“Tudo o que vemos ou parecemos / não passa de um
                                                                            sonho dentro de um sonho.”
                                                                                         Edgar Allan Poe
 
Acordei com gosto de sangue na boca, sempre acordo com este gosto, é doce, não é ruim, senti pela primeira vez quando apanhei do meu pai, ele me deu um tapa na cara quando me viu desenhando a mulher de cabelos negros, fanático católico e puritano, não aceitava o meu talento, ele dizia que não era possível se viver de um único desenho, alterado e metido a dar grito disse que a mulher que desenhava era um demônio feminino qualquer, se dizia um sensitivo, aos gritos disse a minha mãe que aqueles desenhos atraiam o mal.
Quando escolhi ir para o seminário minha mãe ainda estava entre nós, ela ficou feliz a sua maneira, meu pai era católico, mas esperava mais de mim, eu não fui para o seminário porque acreditava nas coisas da religião, não gostava do mundo barulhento fora do mosteiro, queria paz e tempo para os meus desenhos.
 Lembranças antigas, o importante é que ontem encontrei com a mulher dos meus sonhos, foi perto do seminário a beira do rio. A figura feminina que desenhei toda a minha vida, estava longe, seus cabelos negros embalados pelo vento faziam um movimento que escondia o seu rosto, ela queria algo de mim, eu sonhei com a presença dela, faria tudo por ela.
Meu nome é Ralph, o único filho homem, o varão, o orgulho de meu pai que teve um filho homem depois de seis filhas. Quando eu nasci, conta a lenda que meu pai chorou, ele, como muitos homens, acha que um homem que não tem um filho homem não é rei em sua casa, mas foi enganado pelo destino, seria eu o seu maior engano, encontraria em mim talvez o motivo da infelicidade, não sei, pois não segui os seus passos, escolhi ser padre, o que o deixou feliz, em parte de seus anseios sobre meu destino, afinal meu pai foi um católico não poderia dizer não a essa escolha.Certa vez eu perguntei a ele.
-Você não sentiu isso?
O seminário era franciscano conventual, parecia uma grande casa de fazenda, com vários quartos, amarelado, soturno, parecia muito mais um cemitério, por isso me agradou. O complexo todo era mórbido, ao lado do prédio principal do seminário havia um cemitério, conta a lenda que dois seminaristas estupraram e mataram uma jovem de quinze anos, mortos pela policia. Ninguém se atrevia a sair a noite, eu sentava próximo do cemitério, desenhava sem parar e depois adormecia ali mesmo..
 Havia mais seis seminaristas, fingidos cordeiros de Deus, preparados para a obra Cristã, nunca aprendi o nome deles, nunca conversei mais que duas palavras, eremitas, fugidos do mundo tínhamos essa característica em comum. Os dois padres quase não saiam, davam as aulas e preparavam a tarefa do noviciado, logo seriamos frades. Missa pela manhã, instrução à tarde, no período da noite todos tinham a suas tarefas, saber do carisma franciscano, estudar a doutrina através das obras de são Francisco de Assis, besteira que eu fazia para que me deixassem em paz..
Os padres gostavam de mim, era quieto, fazia as tarefas e não incomodava muito, nunca se interessaram pelos desenhos.
Tive uma infância inexpressiva, fui tímido, dono de uma aparência esquisita, considerado feio por todos, tanto que a minha irmã mais nova, de forma perversa, dizia que eu era adotado, minha cabeça grande demais, minhas pernas finas, sobrancelhas grossas. Não era de ligar para provocações, pois tinha boas notas, comia sozinho, não tinha amigos.
 Uma das meninas se aproximou de mim na quinta série.
-Você é estranho Ralph – disse olhando os meus desenhos – fica o tempo todo desenhando essa mulher com a cara de demônio, cadê os olhos dela? – a miserável colocou as mãos sujas nos meus desenhos – e você têm olhos tão bonitos – ela se aproximou para me beijar, retirei o rosto e agarrei a cabeça dela, empurrei com tanta força que ao cair quebrou o braço.
A verdade agora penso que agi por impulso, as vezes o cérebro toma decisões que não conhecemos, fiquei chateado pois a menina tinha um corpo frágil e eu já era bastante forte, nessa época tinha um temperamento arredio, me irritava a toa e me envolvia  em brigas frequentemente, trazendo muitos aborrecimentos para minha mãe e principalmente para o meu pai.
Meu pai foi chamado na escola, claro que tive a punição que merecia: apanhei novamente, dessa vez a surra me rendeu uma cicatriz nas costas que trago até hoje e outra na alma que carrego como talismã.
Quando me tornei adolescente a total cara feia se transformou em uma beleza exótica, fiquei forte, praticava esgrima, meu queixo se definiu, as sobrancelhas deram um ar másculo ao rosto.
Meu comportamento não mudou, gostava de andar sozinho e fazia desenhos da mulher,pois sonhava com ela todas as noites, não era um sonho comum, vivíamos em um outro tempo, carregava uma espada e ela era uma dama, um sonho tão espetacular que não queria que acabasse..
Quando fiz quinze anos minha mãe se enforcou, não senti nada ao ver minha mãe dependurada na sala de leitura, segurando suas pernas de joelhos meu pai chorava, a morte em família provoca mudanças, pessoas que não se amam passam a se amar, pessoas que se amam passam a se odiar, tudo vira do avesso, a culpa invade a casa, as vezes penso que minha mãe não se enforcou, enforcaram minha família, mas a verdade é que  tive um grande alívio, menos uma pessoa para criticar meus desenhos.
Meu Pai transformou o médico ativo em um eremita, depois da morte da minha mãe parou tudo que estava fazendo, se aproximou dos filhos, começou a chorar por qualquer bobagem e frequentemente pedia perdão a todos, sem emprego , passou a viver de rendas, sua barba cresceu.Costumava falar com a minha irmã mais velha, Julia, que meu pai não sentiu a morte da minha mãe, isso não importava a ele, o que incomodou o meu pai foi minha mãe cometer suicídio, sem o seu consentimento, sem demonstrar a depressão que iria matá-la, de forma abrupta abandonando o homem perfeito que ela achava que era.
O destino do meu pai foi à loucura.
Tudo isso está no passado, há dezesseis dias eu encontrei a mulher dos meus desenhos a beira do rio, no mesmo lugar onde os seminarista teriam estuprado e assassinado a jovem de quinze anos, depois jogaram seu corpo no rio, ela  sussurrou o nome: Sonia, de olhos brilhantes, tristes, cabelos negros, pele branca, vestia uma camisola que engolia o corpo magro, hoje vou encontrar Sonia e ela contar um segredo.
A vida no seminário passou a ser chata, tudo que eu queria era sair e encontrar Sonia à beira do lago, sozinho fazia as tarefas, mas os padres não permitiam a minha saiada, por isso tinha que fugir a noite, sentava no lago e adormecia pensando nela, sempre que perguntava se era a menina morta pelos seminaristas ela desconversava, dizia que não queria falar de coisas tristes, meu aniversário estava chegando e ela me disse que, mesmo sendo o meu aniversário ela que queria um presente.
-Qualquer coisa – falei enquanto pintava Sonia de corpo inteiro na beira do lago – sempre vestia aquele  vestido de princesa do meu sonho, dessa vez estava de camisola.
-Curioso – disse ela sorrido.
-Pode pedir – disse orgulhoso da minha força interna e da vontade de cumprir o que ela me pedia – qualquer coisa, vivo e me alimento do amor que sinto por você.
-Ralph, que lindo – disse tocando o meu rosto, pude sentir a sua mão fria – direi no dia.
Não consigo pensar em outra coisa queria encontrar com Sonia, hoje depois da meia noite é o meu aniversário, vou encontrar Sonia, quando parei no portão de ferro fiquei surpreso, pois havia cadeado, olhei o meu relógio, dez para meia noite.
Nunca imaginei que Sonia fosse a menina da lenda, nunca liguei para o que diziam, mas  naquela noite estava com medo, um medo que invadia a alma, um medo que tira a sua felicidade, pensei em voltar para o quarto, o medo do encontro, meu coração disparou, eu teria a resposta, Sonia nunca me respondeu, pois não queria estragar aqueles momentos.
Ouvi os passos, eram passos pequenos, um vento frio passou e congelou a minha face. Eu estava em frente ao portão virei o meu pescoço lentamente, era uma mulher, tinha pés descalços, sua roupa estava suja e manchada de um sangue seco, lama e terra, seus cabelos negros pendiam para frente não conseguia ver a sua face.
 Estaria sonhando?
No minuto seguinte passei a ver o rosto dela, a face que tantas vezes desenhei.
A lenda conta que uma jovem foi morta por um grupo por seminarista, depois de estuprada, foi jogada no rio.
-O que fizeram com você! – gritei com toda a minha força.
 Me disseram que o espírito feminino que vagava pelo seminário, por isso ninguém saia à noite, perturbado e achando que estava dentro de um sonho horrível bati fortemente a cabeça no portão de aço até sangrar.
 Anos depois descobri que ela morreu quando eu nasci.
-Mate a todos,esse é o meu pedido – disse a sua voz, rouca, mais suave dentro da minha cabeça.
Escutei aquela voz suave, pensei em fugir, mas uma força maior me atingiu. Não foi o mal, eu queria aquilo tudo, então o encontro finalmente ocorreu, o que esperei toda a minha vida aconteceu.
Carregava uma faca de caça na cintura, o primeiro que matei não sentiu nada, a faca entrou no seu peito e morreu dormindo, os outros deram um pouco mais de trabalho, o segundo, mais forte correu para me enfrentar, o medo muda as pessoas, dá coragem a elas, segurava uma ripa de madeira, acertou na minha cabeça de raspão e abriu um buraco por onde o sangue jorrou, segurei a ripa, treinado em esgrima, atleta, tomei a madeira das mão dele e com uma força bem superior acertei a cabeça dele, abriu e o sangue manchou a parede, a segunda pancada acertou praticamente no mesmo lugar esmagando o crânio de uma vez.
O medo e tanta violência assustaram os cordeiros do seminário e  quatro deles se esconderam no banheiro, junto com os dois padres, peguei gasolina e queimei tudo.
Sem remorso, fui para a rua ver aquele prédio antigo, cheio de mentiras, queimar, enquanto ouvia a gargalhada dela do meu lado.
-Podemos comemorar - olhei para o meu relógio - passavam dez minutos da meia noite, agora fazemos 17 dias.
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 11/04/2013
Reeditado em 11/04/2013
Código do texto: T4235843
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