O Demônio Familiar VII

Ela olhava para a cena e não sabia se conseguiria conviver com aquilo. Era demais para ela. Sua cabeça doía e o arrependimento começava a bater nas portas da consciência. Sentia medo, mas fora avisado que esse sentimento seria o primeiro a tentá-la para fora do caminho que havia escolhido. Seria duro, mas ela deveria ver aquelas cenas. Os corpos jogados pela casa, a criança chorando traumatizada em um canto.

Ford tocou-a no ombro e a chamou.

- Você não está aqui para ficar horrorizada. Investigue.

Segurou-se para não mandá-lo a algum lugar pouco agradável. Desde o incidente no hospital, ele se tornara quase insuportável. Quando não suportava a si mesmo, Ford tendia a se tornar insuportável para os outros também, fazendo-os sofrer com ele na mesma quantidade que sofria consigo mesmo. Naquela mesma noite, fez Holtz sair da cama, deixar o marido e ir para o hospital apenas para se juntar ao restante da equipe que seria insultada e chamada de incompetente.

Agora estavam ali, vendo mais uma cena de morte. O menino sobrevivera de novo. Ela simplesmente não entendeu porque ele deixara a testemunha escapar. Não havia sentido. Podia tê-la pego. A agente tinha certeza disso.

Foi cuidar das investigações. Ouviu de relance que Ford não queria o garoto no hospital. Não queria um incidente como acontecera com o outro. Aprumou os ouvidos para saber para onde a criança iria. Demorou a entender que ficaria com uma tia. A família parecia ser bastante unida.

Holtz registrou a informação muito bem. Foi nesse momento que viu de relance algo importante. Era um pedaço de arame farpado incrustado no joelho do homem torturado. Dessa vez o demônio não fora tão cuidadoso.

Aproveitou que Ford estava gritando com outros membros da equipe e se colocou entre o corpo e as pessoas. Mexeu no joelho com uma pinça, arrancando um pedaço de osso e uma borra de sangue coagulado. Sentiu a dor no próprio joelho, como se estivesse arrancando algo de si mesma. Guardou depressa no bolso, no exato momento em que Ford se aproximou. Ele tinha um faro para as coisas erradas.

- O que está fazendo Holtz?

Ela contou até três para se concentrar. Sentiu o arame no bolso.

- Coletando evidências, Ford.

O agente não fez uma cara boa. Sua expressão indicava a desconfiança. Ela ficou sem saber o que fazer, pois Ford era naturalmente desconfiado da competência alheia. Isso dificultava ler sua expressão.

- Você está dispensada, Holtz. A equipe cuidará o restante. Quero você analisando o caso. É mais útil com suas análises do que com a simples coleta.

Era uma dupla, mas ele se fazia de chefe. Infelizmente, ela não estava com humor para lutar contra isso. Saiu da casa e foi direto para o escritório. O arame no bolso parecia tocar sua pele e rasgá-la. Sentia aquilo como uma força demoníaca a insultando e a desafiando. Ficou tão agoniada que foi ao banheiro e lá ela gemeu e chorou, sentindo uma convulsão na alma que a fez se dobrar e um calor na virilha que a colocou em êxtase. Eram dor e pecado se juntando em uma festa dentro de seu corpo, como se espírito e carne se agitassem e brigassem por um motivo infantil sobre a educação de um filho. O filho, no caso, era a consciência dela.

A dor e o êxtase podiam parecer metáforas quando descritas, mas foram mais do que reais para Jessica. Vomitou enquanto sentia a umidade dentro da virilha. Era bizarro. Era nojento de um modo que não entendia, o que a fez vomitar ainda mais. Não podia crer que algo assim estava acontecendo. Odiou a si mesma e odiou a situação como nunca odiara outro momento de sua vida. Quando se levantou para sair, sentiu um embaraço do mundo e soube que se erguesse a cabeça, negando a vergonha, daria um passo para aquela região da mente em que o consenso da multidão não era mais reconhecido como o certo.