LIZANDRA (parte 2 de 4)

Ela estava intrigada com aquele moço estranho, de maneiras finas e rosto cheio de um implícito, porém tremendo sofrimento. O que ele queria? Teria comprado a casa? Das outras três vezes, tinha sido diferente. Bisbilhotara a vida das famílias antes de aparecer para elas e expulsá-las do lugar. Três grupos familiares aparentemente decentes, mas cada um tinha seus podres, que ela descobriu um a um. É uma das vantagens de ser uma alma presa entre o além e o aquém das dimensões da existência.

Os primeiros a residir na casa, depois da morte da antiga dona, eram um casal de meia-idade, com uma governanta. Não tinham filhos. O homem tinha um caso com a funcionária, e todas as noites passava no quarto dela, onde se demorava antes de ir para o leito conjugal. Mas a esposa sabia. Frígida, não se interessava por sexo, e consentia que o marido satisfizesse seus desejos naturais. Da segunda vez foi mais interessante. Casal com dois filhos adolescentes, o rapaz com 18 e a moça com 16 anos. E um caso de incesto fraterno, amavam-se de corpos e almas os dois jovens. Finalmente, a família que enojou Lizandra. Sadomasoquismo, coprofilia e até mesmo coprofagia presentes naquele insuspeito grupo composto pelo casal, dois filhos e uma filha e dois empregados. Todos degenerados. Esses a alma penada teve prazer em expulsar. Apareceu para eles num momento de orgia, caprichou nos expedientes fantasmagóricos e, certamente, eles jamais esquecerão aquela noite em que saíram correndo da casa, sem ter ao menos tempo de se vestir. Nem mesmo mandaram buscar os móveis! E eram eles que ainda mobiliavam a residência abandonada.

Mas o homem de semblante triste era diferente. Estava sentado numa poltrona, junto à grande janela envidraçada. Lia um livro à luz do luar que atravessava a vidraça. Lizandra se colocou às costas dele, e viu que não era bem um livro. Era um álbum de fotografias. Fotos dela! Quando criança, na fase de adolescente e recém-saída desse temporal etário. A última foto mostrava uma moça sorridente de 19 anos. Foi naquele ano, ela lembrava nitidamente, que ela parou de tirar fotos de si mesma, ou de permitir que o fizessem. Recordou também, com um travo na garganta que não mais possuía, que aquele foi o ano em que sorriu pela última vez.

Sentiu crescer uma raiva quente, quase palpável, ao pensar que seus malditos parentes tinham permitido a um completo estranho ver suas fotos. Felizmente, não havia nenhum escrito que se referisse a ela, nenhuma carta ou anotação, diário ou bilhete, ou os amaldiçoados certamente os colocariam nas mãos do sujeito. Ela queimara tudo, e deixara de escrever. Agora sabia que tinha sido uma decisão inteligente. Afinal, era um passado feliz que se perdera em meio a uma época posterior de absoluto sofrimento e ódio.

Sua ira se dissipou quando algo aconteceu, algo que não deveria ocorrer. Sem se voltar para ela, ainda sentado, na verdade sem mover um único músculo a não ser os necessários para a emissão da fala, o homem disse:

– É muito indelicado ficar espiando sobre as costas das pessoas...

Como ele podia saber que ela estava ali? As pessoas somente a viam, ou mesmo percebiam sua presença, se ela assim o desejasse. É uma prerrogativa daqueles que já morreram e que continuam vagando entre os lados “de lá” e “de cá”. Então, certamente se tratava de uma pessoa sensitiva. Um vidente ou um místico, algo assim, e pelo jeito não era um charlatão. Que se danasse! Lizandra decidiu no mais íntimo de seu negro ser que o expulsaria dali, como fizera com os outros, mesmo que tivesse de usar recursos até então desnecessários. O homem se levantou, lentamente, como se carregasse o peso e o cansaço de séculos sobre seus ombros largos. Deixou com suavidade o álbum sobre uma mesinha e voltou-se, enfim, para o avantesma.

– Precisamos conversar, Liz.

Aquilo deixou o espectro absolutamente sem reação por alguns instantes. Quem era ele para chamá-la daquele jeito? A única pessoa no mundo que a chamara assim já morrera. Ele não tinha esse direito. Teria sido uma coincidência, uma forma tosca de forçar intimidade? Ou ele sabia mais dela do que ela ousara imaginar? Não importava! Se antes ele tinha seu desprezo, agora poderia contar com os frutos de sua fúria! Como ela não se manifestava em palavras, ele insistiu:

– E então? Temos que ter essa conversa, sabe?

A morta tornou-se visível. O outro continuou ali, imóvel. Nenhum susto, nenhuma demonstração de assombro ou repulsa. Por outro lado, não havia interesse nem fascínio. Parecia estar acostumado àquilo.

– Você vai sair daqui! –, ela rosnou, como se a voz saísse entre os dentes que ela não tinha desde o desencarne.

– Não, minha amiga. Eu não vou. Mas você precisa deixar esta casa. E sabe disso. Seu lugar não é mais aqui. Desde que sua carne deixou de pulsar, você deveria estar em outro lugar.

Havia uma suavidade na voz, uma serenidade que surpreendeu o espírito hostil. Parecia que o homem falava a uma criança, ou a alguém com dificuldades de entender as coisas.

– Isso não é da sua conta! Esta casa é minha, e será para sempre, ou enquanto eu quiser que seja. O intruso é você. E vai sair!

Acompanhando a última palavra, um prato de louça com graciosa pintura no fundo voou na direção do sujeito. Espatifou-se na parede atrás dele, à sua direita. Não era mesmo para acertar. Lizandra calculou que aquela demonstração de telecinese deveria espantá-lo dali. Com a segunda família tinha dado muito certo. Mas o máximo que ele fez foi deixar escapar um suspiro quase imperceptível, como se pensasse que aquilo era desnecessário. Que as coisas poderiam se resolver de outro modo.

O jarro foi reduzido a pequenos cacos no impacto com a mesma parede, agora à esquerda do visitante. Novamente, ele não se moveu. Então, ele queria que fosse de um jeito mais radical? Que fosse assim, resolveu o fantasma. A um pensamento seu, vários objetos deixaram a estante e partiram rumo ao homem. Cinzeiro, peso para papel, caneta, duas estatuetas de pedra-sabão, isqueiro. Bólidos na direção do aparentemente indefeso indivíduo. Que, de repente, ergueu o braço direito com a mão espalmada, como se quisesse se defender. Mas ele não precisaria fazer isso: os objetos pararam no ar, diante dele, a meio metro de distância. Ficaram suspensos até que ele fez um movimento com a mão e eles caíram ao chão. Realmente, era uma pessoa ímpar!

– Você já deve ter percebido que não adianta tentar me ferir ou me intimidar. Estou aqui para uma conversa. Não sou seu inimigo. Quero libertar você.

A gargalhada de Lizandra teria feito gelar nas veias o sangue de qualquer outra pessoa.

– Me libertar? De quê? De quem? Não estou presa nesta casa, saio daqui quando eu bem entender. Só que eu não quero sair, e não vou. Isso aqui é meu! E sempre será.

– Quero te libertar da prisão que você mesma construiu ao redor de si, Liz. Quero te libertar de você. Já não há motivos para continuar com isso. E eu preciso saber como aquela moça radiante se tornou esse ser de trevas que você é hoje.

O ser etéreo levantou os braços lentamente, fazendo formar um redemoinho ao redor de seu corpo intangível, postado em forma de uma pessoa crucificada. Mas o que rodopiava em velocidade cada vez maior eram os objetos da sala, que se iam agregando ao torvelinho. Girando cada vez mais rápido, faziam um barulho sinistro em que se misturavam madeira, louça, plástico e tecido. De repente, Lizandra moveu os braços para frente, e os objetos rumaram na direção do seu interlocutor, em mais um ataque, muito mais forte que o primeiro.

A reação do homem de índigo foi proporcional ao ataque sofrido. Recuando o corpo e assumindo uma posição de combate, moveu os braços numa espécie de balé marcial e fez com que todos os objetos voltassem na direção da agressora. Claro que todos passaram pela criatura intocável, mas, em seguida, uma onda de luz a atingiu, lançando-a com força contra a parede. Lizandra não podia entender como aquilo tinha acontecido, mas, ela primeira vez desde que morrera, sentiu algo parecido com dor.

Aproximando-se dela, que permanecia colada à parede, como se fitas adesivas invisíveis a mantivessem ali, o outro perguntou, com voz calma:

– E então?

Sentindo-se subitamente cansada de ser quem era, Lizandra cedeu:

– Muito bem, que seja assim, então. Vou contar a você a minha história.

(Continua...)

CELSO MORAES
Enviado por CELSO MORAES em 01/08/2013
Código do texto: T4415104
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