Domingo - DTRL

A vida é efêmera. Tão simples e direta como uma brisa morna numa manhã de domingo, trazendo o aroma do mundo até nós antes de desaparecer. Talvez eu esteja melancólica para ter esses pensamentos, mas não a nada que posso fazer, acho que é natural as pessoas ficarem melancólicas depois de voltarem do cemitério.

Não que eu tenha vindo de lá agora, na verdade faz duas semanas desde que estive lá pela primeira vez, contemplando com tristeza a face de minha mãe. Sua idade era avançada e ela sofria de tantos problemas de saúde que era um milage ter passado dos noventa anos. Mesmo assim eu só pensava em como é estranho as sensações que um determinado ambiente desperta em nós. Eu nunca havia reparado em como minha mãe ficava bela com aquele colar dourado ou com aquele vestido carmim, usado tantas outras vezes em ocasiões importantes, e que agora era usado pela última vez, antes de ser posto para apodrecer junto com os restos de uma das pessoas mais importantes de minha vida.

Pelo menos pude perceber naquele momento o quanto era amada, meu marido e minhas duas filhas estavam sempre comigo, bem como membros de minha família que há muito não via. Desde tios distantes, como o Gérson e a Cláudia, até primos que não via a muito tempo. É engraçado a forma como a vida age, quando éramos pequenos, eu, minha prima Fernanda e meu primo Túlio pensamos que seríamos amigos para sempre. Depois a Fernanda se mudou e ficamos eu e o Túlio somente. Depois foi a minha vez de ir para o interior e a amizade que tínhamos desapareceu. O nosso domingo havia terminado.

- Mamãe?

Minha filha entrou no quarto. Era a mais velha, uma garota esperta já com seus nove anos. Ela usava um pijama de flanelas e pantufas de tigre. Seu olhar era distante e perdido. Os cabelos longos caíam tristemente pelos ombros. Não podia ser diferente.

- Não consegue dormir? – Perguntei e ela aquiesceu para confirmar.

Chamei-a para sentar em meu colo. Estávamos na cozinha e a minha frente havia uma xícara de chá que eu havia feito, por diversas vezes pensei em bebê-la mas meus devaneios acabaram tirando o foco, no fim acredito que tenha feito aquela xícara para minha pequena mesmo.

- Eu sinto falta dele mamãe...

Beijei sua bochecha sentindo o cheiro gostoso de sua pele. Sim, é claro que ela sentia falta dele. Toda criança sente falta do próprio pai.

Uma semana depois do falecimento de minha mãe, meu marido morreu. Foi algo repentino e que pegou a todos de surpresa. Não que não fosse algo esperado, ele sofria de problemas do coração e sua pressão sempre ia a níveis perturbadores. Tudo bem que uma semana de diferença era algo absurdo, mas no funeral de meu marido minha prima Fernanda disse algo muito inteligente, ela disse que a desgraça era covarde, porque nunca agia sozinha.

Fui menos reconfortada naquele dia, principalmente porque precisava ser forte para minhas filhas, mas também porque a proximidade de datas fez muitos de meus familiares não virem. Meus tios haviam voltado ao trabalho, Túlio havia viajado a serviço... Poucas vezes me senti tão desamparada como naquele momento.

- Porque não toma o chá e eu te levo para dormir depois? – Perguntei ao perceber que as lágrimas voltariam a descer pelo rosto de minha filha.

- Eu não estou com sono... Eu não quero dormir... Eu quero o papai...

- Eu sei querida, mas olhe, às vezes as coisas acontecem. Você tem que ser forte nesse momento. O que o papai ia pensar se te visse triste?

Ela fungou algumas vezes, mas segurou o choro.

- Aqui, beba o chá. Ele vai te dar sono.

O líquido desapareceu pela garganta do meu anjinho e eu a peguei no colo.

- Não chore linda. Um dia você verá o papai de novo. – Disse beijando sua testa.

- Nossa, eu fiquei com sono de repente. – Foi o que ela disse.

- Eu sei querida. Foi o chá. Você vai ficar com muito sono agora.

- Mã... mãe...

Percebi meu anjinho não conseguir manter a consciência e desmaiar. Levaria quanto agora? Um, dois minutos? Não importava, eu só faria algo de manhã. A dose cavalar de calmantes naquele chá conduziria meu anjinho ao sono mais profundo que ela jamais teria.

Fernanda nunca poderia saber, mas depois que ela se mudou eu e Túlio fomos mais do que somente primos. Fomos amigos, amantes e confidentes, e teria sido assim se eu não tivesse me mudado. Mas às vezes a vida é engraçada. Às vezes ela é uma brisa de domingo, mas às vezes nós temos sorte de viver a semana toda, até o próximo domingo chegar.

Uma pena Túlio ter ido viajar no enterro de meu marido, fez sua morte ser em vão. Mas quando eu ligar aos prantos para ele amanhã, ele com certeza virá para o enterro. Talvez eu converse com ele amanhã mesmo, ou talvez espere até a semana seguinte, quando meu outro anjinho encontrar sua vez de dormir para sempre. Sem marido e filhos nada ficará em nosso caminho.

Eu sorri ao subir as escadas. Sorri enquanto o pequeno coração de minha filha dava sua última batida.

Não sei se já era domingo, mas minha semana, sem dúvidas, estava acabando.

FIM

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Dessa vez deu tempo de participar!

Gantz
Enviado por Gantz em 20/06/2013
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