O Mensageiro da Morte!

            Aconteceu quase como uma sorte. Uma dessas que ocorre às avessas e que nos atinge sem a termos pretendido. Vivia naquela besta existência, tão pertinente aos mansos dias do interior, cuidando do meu quintal, do meu trabalho de molhar carimbos na repartição estadual, dando sempre um beijo morno na esposa ao sair e recebendo outro ao voltar, quando observei aquele cão sarnento, do outro lado da rua, naquele fim de tarde prolongado, lambendo os pés do meu vizinho de frente, Raimundo Torquato.
            Teria o quadro passado desapercebido, se não soubesse que Raimundo odiava os cães não permitindo que dele se aproximassem. Teria-o banido, se o tivesse sabido, mas a questão é que, apesar de ter sido cheirado, e de terem seus pés repousados sobre o chinelo molhados, o vizinho não se deu conta do animal.
            Já o vira açoitar tantos outros por menos conta, que não pude deixar de inquietar-me com a visão daquele novo assombro. Curioso, como assim nascem os de nossa casta provinciana, larguei da enxada e, a pretexto de uma prosa sem temor, fui ter com o mesmo.
            Trocamos um ¨Boa tarde¨. Dando voltas, logo interroguei do animal:
            - E aquele cão, Seu Raimundo, de quem era?
            Espantado, pela minha pergunta tão sem pontualidade, baixou um ríspido olhar carregando o falar de uma cólera não disfarçada.
            - Que cão? Sou lá homem de gostar de cachorro?
            Desconcertado, sem saber onde por a vergonha, ainda dei de forçar uma confirmação:
            - Aquele que acabou de lhe lamber os pés...
            - Endoidou, homem? Que eu não deixo cachorro nenhum chegar perto!...
            E saiu adentrando a morada ficando chateado com minha inquisição nada santa. Mais desconcertado fiquei eu. Não éramos bons amigos, no máximo vizinhos que se toleravam sem os achegos de cordialidade exacerbada e o que não era doce, precipitou-se ao amargo. Fui para casa e deitei com a impressão ruim, querendo pedir desculpas no dia seguinte sendo que lhe levaria umas hortaliças para remediar minha intromissão despudorada.
            Dormi mais sossegado. No entanto, ao quebrar do dia, ficamos sabendo pelo choro extravagante da mulher que Seu Raimundo batera nas Portas do Paraíso ainda naquela madrugada poupando-me de dar-lhe a hortaliça.
            Fiquei na intriga e, o assunto teria sido esquecido caso, no dia seguinte, não visse novamente o cão atravessando uma rua. Segui-o à distância, para não espantá-lo. Vi que foi ao bar e, do mesmo modo, lambeu os pés de um bêbado conhecido na região, Seu Tetéu. Deixei estar e fiquei de sobreaviso. Procurei seguir o cão, mas sumiu de mim nas sombras de uma rua.
            - Deve ter-se metido por algum buraco no muro, pensei.
            Não foi sem surpresa, quando no dia seguinte, fiquei sabendo da morte do ébrio Tetéu. Não gostei daquela novidade e, a partir daquele dia, o meu terror foi procurar o cachorro querendo vê-lo longe de mim e dos meus o máximo que pudesse. Sabe-se, entretanto, que ninguém foge às teias do destino. Certo dia, ao sair de casa, olhei para a rua de cima e vi o cachorro vindo em minha direção com a boca aberta e babando. Olhava-me diretamente nos olhos. Deitei a andar acelerado rua abaixo vigiando-o de longe. Quebrei por uma esquina e confesso que corri o quanto pude. Parei na próxima dobra de um quarteirão. Ele, como se tivesse um faro de outro mundo, veio correndo acelerado.
            Deixei de lado aquela intriga de querer adivinhar o que pensariam de mim ao me ver correndo e acelerei para a repartição. Parei na porta e vi que o cachorro se partia naquele rumo. Corri para meu gabinete em desespero ordenando ao funcionário do atendimento que não queria ver ninguém.
            Permiti que minha porta ficasse entreaberta. O animalzinho entrou, lambeu os pés do atendente, após cheirá-lo e partiu. Quando me senti seguro, perguntei-lhe:
            - Viu aquele cãozinho?
            Olhou-me sem entender perguntando do que estava falando. Compreendi, então, qual seria a minha sina e não fiquei surpreso ao saber que meu colega de serviço morrera ao voltar para casa vitimado por um desafeto que lhe cobrara pesada dívida de jogo.
            Não tive mais nenhum dia de paz. Fiquei, nos anos seguintes, a vigiar a presença daquele sinistro animal. Tantas vezes o vi passar, para lá e para cá, que mal me dei conta de cuidar de ser feliz e o tempo correu. Comprei arma e, caso de mim se aproximasse, estaria disposto a liquidá-lo sem pena.
            O tempo correu e fui testemunhando a veracidade daquele visitante do infortúnio. Certa tarde, quando mantinha guarda na minha varanda, fui acordado por minha esposa:
            - Vem para dentro que faz frio.
            Velho e alquebrado, levantei-me lentamente da cadeira de balanço. Antes de entrar, ela se voltou perguntando:
            - Que cachorro sarnento era aquele que te cheirou e lambeu os pés?
            Engoli em seco. Sabia do que me esperava, mas não me encontrava pronto. Afinal, passei tanto em vigília, no intento de escapar da morte, que me esqueci de saborear o melhor da vida...