A Canção

Escuto essa canção que invade-me o peito, antes que possa sequer vibrar nos ouvidos. Seguindo o frenesi dos batimentos cardíacos, que desconfiguram a lógica cerebral que o racionalismo impõe. Sou um absurdo humano, onde o som repercute, como se meu corpo fosse um abismo que o eco se propicia. Tateando com falsas falanges, as ondas musicais, que chicoteiam cada célula. Um demônio musical, que está escravizado nesse limbo da percussão, onde o universo se dissolve em barulho infernal. O cataclismo é minha visão projetada nesse timbres que serpenteiam minhas vértebras. Criatura física, que se abala no embalo do ritmo que é um ritual sinistro. Faço do Hades, meu palco, onde orquestro cada acorde dessa tragédia doentia. Bebendo goles longos desse cálice deformado, que trinca a cada toque, sem esfacelar de vez, respingando fagulhas de um cristal profano. Acometido pelo temor dessas cordas que fazem os pés, ¬ — feito os de um equilibrista ¬¬— rodopiarem sobre o caminho estreito de uma corda bamba.

O mundo se abre, como uma flor, com pétalas que se sobrepõem. Alcanço a textura de cada delicadeza vegetal. Quase a voar sem que os pés deixem de tocar o chão. Aliás, estão cravados no solo, pregados com estacas. As marteladas violentas, que aprisionaram os membros inferiores, agora batem em sentido contrário, desejando fazer com que o corpo se desprenda. Nem que para isso, arranque-lhe os pés, e possa levitar com aquele véu de sangue. Com mínimas pegas, que são pingos. Marcos de uma micro história. Um dançarino aleijado, que vagueia pelo ar, feito um espectro decadente. As labaredas do passado em chamas, tentam agarrar-lhe o que resta dos calcanhares. Mas o sangue é de uma viscosidade, que faz com que o fogo desista e levante sua claridade para o alto, como se homenageasse esse Ícaro em ascensão. A música continua a tocar, estigmatizando a alma, que habita o corpo decepado. Pássaro solitário, que faz sua trajetória aérea, com círculos violentos, causando pequenos redemoinhos, que bailam a dança maligna. Os pés, abandonados no solo, parecem vislumbrar de longe, o quão apêndice se tornara, e que agora, mantinha-se condenado a não mais caminhar.

A porta se abre, enquanto comem sua refeição pobre. O olhar do lobo, que avança. Consegue-se fechar a porta, a batalha de forças, da fera que tenta adentrar o abrigo e devorar os famintos. Os ratos não temem ninguém, abocanhando os farelos embaixo da mesa de madeira roída pelos cupins. Tudo lacrado, como um túmulo para dois corpos. Pode-se contar os roedores, se é que existe mais de um, quem sabe o lobo, se conseguir ser levado para essa outra dimensão. Gotas de sangue salpicam sobre o telhado, com o lupino faminto, de olhos diabólicos perdidos na mata densa. O uivo é a tentativa de voz da canção, que faz engasgar as cordas vocais, que são atiçadas como cordas de violoncelo rasgadas por arcos impiedosos. O paladar da dor, que é saboreado em golfadas coaguladas. A tensão é máxima, fazendo com que o mais delicado gesto, promova um atrito agudo. Os golpes são tantos, que não é possível cicatrizar, restando o reflexo a cada linha que traça e estria. O silêncio impera no fim, fazendo sua introspecção soluçar, a ponto de derramar lágrimas secas de uma face de estátua.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 18/03/2013
Código do texto: T4195895
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