Diana Caolha - A História de uma assassina

Essa é a continuação de minha história de amor, um amor diferente de outro qualquer, um sentimento mágico, que vai além da importância da matéria, do estado físico. Esqueça as aparências, pois elas enganam.

Que fascínio era aquele que me escravizava?

As aulas não voltaram naquele ano. Ficamos a ver navios, eu e Charlie ficávamos a maior parte do tempo ao lado de Diana. Porém eram sentimentos distintos, Charlie a amava de uma forma diferente da minha, eu estava cada vez mais obcecado por ela. Sua voz latente ao pé do meu ouvido era como um feitiço alucinante.

Seu corpo pequeno era desejoso do toque de meus dedos, de minhas caricias. Ela pedia para que eu a usasse, Diana queria matar, implorava por sangue, queria que as balas explodissem a cabeça de algum idiota. Aquela pele lisa, negra, suas curvas assassinas, seu hálito quente como pólvora acesa. Ela me seduzia sem precisar se mover e eu estava completamente envolvido com aquilo.

Por diversas vezes conversamos sobre Diego e os outros dois idiotas. Charlie e eu ainda carregávamos um sentimento parecido com remorso, mas não chegava a ser isso, entretanto Diana pouco se importava. Na verdade ela pedia por mais.

Numa sexta feira eu e Charlie estávamos sentados ao lado de Diana em seu quarto, era ali que ela sempre ficava. Os pais dele pouco se importavam com o que ele fazia e não o perturbavam, deixavam o garoto lá se enchendo de chocolate, preso ao seu vídeo game idiota, alienado em uma vida obscura e depressiva, cercado de rancor e desamor. Charlie me olhou de uma forma diferente enquanto eu acariciava Diana, estávamos os três, calados, Charlie parecia chateado com algo. Era como se estivesse querendo me falar alguma coisa, vi seus lábios tentando se mover quando Diana o interrompeu nos convidando para dar uma volta até o rancho, como costumávamos fazer de vez em quando.

Charlie só tinha a mim e a Diana, porém nossa relação estava cada vez mais conturbada.

Ele estava diferente, talvez mais maduro, ou mais louco, eu não sabia ao certo definir o que era aquilo.

Estávamos caminhando de volta pelos trilhos da ferrovia que atravessava a cidade. Eram sete quilômetros entre minha casa e a de Charlie. O caminho de ferro se estendia ao longo do trecho entre curvas sinuosas e um ambiente suntuoso, árvores típicas da região nos cercavam e se aglomeravam formando uma vasta e bela área verde, frondosas árvores que tinham aos seus pés um extenso campo de capim que dançava com o vento, juntos todo aquele ambiente montanhoso dava aquela primavera um aroma de verde e uma beleza sem igual.

Aquele caminho de ferro era um refúgio, tão distante de tudo e de todos, éramos deuses nos equilibrando sobre o torto caminho de aço, um aço frio como a morte que nos rondava, estávamos voando, braços aberto, pé por pé, vacilantes no caminho da vida, éramos três garotos perdidos entre o céu e o inferno. As pedras entre os dormentes de madeira, a folhagem seca sob nossos pés e o vento refrescante nos remetiam para outro mundo, longe de nossa própria crueldade, era ali que nos sentíamos melhores.

Passamos o dia no rancho de meu avô. Vovô estava internado no hospital da cidade e mesmo querendo estar perto dele não conseguia me distanciar de Diana. Ele havia sofrido um AVC e estava muito mal, lembro de pegar sua velha camionete e dirigir loucamente pela estrada depois de tê-lo carregado com extrema dificuldade, segurava-o pelos braços e puxava-o enquanto seus calcanhares batiam contra o cascalho empoeirado que cercava nossa velha casa. Eu fui o mais rápido que pude, fiquei com ele até que restabelecesse e quando dormiu um sono tranqüilo saí de lá e corri para o consolo de Diana e a amizade de Charlie.

Sentamo-nos a beira da lagoa, Diana havia brincado bastante de tiro ao alvo, nós ficávamos espantados com sua precisão, ela guiava nossas mãos e as balas acertavam no ponto central do alvo feito na parede do velho celeiro de meu avô. Depois corremos para dentro dele e pulamos sobre o feno, deitamos e olhamos para o nada absortos em nossas vidas complexas, perdidos entre o desejo e a razão.

Não quero fazer aquilo de novo! – Charlie disse enquanto uma lágrima quase seca brotava de seu olho. Eu pensava naquilo o tempo todo, estava confuso, algo em mim dissera que o certo a fazer era esquecer aquilo, mas uma outra parte em meu subconsciente me forçava a atender o desejo de Diana. Ela estava entre nós, Charlie a segurou e me olhou nos olhos.

- O que você está fazendo amigo? – Eu o perguntei enquanto ele apertou-a fortemente, ele lutava contra ela. Ela não queria parar.

- Isso tem que ter um fim Diana! Não ta certo! – Eu sabia que aquilo tudo era muito louco, e no fundo concordava que ele estava certo. Diana queria apenas vingança, mas eu não podia lutar contra ela, pois descobri que a amava. Ela então pediu que ele a soltasse, sua voz suave escondia a alma amaldiçoada, explosiva e assassina que aquele corpo abrigava. Charlie lutava contra ela, segurava-a com as duas mãos enquanto ainda me decidia sobre o que fazer, quem ajudar. Ele se levantou e carregou no ar, era uma batalha mental, saiu correndo como um bêbado louco, lutava contra Diana, guerrilhava contra si mesmo.

- Charlie, solte ela! – Eu disse num impulso enquanto via o que ele queria fazer. Charlie estava indo em direção da lagoa pronto para afogá-la lá dentro. Diana parecia não temê-lo, falava com ele que ele não teria coragem. Charlie chegou até o barranco, eu tentei o ameaçar, mas ele era meu amigo. Não podia fazer isso, mas tinha que ajudá-la. Quando decidi-me a intervir Charlie caiu de Joelhos com todo seu peso, sua pele gorda e flácida tremeu. Ele a soltou no chão e olhou para mim como se tivesse me pedindo desculpas.

- Ela é muito pior do que nós! Ela não é mais a minha Diana! – Ele disse enquanto se culpava por tê-la me apresentado naquele momento de fraqueza em sua vida.

O abracei, Diana falou com ele calmamente, seduziu-o como sempre fazia, a voz dela o remetia a um passado, antes de sua vida ter sido virada de cabeça para baixo, antes dela se tornar Diana Caolha. Ele queria acreditar que aquela era ela, que isso era só uma casca, que ele ainda teria salvação depois do que fizemos, mas ele tinha certeza de que estávamos todos sentenciados a queimar no fogo do inferno.

Passaram-se dois dias, Charlie se trancou no quarto e eu aproveitei sua ausência para ficar com meu avô, Diana estava cuidando dele. Cheguei ao hospital e vi o meu vovô apático, triste, seus olhos denotavam a completa nostalgia em que estava submergido. Queria dá-lo um abraço, queria beijar-lhe o rosto e despir-me de toda maldade que estava impregnada em meu ser, mas era uma batalha perdida. Mesmo ali eu podia senti-la, podia perceber sua presença me controlando. Sentei-me na cadeira ao lado da cama branca em que ele estava deitado, era uma cama de ferro, com um colchão velho, um lençol branco onde estavam nítidas as manchas de sangue mal lavadas, meus olhos percorreram todo aquele quarto, seis leitos lado a lado um do outro, os acamados que ali se encontravam tomavam soro, e alguns como meu avô ainda estavam sobre os cuidados do balão de oxigênio.

Uma enfermeira entrou rapidamente no quarto, me olhou como se já me conhecesse, seus olhos me transmitiram um enorme tristeza, era como se ela lamentasse por algo que estava para acontecer. Minha capacidade de raciocínio e lógica me permitiam praticamente ler seus pensamentos. Ela estava com pena, pena de mim, pois agora estaria órfão, pena de meu avô que mal podia falar a beira da morte. Meu avô me olhou por uma ultima vez e sorriu para mim, e depois chorou, naquele instante eu me despedi e saí antes que ele morresse. Eu sei, fui um covarde, mas aquilo era demais para mim. Meu avô morreu quatro horas depois. Naquele dia o melhor de mim se foi junto dele.

Saí dali com única certeza, eu tinha que ver Diana. Segui em direção a casa de Charlie, ela deveria estar cuidando dele. Durante o caminho pensei muito sobre aquela discussão, pensei em Charlie e em Diana. Lembrei-me de tudo que vivemos juntos até ali. As primeiras lágrimas caíram de meus olhos junto dos primeiros pingos da chuva que se derramavam em mim como se pudessem apagar o incêndio que havia em meu coração.

Durante o caminho os trovões rugiram nos céus, a tarde caia tal qual um anjo que perdera as asas, melancólica e furtiva roubava toda a cor dourada que o sol pudera ter dado ao dia. Meu coração parecia pressentir a maldita vida que eu estava prestes a seguir. O céu cinzento, o vento molhado, a chuva que já se mostrava alheia a qualquer morosidade, chegava forte, rápida e objetiva.

Eu estava encharcado, corria enquanto meu coração fraquejava, pulsava tão rápido e tão mórbido. Sentia tanta vontade de correr para meus amigos, minha única família de agora em diante, queria ver Diana, dar-lhe um beijo, contemplar toda a força que ela nos passava, acariciar suas curvas, olhar pelo seu olho e mirar com todas as forças no meu coração. Eu queria tê-la só pra mim. Queria ver meu amigo, sair com os três daquela cidade e rumar para uma aventura nova. Avistei a mangueira ao longe e me enchi de uma ansiedade louca. Ouvi outros dois trovões, mas estes não vieram do céu, estavam tão próximos que aquilo me fez correr mais. Sentia meus pés pisarem na enxurrada, a água espirrando a cada passo. Cheguei até a sacada e escutei um barulho de vozes. Era uma discussão, dei dois passos para trás e olhei para cima, vi Charlie e Diana pela janela e então eu vi o sangue em suas mãos.

Tentei abri a porta, mas ela estava trancada, tomei distancia e tentei arrombá-la, mas minha força era tão pouca que a dor que senti mal me deu forças para tentar uma nova investida. Fiz sombreiro com a mão e olhei para o alto, a chuva caindo enquanto meus olhos estavam protegidos e miravam no galho da mangueira. Tirei os sapatos e comecei a escalá-la. Subi como certa dificuldade, meus pés escorregavam pela casca da árvore enquanto a chuva tornava a escalada muito mais difícil do que o normal.

Chegando ao galho pretendido, lembrei-me das linhas de trem e me equilibrei sobre ele de braços abertos, voando, desajeitado, trêmulo, extremamente nervoso com toda a situação. Pé por pé eu atravessei até a janela, e me agarrei no chapéu colonial, balancei enquanto minhas duas mãos se apoiavam no caibro e entrei com os dois pés num mergulho para dentro do quarto de Charlie.

- Que sangue é esse? – Eu perguntei enquanto Charlie lutava contra Diana.

- Ela fez isso! Ela fez! – Ele disse completamente nervoso, suas mãos estavam repletas de sangue, sua camisa também, mas não era dele. Charlie estava pronto para disparar. Diana estava relutante, pedia para que ele não fizesse isso. Disse que eles precisavam morrer e que ela e Charlie haviam feito o necessário.

Eu ainda não havia entendido, lembrei-me dos dois disparos que havia ouvido, os dois trovões que me fizeram correr. Charlie estava possesso, determinado. Podia ver nos olhos dele toda a dor que sentia. Ele olhou para mim, e então para Diana, O tambor estava carregado, é claro que com duas balas a menos. Ela implorou para que ele não fizesse isso, pois ela o amava. Charlie sorriu e me disse para que fugisse dali o quanto antes. Ele olhou para uma foto sobre a cômoda, uma foto onde os quatro estavam juntos; Charlie, Diana e seus pais.

- Éramos uma linda família! – Ele disse ao apertar o gatilho. Fiquei assustado, não sabia quem acudir e isso fez com que eu tivesse certeza que eu a amava. Diana estava no chão, senti que ela estava quente, ela caiu junto a ele, a bala calibre 38 havia estourado os miolos de Charlie. Meu melhor amigo estava morto e o engraçado é que naquele exato momento eu não me importava mais com ele

Peguei Diana e sabia que tínhamos que sair dali. Desci carregando-a e segui pelo corredor. A escada era feita de madeira, como quase tudo daquela velha casa. Descia apressado enquanto meus calcanhares esbarravam na madeira e o som oco me perseguia como uma sombra pelo caminho. O cheiro da poeira estava impregnado naquele lugar, mas havia algo mais assustador naquele momento. Aos pés da escada com a nuca apoiada sobre o primeiro degrau e o nariz inclinado para trás e a boca aberta perdida em um ultimo espasmo, estava a mãe de Charlie. Destacava-se sobretudo um furo na testa, uma trilha de sangue se fazia descendo lateralmente pelo seu rosto, formando uma poça em seu olho esquerdo e transbordando por sua face até se perder em seu seio.

Charlie não teria coragem de fazer aquilo, não sozinho. Diana estava calada, não ouvia seu choro, era como se ela não estivesse ali. Pulei o corpo magro da viciada e segui na direção da porta, louco para sair dali quando o som da canção cadavérica chegou aos meus ouvidos...

One, two, Freddy’s comming for you

Three, four, better lock your doors

Five, six, get a crucifix

Seven, eight, better stay up late

Nine, ten, never sleep againOne, two, Freddy’s comming for you

Three, four, better lock your doors

Five, six, get a crucifix

Seven, eight, better stay up late

Nine, ten, never sleep again

Em sobressalto senti meu coração parar, e me virei para a TV, O filme que passava era A Hora do Pesadelo. A imagem sem cor na tela era assustadora, o céu rugiu do lado de fora da casa, a tempestade encontrava seu ápice enquanto eu olhava para o sofá. Lá estava ele, um tiro no peito, a camisa manchada de sangue. Estava sentado em frente a TV, pela sua expressão mal havia visto o atirador, na TV passava a hora do pesadelo, e ouvia aquela maldita musica tema . O pai de Diana e Charlie segurava uma garrafa de Wisk em uma das mãos, enquanto a outra mão estava caída do lado do coração. Seu semblante calmo era algo assombroso. Olhei para porta e sai enquanto Diana se despediria de seu antigo lar para sempre.

Na janela da casa da frente uma luz se acendeu, não tive certeza se a pessoa me viu, apenas corri em meio a chuva, Diana estava encharcada, peguei o caminho da linha férrea e saltei para a maior carona de minha vida. Eu deveria estar mais triste pela morte de meu amigo, mas não estava, afinal, agora Diana era só minha.

Continua...

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 13/01/2013
Reeditado em 15/01/2013
Código do texto: T4083047
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