentando ser o mais serio possível – por que só um demônio tira a paz das pessoas assim.
         -Não me interrompe com perguntas idiotas – ele colocou o retrato de volta. – Disse que mesmo um fracassado, miserável, preguiçoso, feio igual a você precisa de uma mulher, talvez a pequena Flávia consiga salvar a sua alma.
         -Passei por ela apenas uma vez, então ela sorriu.
         Barrabás deu uma gargalha horrenda, com um fundo demoníaco de gritos e lamentações, aquilo foi demais e me fez urinar nas calças, fiquei com tanto medo que corri para o banheiro e me tranquei lá.
         -Você urinou nas calças – disse fazendo com as palavras um malabarismo enojado. – Isso é muito nojento.
         -Vá embora, não quero conversar com você – disse tremendo, estava certo que uma hora acordaria daquele sonho.
         Ouvi os passos dele até a sala, sabia que tinha sentado na cadeira do papai que comprei no móvel usado, minha cadeira preferida.
         -Saia da minha cadeira – disse gritando e ao mesmo tempo sentido um arrepio ridículo.
         -Tenho uma informação para você.
         -Não quero nenhuma informação que venha de uma figura tão medonha saída do inferno.
         -Olha quem diz. Você já se olhou no espelho – disse levantando e batendo na porta. – Sabe que prefiro a minha figura a sua – e diminuído a voz continuou – tenho o endereço dela, sei onde ela trabalha.
         Fiquei desatinado, será que estava sonhando, se fosse um sonho, que mal teria em pegar o endereço com o demônio.
         Abri a porta.
         Ele não estava mais lá, mas rabiscado com tinta vermelha o endereço com o nome de Flávia e o local onde ela trabalhava.
         Passei dois meses planejando, ou esperando que Barrabás voltasse, para que ele me ajudasse a tomar a decisão de ir até Flávia e conversar com ela.
         Procurei um amigo meu, não era bem um amigo, um vendedor de carros que passava maconha quando eu queria fumar um baseado.
Justino Paganoto, já esteve preso, disse para mim que melhorou de vida quando se tornou ocultista, via e falava com espíritos, principalmente se estivesse “chapado”. A maconha liberava as coisas, o espírito e a alma flutuavam.
         Expliquei a estória para o Justino e ele disse.
         -Você está com um encosto sério, para um pouco de fumar maconha, já degenerou o seu cérebro, eu chequei a ver alguns demônios com maconha batizada, mas esse seu demônio é muito feio e a minha maconha é quase pura, acho que você precisa de psiquiatra, eu tenho o telefone de uns três aqui – puxou do bolso uma notinha com três telefones. – Esse primeiro é muito bom, passa remédio que deixa você ligado pra caramba, melhor do que maconha para vender carro.
         -Você acha que é coisa da minha cabeça? – disse olhando o papel com os telefones.
         -Não sei, nem gosto dessas histórias de demônios, procura um psiquiatra, morro de medo dessa treta – disse e foi atender um cliente.
         Fiquei parado dois meses olhando para o endereço de Flávia.
  Olhava também para o número que o Justino me deu, estava indeciso, ou estou doido, ou sou um cara sortudo, com um demônio me ajudando pode dar tudo certo.
Por último olhava para a fotografia da minha avó e ficava na janela para ver se dava a sorte de Flávia passar, foi numa quarta feira a noite que Barrabás apareceu.
         -Puta merda – disse logo, fui correndo e deu um abraço nele.
          – Por que você está me abraçando?
         -Senti sua falta – disse de forma sincera.
         -Você é mesmo um perdedor – disse revirando os olhos. – Fez o que mandei, foi lá e falou com a menina, disse que estava afim? Bosta nenhuma, ficou parado, quando entro me dá um abraço.
         -Não tive coragem. – Eu estava encantado com a volta de Barrabás, ele usava uma camisa azul, tinha um boné na cabeça e seu rabo parecia o de um felino, balançava sem parar.
         A meu pedido, ele me acompanhou seguindo Flávia. Estava feliz com a presença de Barrabás, sabia que era ele quem queria Flávia e não eu, a minha felicidade estava na companhia de Barrabás, faria tudo que me pedisse.
         Então, nós dois, eu e Barrabás estamos aqui hoje, esperando ela sair, mas já não me importo com ela, tudo que eu quero é que Barrabás não me abandone, ele está nervoso, alguma coisa saiu errada nos planos dele, não me importo, não o deixarei ir embora.
         Ele falava baixinho.
         -Ele não entende.
         A faca estava escondida na minha mão, Barrabás parecia não entender o que eu havia planejado, quando Flávia passou por mim gritei.
         -Menina. – Que coisa estúpida de gritar, poderia ter falado o nome dela, ou princesa, mas gritei menina, ela me olhou, parecia ter visto Barrabás, gritou e correu.
         Não adiantava ela correr, eu estava com uma vantagem, havia me preparado para aquele momento, corri ainda mais e cai com ela presa nos meus braços, a faca no seu pescoço deslizou, o sangue correu pelas minhas mãos e nada poderia me parar, senti a mão de Barrabás tentar me puxar e dizendo.
         -Não é isso, você não entendeu nada.
         -É o que você quer– disse segurando o cadáver banhado em sangue, mas ele desapareceu. Coloquei a bela no fusca setenta e um, uma herança da minha avó e levei para o meu apartamento.
         Por anos trabalhei como auxiliar de necropsia, conheço à técnica de embalsamar, deixei a princesa linda sentada na cadeira do papai e fiquei esperando Barrabás.
         Fui até a janela, para minha surpresa passava uma menina de doze anos, ela vinha andando alegremente, tomei um susto tive certeza que Barrabás estava ao lado dela, apontou para mim e disse.
         -Saia daí, tem trabalho a fazer.
         Foi então que achei que deveria alugar uma casa maior
 
 

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 07/01/2013
Reeditado em 16/04/2013
Código do texto: T4072347
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.