A Intervenção

Não conseguia mais suportar, sua vida tornara-se um inferno. Desde aquela última morte, parece que as coisas haviam ficado diferentes. Já havia matado antes, 10 pessoas, para ser preciso, mas a 11°, lhe deixou um terrível sentimento de remorso. Nunca encarava suas vítimas nos olhos, pois acreditava em maldições. Acreditava que um condenado a morte poderia amaldiçoar o seu carrasco com um único olhar, o olhar final. Gabriel “trabalhara” como pistoleiro por cinco anos, quando executou os crimes, com a perícia de um monstro. Diferente dos crimes de pistolagem verificados em cidades do interior do Nordeste brasileiro, os dele eram “limpos”, um único tiro. Não ocultava corpos, apenas fazia o serviço. Às vezes um único disparo, em outras ocasiões, envenenamento, chegou até utilizar um artefato explosivo para dar cabo de um prefeito. A polícia até hoje acha que foi um simples problema no carro da vítima. A metodologia do crime dependeria da situação.

Mas no seu último crime algo deu errado. Não conseguiu fazer o serviço como a mesma presteza de sempre.

Contratado, recebeu a incumbência de eliminar um líder comunitário que vinha causando sérios transtornos para uma grande empresa. Para a construção de um grande empreendimento imobiliário iria desapropriar inúmeras residências onde moravam pessoas carentes. Jovem e sonhador, Michel Nunes, estudava direito, com seus 22 anos, tinha uma vida inteira pela frente. Defendia na justiça aquele povo, organizando campanhas e chamando a atenção da cidade. Um tipo raro de pessoa, cujos inimigos eram aqueles que afrontavam os humildes. Era alinhado aos movimentos sociais.

Achava que tinha uma vida inteira pela frente, mas naquela noite, enquanto caminhava pela rua deserta foi vitimado. Sacando sua pistola semiautomática, Gabriel feriu Michel gravemente. Ao cair no chão com o impacto da bala, o jovem, com a sua sede de viver, ergue-se e correu. O disparo o atingiu na barriga, sangrava muito. Corria mancando, suando, sangrando. Balbuciando em sangue pedia socorro. Ninguém ouviu. Gabriel, sempre tão controlado emocionalmente, frio, calculista, uma máquina, descontrolou-se. Teve de correr atrás da vítima. Quando chegou a uma distância considerável e parou para o tiro fatal, Michel caiu no chão subitamente. “Tropeçara?”, perguntou-se o assassino.

Parou e olhou o jovem por alguns instantes, caído de bruços. Caminhou até ele, lentamente. Seus sapatos sociais pretos de bico fino mal faziam barulho ao tocar o chão. Vagarosamente se aproximou. Quando parecia que Michel estava morto, este virou-se lentamente. Ainda deitado no chão encarou o assassino.

Gabriel, com o rosto delicado, severo, magro, que não acusava os seus 32 anos, perturbou-se. Nunca havia sido encarado por uma vítima antes, especialmente daquele jeito. Michel não demonstrava medo, nem raiva.

- Por quê? – perguntou apenas.

- Você sabe – disse o assassino cuja voz soava mais tranquila do que seu interior.

- Entendo – disse simplesmente Michel demonstrando a dignidade que o sempre o caracterizou.

- Espero...que um dia...possa me perdoar – sussurrou Gabriel.

O tiro atingiu Michel entre os olhos e o liquidou. Morto, permaneceu com os olhos abertos. Gabriel foi até ele e fechou-lhe as pálpebras. “Remorso?”. “Era isso que chamavam de remorso?”, pensou.

Pela primeira vez o dinheiro em suas mãos parecia vermelho. Não mais tinha vontade de comprar nada, de gastar com a esposa, Fabiana e a pequena filha Lara. Os dias, semanas, meses, passaram-se, e o remorso não diminuiu. Era um assassino com família. Tinha um emprego de fachada. Sua esposa não desconfiava. Ninguém desconfiava, mas todos notaram quando mudou. Os olhos abertos do jovem não lhe saiam da cabeça. As matérias dos jornais não lhe deixavam esquecer. A convivência ficou difícil, até que pediu um tempo a “esposa”, que chorosa, não entendeu o porquê.

Gabriel estava decidido, morreria pela própria mão. Alugou um apartamento, e preparou a própria morte. Admirador da cultura japonesa, extirparia a sua existência como um samurai, mas ao invés de uma espada, usaria a sua pistola, arma que a tantos matou.

Meia-noite, acusava o relógio. Usando apenas um calção, Gabriel ajoelhou no meio da sala. Pela primeira vez em meses sentia-se sereno, no momento da morte. Seu corpo rígido, típico de alguém que se exercitava, era o orgulho de sua esposa, como a amava, por isso não podia continuar com ela nem com a filha. Tantas coisas lhe passaram pela cabeça. Á sua frente uma carta, assumindo a autoria de todos os 11 homicídios. Estava delicadamente dobrada alguns metros à sua frente.

Ajoelhado no chão destravou a pistola, ergueu-a e com a mão direita, apontou para a cabeça, do lado direito. Não tremia. Não tinha medo. Os olhos semicerrados. Encontraria a morte com dignidade. Puxou o gatilho.

O disparou passou dez centímetros acima de sua cabeça. Uma mão, quente e reconfortante segurava seu pulso. Gabriel estava paralisado. Trêmulo. Os olhos arregalados.

- Não faça isso, Gabriel – sussurrou Michel ao ouvido do assassino que imóvel, não ousava vira-se para encarar sua última vítima.

- Acompanhamos o seu sofrimento – disse Michel ainda falando ao ouvido – morrer não o espiará do mal que fez a tantos. Nós, aqueles que perecemos por sua mão, o perdoamos. Viva e corrija seus erros, ajudando os entes queridos daqueles cujo mal causou. Viva e faça por merecer essa nova existência.

A essa altura lágrimas jorravam como uma fonte de seus olhos. Embora permanecesse imóvel. “Estava sendo perdoado pelos que matou?”, pensou. Um a um todos os espíritos apareceram e desaparecem seguidamente a sua frente. Todos faziam um gesto de consentimento com a cabeça.

Com o pulso liberto seu corpo dobrou para frente e continuou a chorar copiosamente. Olhou a arma e largou com nojo. Michel deu-lhe uma última olhada, e sumiu. A campainha da porta tocou várias vezes, escutou muitas pancadas de desespero. Gritos de uma voz familiar. Reconheceu-a. Com muita fraqueza ergueu-se e cambaleando foi até a porta, ao abri-la viu a sua esposa chorando.

- Eu soube – disse ela – Ele me veio em sonhos, e contou-me tudo. Disse-me onde estava. Vou te ajudar.

Gabriel a abraçou, sabia o que devia fazer. No dia seguinte procuraria as autoridades e se entregaria, corrigiria os seus erros e buscaria o perdão daqueles cujo mal causou.

Não soube, mas a partir daquele momento, Michel caminharia ao seu lado.

FIM.