Quando os mortos caminham - Capítulo VII - A Morte de um Amigo

Estou de volta, acabo de enfrentar a escalada mais árdua de minha vida. Pensei que morreria ali. Olhei para o buraco além de meus pés e tive a impressão de que podia cair a qualquer momento.

Confesso que me senti traído. Estava em meio a um deserto de corpos, não sabia o que fazer ainda, mas já estava feliz por estar livre.

Avistei o mesmo córrego traiçoeiro que havia me levado a atual situação. Não havia como saber, agora ele estava totalmente diferente, corpos estavam boiando por sobre a água, o sangue ainda flutuava como se aquilo tudo nunca fosse acabar.

Uns quinze metros à frente havia algo nojento, um ser em carne viva, desfalecido em meio à grama rasa que se estendia por aquele macabro parque.

Sua antiga pele dera lugar á algo asqueroso, um corpo quase humanoide, porém em carne viva. Olhei para aquilo e ainda não acreditava em tudo que havíamos descoberto.

Segui até o riacho e subi a beira da margem, onde a água corria acima do local onde os corpos estavam. Sentia meus pés tocarem descalços as folhas e galhos secos que caiam das árvores. E naquele momento me dei conta de que não havia nada perdido.

A natureza ainda estava ali, árvores belas e frondosas nos cercavam, uma grama extensa e verde ainda confortava nossos pés, um rio de água limpa ainda corria antes dos corpos. Portanto a vida ainda existia após a morte. Ainda seria possível preservá-la em algum ligar.

Agachei-me e juntei as mãos em formato de concha, só aí percebi o quanto estava imundo. Sorri de toda aquela tragédia, um riso quase perturbador, tirei as roupas e mergulhei na água sentindo imensa satisfação.

Naquele momento as lágrimas traiçoeiras revelaram minha dor e minha alegria pela vida que ainda tinha. Chorei como uma criança, chorei como um alguém.

...

Quando os mortos caminham – Capítulo VII – A morte de um amigo

Voltando a estória...

Abri o porta-luvas e então a encontrei. Doutor Filipe Dias, lá estava ele, um crachá de alta patente, membro do mais alto escalão do exército Brasileiro, doutor em anatomia humana, físico renomado internacionalmente, e uma estranha estrela maior como doutor em Ufologia.

- Que merda é essa? – Perguntei.

- Esse foi o cara que eu matei? – Surpreendeu-se Jackie – Vixe!

- Parece que sim – respondi olhando aqueles lindos olhos, era o pecado mais perfeito que já havia vislumbrado. Eu realmente estava tentando entender, como é que ela poderia ser prima daquele desajeitado?

Enfim tínhamos uma chance – pena que o tiroteio começou rápido demais.

Nunca havia visto tanto sangue em minha vida, nem mesmo a tigela inteira que havia bebido do sangue de meu falecido pai poderia me dar uma percepção daquele massacre.

Estávamos em fogo cruzado, podíamos escutar o som dos homens, mulheres e crianças sendo alvejados, caindo displicentemente às dezenas.

- Que mundo é esse afinal? – Perguntei pensando que estivesse louco, pois nada de normal poderia existir ali. Afinal aquilo só poderia realmente ser um maldito sonho, ou quiçá um pesadelo. Mas se eu estava louco, Jackie simplesmente era uma suicida.

Num súbito momento vi um soldado se aproximando com uma metralhadora enorme em suas mãos, atirava com total desprezo e se aproximava cada vez mais de nosso carro.

Sangue esguichava para todos os lados e de repente senti as mãos de Jackie tocarem meu braço, ela se debruçou sobre meu corpo. Naquilo senti toda a tensão do momento ser esquecida. Meus pêlos se ouriçaram e eu a imaginei, me perdi naqueles lábios molhados e senti o coração congelar. Estava absorto em pensamentos condizentes a minhas carências.

Mas tudo aquilo se transformou em pura euforia quando abruptamente ela abriu a porta do carro e saiu na direção do homem. Se fosse qualquer um de nós, tenho certeza, seriamos mortos, eu ou até mesmo o Pedro, mas ela, Jackie era sinuosa, incitante, ela e suas roupas provocantes inibiriam qualquer ato daquele soldado que estava mais próximo. Ele simplesmente parou, olhou-a com um olhar devorador enquanto ela mostrava suas mãos abertas, para o alto.

A principio nem tinha visto porque ela havia se apoiado em mim, fora tão rápida e eu realmente estava fascinado demais por ela. Ela me lembrava tanto uma foto de minha mãe, quando ainda jovem. Era tão linda, tão bela que mal percebi que ela apanhara aquele objeto.

O soldado olhou para as mãos dela enquanto a metralhadora mirava nos seios fartos de Jackie e quando ele preparou para atirar...

- Sou filha do Doutor Filipe Dias, seu estúpido, abaixe essa arma! – Ela falou com uma voz tão exigente que se eu pudesse cairia a seus pés ali mesmo. Ele hesitou, continuou apontando a arma ainda perplexo com a beleza da garota mas hesitou, os dedos apenas acariciavam o gatilho.

- Você é filha dele? Mas ele nunca – o soldado dizia quando outro soldado apareceu pisando por sobre os corpos derramados pelo chão.

- Onde está seu pai? – Ele perguntou.

- Morto. Ele está morto – Ela disse aparentemente com pesar, mas de certo pensara em seu pai verdadeiro naquele instante, pois seus olhos lacrimejaram. Ou era uma excelente atriz, ou uma mentirosa nata.

- Que pena – o homem disse parecendo não dar a mínima para aquilo. Olhou então na direção do soldado e disse – Ela está com o crachá dele seu idiota, o carro também é o do Doutor, e se ela for realmente quem diz que é? Tire-a da linha de tiro. Depois descobrimos o que está se passando – O homem de meia idade sorriu maliciosamente para ela, pude ver que ela congelou com aquele sorriso. Jackie engoliu em seco e olhou em nossa direção – Continuem atirando homens, matem todos! Matem até mesmo as crianças – disse o possível líder aos seus soldados que não passavam de sete. Todos estavam fechando uma divisa de cidades.

- E eles? Quem são? – Perguntou o soldado com a metralhadora.

- Não tenho tempo para explicar, mas meu pai disse que precisaremos deles – ela mentiu novamente e ele acreditou.

- Podem passar!

...

Senti pela primeira vez que poderia ser um homem novamente, estava nu, limpo e após ter achado uma faca em um dos carros na estrada, resolvi tirar a barba. Há muito tempo não ficava assim. Caminhei por muito tempo após ter saído daquela fossa.

Andei e exterminei muitos mortos vivos, e também alguns daqueles demônios que pareciam cada vez mais fortes. A diferença deles para os mortos vivos, além da fisionomia é claro, era que não morriam tão fácil. A pele deles era mais resistente, eram mais inteligentes e carecas. Não tinham pêlo algum que cobrisse o corpo. As cabeças eram bem mais ovais, porém a parte de cima onde devia haver o couro cabeludo era achatada, e o cérebro parecia reinar como uma pequena coroa. Imagine uma pessoa que acabara de entrar em um caldeirão de ácido e tem sua pele simplesmente derretida. Alie isso a uma cabeça chata, e dentes parecidos com os de uma serra, mais um par de olhos esbranquiçados. Essas eram as criaturas. Seus dentes afiados e pequenos pareciam muito fortes, e suas bocas maiores que as de um humano.

Em certo momento descobrimos que eles por algum motivo defendiam os mortos vivos, digo isso da seguinte maneira. Ataque um morto vivo e eles se enfurecem. O que deduzimos foi que se eles estavam se formando dentro dos mortos então só podia haver uma explicação, era como se fossem a mesma raça e realmente os corpos fossem apenas um recipiente.

Durante minha caminhada, eu os matava e comia a carne deles, aquilo me satisfazia de uma maneira grandiosa. Eu não era simplesmente um assassino, não mais. Eu podia fazer aquilo sem ferir ninguém, ao menos ninguém que importasse. Eu podia satisfazer meu desejo e ninguém se importaria afinal o canibalismo era moda.

Mas enfim, vocês devem estar curiosos para saber o que aconteceu conosco, afinal...

...

Jackie entrou no carro e os soldados nos deram passagem. Eu estava admirado com a coragem daquela garota, mas era fato que ela estava tremendo ao meu lado.

- Você está bem? – Perguntou Pedro.

- Sim. Estou sim – ela disse sorrindo.

- Você foi muito corajosa – Comentei.

- Alguém precisava fazer algo – Ela respondeu rispidamente. Olhei para ela e sorri, afinal ela realmente me deixava desconcertado.

- É, ainda bem que não precisou ser eu – Eu disse rindo.

- É – Ela respondeu me ignorando, eu obviamente percebi isso e me intriguei ainda mais. E foi ali que ela olhou para trás vislumbrando além do pára-brisa. Pôde ver os soldados continuarem a atirar. Havia um policial com sua filhinha recém nascida, ele carregava-a nos braços e corria para salvar a vida dela.

- Sou da policia, estamos limpos – Ele disse, e então um disparo de aviso. A bala acertou-lhe o ombro e ele cambaleou.

- Merda! Tem um bebê nas mãos dele! – Disse exasperadamente, Pedro.

- Eles estão vendo isso – Eu alertei.

- Ahhhh!! O que está fazendo? Já disse, não estamos infectados! – o policial grunhiu protegendo a filha nos braços.

- Afaste-se ou o próximo não será um aviso.

- É só uma criança! Fique apenas com ela, por favor! – Ele suplicou.
Jackie, assistia agora pelo retrovisor enquanto dirigia o carro. Pedro fechou os olhos e pediu desculpas a alguém que estivesse ali. Mas não havia ninguém ali. Vi seus olhos molhados e aquilo de certa forma me comoveu.

Eu olhei na direção do policial. Ele disse mais uma vez:

- Eu sou da policia, ele é um bebê! Vocês são malucos?? Estão todos loucos, seus cretinos!! – E ele avançou.

Senti que a terra parecia girar de uma maneira mais visível, girou tanto que se encontrava as avessas. Uma rajada de balas foi em direção ao homem fardado, que caiu de joelhos segurando o bebê. Ouvi o choro da criança, todos nós ouvimos. Seguimos firmes e ao longo dos quinze metros seguintes ela continuara a chorar.

Não atiraram nela, deixaram-na lá, a mercê do tempo e dos mortos que logo se levantariam, enquanto que os soldados, esses continuavam a caminhar de ré, apontando suas armas e livrando o caminho para que pudéssemos prosseguir, enfim estaríamos salvos, se não fosse...

- Eu te prometo, irei salvá-la! – Pedro gritou e antes que pudesse fazer algo ele saiu do carro. A porta se abriu enquanto o carro ainda estava em movimento, ele caiu de joelhos, se levantou manquitolando e correu destrambelhado na direção oposta a saída daquele inferno.

- O que? Promete a quem? Esse seu primo é maluco? – Perguntei para Jackie que olhou para mim com certa ira.

- Da pra fazer alguma coisa? – Ela indagou aparentemente furiosa com minha até então, complacência.

- Merda! – Eu disse enquanto estendi a minha mão direita para ela – me dê isso aí! – Eu pedi enquanto olhava para os três soldados que se preparavam para estraçalhar o corpo de Pedro.

Saí do carro e mal pude esperar, ou tampouco tive tempo para tentar persuadi-los.

...

Eu sei que sempre interrompo em horas inapropriadas, mas tenho que ressaltar que foi naquele momento que eu tive certeza que havia me reencontrado.

Não tínhamos ainda amizade alguma, estávamos ainda perdidos em meio ao caos de nossas vidas. Eu mesmo não pegava numa arma há anos, e saibam, que já manuseava bem uma arma quando ainda garoto. O sacana do meu pai queria que eu soubesse fazer isso, queria que eu fosse forte como ele.

Lembro de uma foto antiga, nela eu tinha quase dois anos, e ele havia me dado um trinta e oito para que eu segurasse e apontasse na direção de um boneco. Disse que eu devia apertar o gatilho, e então batera a foto. Obviamente não me lembro disso, apenas da estória que ele me contara repetidas vezes, e do riso estranhamente malicioso que aquela criança, por que não ainda um bebê, carregava enquanto segurava aquele seu mortal brinquedo.

...

E lá estava eu, ao lado do carro, sentindo uma sensação estranha. Estava tão enferrujado, tão domesticado por mim mesmo que mal tinha a frieza para matar um morto vivo, e naquele instante a ansiedade aliada ao desespero em ajudar alguém simplesmente me ressuscitou.

Pedro chegou até a criança e abaixou para pegá-la quando um dos soldados fez menção de disparar e eu simplesmente apertei o gatilho.

Eu segurava a arma com as duas mãos, os punhos quase se abraçavam, os braços jaziam meio esticados, um olho fechado e o outro mirando e sentenciando os três soldados, e o que mais me assustou é que meu coração sequer acelerou, eu estava de volta, que merda!

Pude ver Jackie assustada comigo. Tenho certeza que aquela foi a primeira vez que a garota se perguntou que raios de mendigo era eu. Olhei para frente e vi que o restante dos soldados pareciam estar fugindo e estavam. Vi ainda o líder lançar um olhar em minha direção como se quisesse me fulminar com aquele olhar.

Ainda olhava para Jackie e mal percebi que o bebê repentinamente parara de chorar. Apenas percebi o olhar assustado dela, enquanto eu inocentemente naquela fração de segundos ainda desfrutara de meu momento de heroísmo. Mas foi quando olhei para trás e vi Pedro correndo com a criança nos braços, e gritando feito louco que entendi a enrascada que estávamos nos metendo.

- Liga o carro! Liga essa porra logo! – Ele gritou.

- Filhos da mãe! – pensei alto ao ver a multidão de mortos vivos que caminhava em nossa direção. Não haveria balas suficientes para eles. E o estranho é que haviam alguns que pareciam estar tomando outra forma, como se estivessem sofrendo uma mutação. Aquilo era bizarro.

- Entrem! Entrem rápido! – Gritou Jackie enquanto Pedro ainda estava há cinco metros de nós. Eu entrei e bati a porta.

Aquela garota era fantástica. O motor roncou, vi a mão esquerda dela segurando o volante, a direita segurou o câmbio e engatou a marcha ré. Os pneus cantaram e ela torceu o pescoço na direção do vidro traseiro, avistando o primo que fugia com a criança no colo.

Os soldados que eu havia matado se levantaram e o cercaram, estavam mortos, ou quase isso. E foi quando ele gelou, paralisado pelo medo. Naquele momento Jackie deu um peão no carro e a parte traseira atingiu o soldado morto vivo em cheio, jogando-o ao chão.

- Entra aí seu maluco! – Eu disse após abrir a porta.

Olhei para Pedro e não havia como não se encantar pela criança que ele carregava. A pequena usava um par de brincos, apenas uma pequena pedra brilhante pendendo por um cordão de não mais que um centímetro. Seus olhos pareciam um pouco azulados, era moreninha, linda, o cabelo cacheado, e os pezinhos descalços. Agora ela já não chorava mais, o riso havia chegado.

Pedro estranhamente olhou para a criança e o que ele diz deixou aquela situação ainda mais estranha.

- Seu pai está aqui querida, ele disse que você vai ficar bem. Duda eu cuidarei de você para ele pequena, o titio Pepe vai cuidar de você nenenzinho lindo – e ele continuava ninando e mimando a criança como se realmente a conhecesse, por fim ele falou – seu papai era um grande amigo.

Jackie converteu a marcha novamente e seguiu em frente. Fugimos mais uma vez, continuando na direção do cemitério. Lembro de ela lançar um sorriso sincero para mim, e me agradecer por ter feito aquilo, ter salvado Pedro.

Eu sorri de volta, um riso amarelo e sujo, afinal eu era um maldito mendigo, eu ainda não era ninguém.

Continua em...

Quando os mortos caminham – Capítulo VIII - O cemitério

Obrigado por mais essa leitura pessoal!

Leiam os episódios anteriores!

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 15/01/2013
Reeditado em 18/01/2013
Código do texto: T4085834
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