O menino do cabelo vermelho

As árvores pareciam correr junto do carro, todas muito rápido. Olhá-las dava à André uma sensação de inesgotável pequenez. Ao seu lado, seu irmão Breno dormia tranquilamente. Era verdade que Breno não estava muito ansioso para chegar ao sítio do avô; a última vez que ele visitara o lugar, era apenas um bebê. Mas André não, ele se lembrava exatamente da última visita ao vovô. Lembrava-se do fogão à lenha, do chocolate quente no fim da tarde, e principalmente das histórias de seres encantados que o vovô Henrique contava todas as noites.

Quando ia dormir, André sonhava com todos esses seres, via-se encontrando-os, conversando com eles. Ele nunca tivera a oportunidade de escapar de seus pais para explorar a floresta ao lado da casa, mas agora que era crescido – já tinha 17 anos – talvez conseguisse permissão para tanto.

Depois de três horas de curvas e serras, a família finalmente chegou ao sítio. André balançava o irmão sem a menor delicadeza, para acordá-lo. Tendo recebido apenas resmungos como resposta, saltou do carro e correu para o abraço do avô, que o esperava. A hora do almoço chegou rapidamente e a família se reuniu ao redor da simples mesa de madeira para degustar a especialidade do vô Henrique: porco pururuca com farofa de banana. Após o almoço, seus pais se reuniram com o avô para “tratar de assunto de gente grande” e deixaram André e Breno sozinhos.

As árvores da floresta balançavam ao sabor do vento e um leve sol de outono fazia as sombras parecerem magros fantasmas. André estava absorto em com esses pensamentos olhando pela janela, quando um barulho abrupto o trouxe de volta à realidade. Num sobressalto ele olhou para trás e viu Breno parado em frente à uma mesinha, com uma escultura espatifada à seus pés.

- O que diabos você está fazendo, seu idiota?! – berrou André.

Virando-se calmamente para ele, Breno disse, dando de ombros:

- Era uma estátua de gato. Eu odeio gatos.

- E isso te dá o direito de sair quebrando as coisas do vovô? Qual é o seu problema, seu cabeça de bagre? – André estava furioso com a atitude de Breno.

O irmão mais velho, bufando, foi à cozinha pegar uma vassoura para limpar a sujeira. Após deixar o chão sem nenhum caco e jogar os restos da escultura no lixo, voltou-se para Breno:

- Vamos dar uma volta lá fora, antes que você quebre mais alguma coisa.

E saiu da casa arrastando o irmão pelos braços. Os dois andaram juntos por alguns minutos, adentrando cada vez mais na floresta. A cada passo que davam, ela tornava-se mais densa e a luz do sol menos perceptível.

- Eu quero voltar – resmungou Breno – odeio mato, odeio tudo isso. Quero voltar pra casa logo.

- Você é um bebê chorão, Breno. Pare de reclamar e divirta-se.

Fazendo cara de deboche, Breno pegou uma pedra pontiaguda do chão e enquanto andava, jogava-a para cima. Subitamente, o garoto parou. André seguiu os olhos do irmão e divisou a silhueta de um corvo cor de ébano, contrastando com a mata muito verde. Breno levou o dedo à boca, pedindo silêncio ao irmão. Mirou por um tempo e arremessou a pedra à toda velocidade em direção ao corvo. André teve tempo de gritar “não!” antes do corvo levantar voo, à centímetros de onde a pedra passou. Enquanto ganhava altura, ele soltou um corvejo amedrontador. A floresta ao redor pareceu encolher-se com o som, e o ar pareceu parar por uns segundos.

André deu um empurrão no irmão, ainda mais irritado, e dando passos rápidos, seguiu adiante. Depois de alguns segundos, percebeu que Breno não havia seguido-o e parou no meio de uma pequena clareira para tentar ouvir os passos dele. Silêncio. Um pequeno crepitar na folha das árvores chamou a atenção do garoto. O farfalhar se intensificou conforme um vento repentino invadiu a tarde. Uma nuvem de poeira esbofeteou a face de André, que assustado, começou a gritar pelo nome do irmão. De repente o barulho das folhas não era mais o único a ser ouvido. Passos - impossível de distinguir de que direção vinham – cada vez mais velozes ecoavam pela floresta, juntamente com um grito. Foi o grito mais aterrorizador que André já tinha ouvido. Era gutural e melancólico, como o assovio de mil demônios ao mesmo tempo. Seus pelos se eriçaram e um pânico crescente o invadiu. Ele tinha de encontrar Breno e sair dali.

Tentando rapidamente se lembrar de que direção tinha vindo, saiu cambaleando procurando por sinais do irmão. O grito havia parado, mas o som de passos parecia ainda mais alto, e o vento trazia poeira, dificultando a visão de André. Olhando atentamente para o chão, encontrou pegadas. Eram pegadas pequenas e poderiam com toda a certeza ser de Breno. Elas indicavam a direção contrária à que André seguia. Deu meia volta e seguiu-as, com as mãos tampando o rosto para evitar poeira nos olhos. Andou por tempo indefinido seguindo as pegadas, que começaram a parecer levá-lo sempre ao mesmo lugar. “Essas pegadas não podem ser do Breno, por que ele tiraria os sapatos? E por que ele andaria em círculos? Eu já teria visto ele passando por aqui.” André se questionava sem parar sobre as misteriosas pegadas, enquanto o pânico crescia dentro de si.

Um barulho de galho quebrando muito próximo de si o fez dar um grito de susto. André olhou cautelosamente para a direção do barulho. Haviam duas silhuetas. Ambas pequenas, uma delas caída no chão, provavelmente desacordada – ou morta – e outra agachada ao lado. Trazia consigo uma lança de madeira e osso e vestia apenas trapos. A silhueta começou a mover-se em direção à André, e quando passava nas esparsas frestas de sol, seu cabelo vermelho como fogo brilhava. O garoto reconheceu seu irmão sendo arrastado pelo garoto do cabelo de fogo e sem saber o que fazer, apenas ficou parado, tremendo de medo, observando-o se aproximar cada vez mais.

Quanto mais perto ele chegava, mais bizarro ele parecia. Seus olhos tinham um brilho amarelo sobrenatural, seus cabelos pareciam ter vida própria, balançando de um lado para o outro e irradiando aquela luz vermelha. Ele mexia os lábios enquanto andava, talvez sussurrando alguma coisa, e seus dentes eram afiados como os de um cão. O andar dele era meio trôpego, e o motivo era claro: seus pés eram virados para trás. Ele trazia Breno arrastado pela camisa.

Finalmente, a criatura parou a menos de três metros de André. Eles se olharam por algum tempo, quando André criou coragem e disse, gaguejando e sem muita convicção:

- Devolva o meu irmão!

O ser virou a cabeça sutilmente para a esquerda, como se não tivesse entendido. Em seguida, ele esboçou algo parecido com um sorriso, mostrando os dentes pontiagudos. O Curupira ergueu a lança para cima, com a ponta virada para Breno. O sorriso febril continuava em seus lábios e os olhos exibiam um brilho ainda mais paranormal que antes.

- Não!!! – berrou André, atirando-se em direção aos dois.

Com o cabo da lança, Curupira deu uma estocada muito forte no estômago de André, fazendo-o urrar de dor e cair no chão. Sua visão ficou turva e sua respiração vacilava, ele só conseguia ficar com a cara grudada no chão, olhando para o verde das folhas. O verde, entretanto, foi salpicado de vermelho no momento em que Curupira enterrou sua lança em Breno. Repetidos golpes foram proferidos. Cada estocada fazia o coração de André querer parar. Ele chorava feito uma criança, berrava para a criatura parar, chamava por sua mãe. Tudo em vão.

André acordou algum tempo depois, com seus pais e seu avô abraçando-o. Suas vozes pareciam distantes, como se estivessem falando atrás de uma parede. O toque da pele muito quente de sua mãe o fez estremecer. Ele olhou para onde Breno fora atacado. O sangue continuava lá, mas não havia nem sinal dele ou da criatura. Eles tentaram interrogá-lo, perguntaram onde estava Breno, o que era aquele sangue. André nada conseguia falar. Apenas balbuciava coisas sem sentido.

Os anos passaram como um rio caudaloso, mas as cenas da morte do irmão nunca saíram da cabeça de André. E como poderiam, se ninguém nunca acreditou nele? Ele procurou por anos a fio pelo Curupira, indo novamente à floresta, procurando especialistas em folclore, chamando por ele. O único que parecia acreditar na sua história era seu avô. André perdeu vários empregos, pois tinha dificuldade de concentração e depressão. Cansados, seus pais fizeram a única coisa que lhes restava: interná-lo num hospício.

Todas as noites, em seus sonhos, André revivia a cena da floresta e projetava nele seu único desejo desde o incidente. Dessa vez, o verde infinito da mata era enfeitado com outro sangue. O ser observava agora outro corpo jazido. O dele próprio e não o de Breno. E em sua cabeça, André veria aqueles olhos brilhantes do guardião das matas e dos animais em cada amarelo; e os cabelos cor de fogo em cada vermelho. Para sempre.

Carol Santucci
Enviado por Carol Santucci em 31/05/2013
Reeditado em 31/05/2013
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