A Espera - DTRL

Hoje meu amor veio, novamente, me visitar...

Ah, como amo essas visitas que se repetem noite após noite. Como alegra minha vida esse deus terreno materializando-se tão próximo a mim. Sinto-me pequena diante de sua presença, insignificante a ponto de desejar estar agarrada a esse corpo gelado que vence todas as noites só para me ver.

Ainda lembro a primeira vez que ele apareceu. Foi num dia comum, abri os olhos e senti algo diferente, sutil, como se o ar a minha volta tivesse ganhado novos aromas, um toque mais excitante, mais perigoso... De qualquer modo, percebi quando ele se aproximou pela relva. Era uma noite de lua nova e a escuridão era quebrada somente pela luz de uma lâmpada próxima. Foi quando eu ouvi seu leve caminhar acariciando a grama verde até parar próximo de minha morada. Lá ele ficou, fitando as portas de minha casa com olhos vermelhos. Desejando que eu saísse para agarrar-me em seus braços...

Confesso que desejei, e ainda desejo, ir a seu encontro. Abraçar o corpo gelado pela madrugada, hipnotizar-me pelos olhos ora, castanhos ora vermelhos, unir-me aquele ser em um ritual inumano e eterno. Ah, como é frustrante ter esse desejo e não poder realizá-lo, como é frustrante ter que esperar horas sentindo aquela criatura tão próxima e mesmo assim tão distante de mim.

Já fazem duas semanas que o sinto, noite após noite ele vem e me aguarda, como um dócil animal. Confesso que gostaria de saber o que o mantém do lado de fora, porque não vem a meu encontro se sabe que estou aqui? O que poderia impedi-lo? Às vezes me parece que a única coisa faltando é um mero convite, um chamado, que arrebente seus grilhões e o faça avançar.

E quando finalmente nos encontrarmos? Quando nossas faces ficarem próximas o bastante para que eu sinta o ar gelado que vem de seus pulmões? Como meu corpo reagirá a uma presença tão maior que a minha, algo acima de mim nos planos espirituais? Como será ser tocada por um deus?

Indisposta a continuar naquela expectativa, eu por fim grito. Grito para que ele entre, para que me tire dessa vida miserável! Grito que estou pronta para aguentar toda tristeza que a vida que ele leva pode me oferecer! Entretanto, por mais que eu grite, por mais que eu bata nas paredes, por mais que eu clame, sinto que nada disso chega a seus ouvidos. Me parece que há algo ainda maior do que a distância o separando de mim. Quando percebo isso me pego a imaginar o que seria tal coisa, o que seria poderoso o suficiente para manter dois corações tão distantes?

Talvez o tempo? Faria sentido, afinal, estamos separados por uma eternidade de experiências. Ele sentiu infinitas coisas enquanto eu ainda não senti nada, eu sou uma nota que acaba de ser composta enquanto ele é toda uma sinfonia, eu sou a primeira pincelada e ele a Monalisa. Sou insignificante, insignificante a ponto de achar que mereço estar em sua companhia.

Agora faz sentido, agora sei porque ele vem noite após noite e espera à minha porta. Faz isso porque está em meu aguardo, porque esperará toda sua vida, se preciso, até que eu me torne uma melodia, uma obra de arte, que esteja apta a estar em sua presença. Isso é amor! Isso é ser incondicional! Eu ergo minhas mãos e toco a madeira que me separa do mundo exterior, não sou forte para abri-la, ainda não, mas ele me esperará, aguardará o quanto for necessário...

Afinal ele é humano e seus sentimentos são puros. Sua pele é gelada porque é frio o vento noturno. Seus olhos são vermelhos porque ele chora minha morte. A angústia o consome e por isso ele virá, todos os dias, chorar diante dessa lápide que agora é meu endereço. Já eu, desperta para o mundo dos vivos a apenas uma fração de tempo, em nada sou capaz de entender os sentimentos que esse humano tem. Mas eu hei de compreendê-lo um dia, mesmo que as memórias da minha antiga vida estejam perdidas esse humano me entregará as dele. Eu desejo não somente seus olhos embargados, não somente sua pele gelada, eu o desejo por completo. Suas lembranças, seus sonhos, sua vida... Desejo saber o que torna sua existência tão superior a minha. E quando descobrir irei atrás de outros. Irei atrás de outras vidas, de outros sonhos, de outras lembranças...

Sorrio deitada nas mortas flores que me acompanham. Quando estarei pronta para viver outra vez?

FIM

Gantz
Enviado por Gantz em 12/08/2013
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