Texto assombrado
Meu lar é uma fonte de assombrações.
E neste casebre solitário onde vivo, tenho um bosque inteiro de... assombrações.
Tanto faz ficar aqui dentro ou lá fora. Os mundos são os mesmos. E por toda parte eu vejo assombrações.
Na parede do meu quarto tenho um quadro com uma pintura de meu rosto. Foi-me dado de presente por um pintor que passava aqui pelo bosque numa noite de tempestade, em que o pintor pediu por abrigo até a tempestade passar.
Tivemos uma boa conversa em frente à lareira. Ofereci-lhe chá e pães. Fazia tempo que eu não recebia visitas, e a presença do pintor amenizou um pouco minha falsa solidão.
O pintor ficou assustado com tantas presenças misteriosas em meu lar. Ele ouviu risos de crianças em cantos escuros da casa, o que o deixou curioso e intrigado. Era um pintor viajante, já tinha visto de tudo um pouco, e talvez por isso não demonstrava tanto medo. O que, de certa forma, ajudou para que mantivéssemos uma boa conversa, como eu já não tinha há muito tempo.
E ele teve a ideia de pintar meu rosto enquanto esperava a tempestade passar. Concordei, desde que me desse o quadro para decorar a parede de meu quarto. E com um sorriso de satisfação, ele desenrolou a tela que trazia com ele e preparou as tintas.
Enquanto pintava, não se importou com o canto grave dos fantasmas que surgiam vez ou outra. Além de não se importar também com sons de violões tocando, batidas de leve na janela e rostos misteriosos que surgiam do lado de fora para desaparecerem logo em seguida, risadas graves e agudas que vinham do nada, e o mais interessante: sussurros em seu ouvido aconselhando-o sobre a forma como deveria pintar o quadro.
Esses mesmos sussurros conversam comigo sempre que escrevo, e todos os acontecimentos fantásticos desse dia são rotina comum no meu dia-a-dia.
E acredite, caro leitor, quando o meu piano velho começa a tocar sozinho, é sempre na hora em que mais preciso ouvir uma canção que me inspire. Nesse ponto, as assombrações da minha casa têm sido uma ótima companhia. E se tudo isso é loucura para o homem comum, digo que não preciso da sanidade imposta como cadeia à minha liberdade de viver.
Mas voltando ao quadro, o pintor me alertou que, tal como a casa, a pintura também poderia sofrer influências das assombrações. E ele tinha razão...
— Geralmente deixo os olhos por último, pois são os elementos mágicos de um retrato. – Disse o pintor.
Fiquei imaginando que estranho pintor era aquele, que estranhos universos havia presenciado em suas “viagens em busca de respostas para os mistérios da vida”, como ele mesmo havia dito, e como desejava dar forma a esses mistérios através de suas tintas.
O extraordinário ocorreu quando ele se abaixou para molhar o pincel na tinta, quando faltavam apenas os olhos. E quando se levanta, eis que os olhos em meu retrato estavam feitos, com uma perfeição além do normal.
Olhei atentamente para o quadro e perguntei o que tinha ocorrido, ao que o pintor me respondeu que aqueles olhos tinham a alma de minha casa assombrada. E que nada poderia fazer para desfazer aquilo que tinha sido feito pelas assombrações, como forma de ganharem vida sobre o quadro, com propósitos desconhecidos para ele.
“O quadro estava assombrado?”, pensei. As sombras do meu lar queriam ganhar vida, mas eu subestimei seus propósitos macabros e malignos. O pintor corria perigo e eu havia ignorado isso, ou talvez esquecido. Não sei, talvez um de meus defeitos seja achar que muitos pensem como eu...
* * *
Hoje, ao escrever esta história, tenho esse quadro na parede de meu quarto, bem próximo de minha escrivaninha. Ainda me lembro de quando encontrei o pintor morto em minha casa. Ele permaneceu durante toda a noite como meu hóspede, e quando acordei o encontrei em fragmentos.
Foi estranho, mas juro que pude ouvir estalos bastante altos durante a noite, como o som de ossos se partindo. E fiquei preocupado... o que houve com o pintor para ele morrer daquela forma?
ELE MORREU PORQUE FOI AMALDIÇOADO, ELE VIU SEUS OLHOS NOS SONHOS E ATRAVÉS DESSA MALDIÇÃO TORNOU SEU MEDO REAL.
Caro leitor, ao fazer a pergunta acima, deixei minha escrivaninha e fui preparar um chá. E quando voltei, eis que vejo essa resposta: “ELE MORREU PORQUE FOI AMALDIÇOADO, ELE VIU SEUS OLHOS NOS SONHOS E ATRAVÉS DESSA MALDIÇÃO TORNOU SEU MEDO REAL.”.
Exatamente dessa forma, escrita com letras maiúsculas. Sim, leitor. Eu não escrevi essa frase.
E para meu espanto, meus olhos brilhavam em meu retrato, como se aquele quadro estivesse vivo.
É preciso ter cuidado ao ver essa minha imagem, onde “meus olhos” trazem uma resposta terrível.
E às vezes me pergunto o que aconteceria se, de alguma forma - como aconteceu com o pintor - outro alguém testemunhasse meus olhos brilhando tão vivos naquela imagem. Acho que não é mais uma boa ideia aceitar visitas. Depois do que houve, já não creio na boa receptividade para com meus “hóspedes”.
Parei um tempo para pensar, olhei para o quadro maldito, e lá estava a minha imagem ganhando vida! Ele (ou eu, como achar melhor) inclina o rosto e começa a escrever, para logo em seguida parar com seus olhos vivos e fixos em minha direção. Sim, meu retrato segurava uma caneta e papel na pintura, apoiado sobre minha escrivaninha perfeitamente ilustrada. Tudo muito bem ilustrado, com o interior de meu lar servindo como plano de fundo.
Olhei para o texto em meu papel, e aqui transcrevo o que encontrei:
“O QUE ACONTECERIA? ... ESSE ALGUÉM SONHARIA DURANTE A NOITE, COMO O PINTOR, COM SEUS OLHOS MALDITOS, E MORRERIA COM DIVERSOS OSSOS DO CORPO QUEBRADOS”.
Caro leitor, não estou pedindo que acredite em qualquer maldição. Mas se alguma vez imaginar minha imagem, tal qual me apresento, é melhor não sonhar com meus olhos fixos em você.
O que aconteceria?
Recuso-me a transcrever aqui a resposta que acabei de receber neste texto assombrado...
E durante muito tempo, desde o nascimento desse quadro, cada desabafo que recebo sobre sonhos macabros com minha imagem, em cartas que anunciam mais uma morte, são epitáfios que poderiam dar origem a um livro de sonhos proibidos.
“Então destrua esse maldito quadro!”, o leitor deve estar agora exclamando. Mas não farei isso (aliás, quem garante que você não vai sonhar comigo hoje?). Com o tempo o gosto da maldade para alguns pode ser amargo, mas para um escritor que convive com assombrações, torna-se tão doce quanto um veneno preparado por um assassino. Então, mudando tudo o que eu supostamente dei a entender para que tome cuidado, eu espero mesmo é que você morra...