Duas sombras - DTRL

Um terror diferente, galera.

Não sei se ele se encaixa no tema ''Alucinações'', mas pode ser interpretado assim.

Espero que gostem.

Foi um sopro extremamente gelado, um sussurro delicado em seu ouvido. De repente, ele ficou arrepiado, e começou tremer.

Acordou assustado e a viu ali. Sentada. Olhando para ele. Ela sorria, mas não estava feliz. Tudo então ficou gelado, o copo com água no criado mudo ficou branco, ele conseguiu ouvir o líquido incolor se tornando sólido.

Mas ele já havia se acostumado com isso. Toda noite era assim. Um fantasma em sua vida, uma sombra extra. Um grande peso em sua consciência.

A sombra, ali sentada, falou delicadamente.

- Pesadelos?

- Mente pesada, pesadelos constantes. – respondeu com os dentes batendo de frio.

- Se agasalhe. Pretendo passar a noite aqui com você.

Ele teria contestado, mas já havia testado a força daquela coisa. Obediente, foi até o guarda-roupa e vestiu um agasalho. Sentiu-se um pouco melhor.

- Vagando sem rumo? – perguntou.

- Sim, graças a você. Visitando entes queridos, que há muito já não via. A perspectiva que se tem dos vivos depois que morre é interessante, você não acha?

- Não sei, nunca morri. – respondeu ironicamente.

Ela se mexeu. Parecia estar desconfortável. Ela está morta. E mortos não tem sentidos. Pelo menos eu acho.

- Não, você nunca morreu. Mas eu já. E sabe como me sinto?

Ele arqueou as sobrancelhas em gesto de pergunta. Queria poupar palavras.

- Me sinto quebrada, despedaçada, roubada. Roubada, isso mesmo. Você me roubou o corpo. Roubou a alegria da minha família. Roubou uma profissional competente, uma paixão. E olha só pra mim, presa a você. O que eu fiz de errado? Tente me dizer. Quem sabe você não compreende, pelo menos um pouco, o que é a morte.

Ele chorou por dentro, mas não por fora. Era frio, mas ela era mais. Ele tremia.

- Eu não fui justo com você. Deixei todos que eram envolvidos com você quebrados. Acha que eu gosto disso?

- Não, eu não acho. Tenho certeza. Mais certeza do que você imagina.

- Você é uma sombra. E...

- Sombras não pensam? Não sentem? É isso que você ia dizer?

Você não está ajudando.

- Não, eu não ia dizer isso. Na verdade eu não ia dizer nada. Nunca o que eu disse resolveu alguma coisa. Eu sempre fui uma sombra, assim como você. Pode parecer que não, mas eu te entendo. Eu sei como é ser um nada, uma coisa a menos no mundo. – sua voz estava embargada. – Você foi minha escolha. E sabe por que?

- Sei. Eu sempre soube. Sempre fui maior que você. Sempre fui melhor que você. E quem sempre me odiou? Você. É sempre você.

Ele sentia vontade de gritar.

- Isso não resolveu nada. – ela continuou. – Você continua o mesmo, na verdade agora está pior. Preso a mim.

Que ironia.

- Eu... sinto muito. Já te disse isso quatro vezes.

- E nas outras três vezes você estava tremendo de frio. Assim como agora.

O que eu posso fazer? Não sou feito de fogo.

- Eu não sabia que você viria.

- Você nunca espera minha visita, não é mesmo? Mas eu estou sempre aqui. Você vai rachar de frio no próximo verão. – brincou.

Mesmo desesperado, ele sorriu. Não queria pensar mais. Sentia-se sujo, culpado. E quando se sentia assim, só uma coisa ajudava.

- Vai matar quem dessa vez? – ela perguntou.

Ele ficou quieto.

- Lembra-se que você viu minha sombra antes de me matar? Você pode impedir a si mesmo. Você pode ser bom.

- Eu não quero ser bom. – ele gemeu.

- Errado. Você não consegue ser bom. Simplesmente porque ninguém é bom com você. Pense em tudo o que você pode conseguir se controlar suas emoções.

O que mais ele poderia conseguir. Já estava condenado. Tinha vontade de sair dali e se jogar na frente de um carro, passar uma faca na sua garganta, pular num rio...

- Eu já te perdoei. – ela sussurrou.

E antes que ele tivesse vontade de chorar ao ouvir aquilo, o ar ficou mais gelado. Ele começou a tremer ainda mais, e olhou para a sombra, que também parecia não entender.

E então os sussurros vieram. Dessa vez era uma voz delicada. Uma menina. Deus, que monstro eu sou?

Chorando, ele ouviu a sombra mais velha dizer.

- Você pode impedir dessa vez. Faça isso por mim.

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 21/03/2013
Reeditado em 21/03/2013
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