LIZANDRA (parte 3 de 4)

“Nasci numa família de posses consideráveis. Ricos jamais fomos, mas nunca nos faltou nada, estudei nas melhores escolas, viajávamos sempre nas férias, às vezes viagens para o Exterior... resumindo: vivíamos muito bem, acima do que vive a maior parte da população. Éramos em três. Uma família unida, composta de pai, mãe e uma filha. Não era eu uma pessoa intratável como são quase todos os filhos únicos. Eu nunca fui mimada, embora nunca me tenha faltado carinho. Sempre me fizeram entender que eu não era melhor nem pior que ninguém, mas que, por outro lado, eu nascera com uma estrela. Eu tivera muito mais sorte do que bilhões de pessoas no mundo todo. Éramos uma família feliz.

Um de meus traços mais marcantes era a empatia com o sofrimento alheio. Eu me compadecia das pessoas e queria ajudá-las. Amava os animais, também. Não é de admirar que meu sonho em termos de profissão fosse a Medicina. Eu queria aliviar a dor dos que eu considerava meus semelhantes, e quem sabe até mesmo descobrir a cura para algum dos grandes males que afligem a Humanidade. Não falo de forma pretensiosa: eu era realmente uma pessoa nobre. Tinha um grande coração, como dizia a minha mãe.

Sobretudo, acima de tudo, eu tinha os sonhos comuns a praticamente todas as mulheres. Desde bem menina, construí ilusões. Algumas, abandonei com o tempo, a outras eu me agarrei cada vez mais. Como todas as garotas de minha idade e condição social, tive acesso aos filmes açucarados com finais felizes e às publicações baratas vendidas em banca de revista que contavam sempre a mesma história, mudando apenas o contexto, o cenário e os protagonistas. Eu acreditava no amor, numa vida feliz e – por que não? – no príncipe encantado, obviamente adaptado para a época em que vivia.

Posso dividir minha vida em duas partes. O antes e o depois de eu ter me apaixonado. Não era apenas paixão, era amor verdadeiro, assim acreditava eu. E, depois de algumas paixonites sem maiores consequências que passaram e não deixaram marcas nem lembranças, eu tinha dezessete anos e conheci Alguém. Sua imagem entrou pelos meus olhos de moça direto para o meu coração, e de lá nunca mais sairia, nem mesmo depois da minha morte. Mas, infelizmente, aconteceu a pior coisa que poderia ocorrer nesse caso. Fui correspondida pelo objeto da minha afeição sem limites.

As coisas aconteceram de forma natural e harmônica, e quando dei por mim estava vivendo em um mundo à parte, num Paraíso antecipado aqui mesmo, neste vale de lágrimas que as pessoas aprenderam a chamar de Terra. Eu amava! E isso bastava. Minha empatia pelas pessoas ainda existia, mas perdeu um pouco de sua intensidade original, o mesmo ocorrendo com meu amor por nossos irmãos bichos. Afinal, eu ocupava mais e mais espaço em minha vida, em minha mente e em meu coração com aquela pessoa que dizia e fazia tudo aquilo que eu esperava. Faltava pouco adivinhar meus pensamentos, e havia vezes em que até isso era capaz de fazer! Entreguei-me sem reservas àquele amor. E a mais perigosa das frases foi dita por mim e por ele muitas e muitas vezes. Fiz planos. Vislumbrei tempos de felicidade extrema, como num conto de fadas. Eu estava tão feliz! Era bom demais para ser verdade.

E, realmente, não era.

Um belo dia, sem mais nem menos, sem explicações nem nenhuma satisfação, o adeus. E a recomendação de que eu o esquecesse para sempre. Se eu fosse esfaqueada mil vezes, ao longo de todo o corpo, não doeria tanto! Sob meus pés o chão se abriu, fiquei sem saber o que dizer, o que fazer. Queria chorar, e chorei. Queria gritar, e gritei. Reduzi objetos a pedaços numa fúria inacreditável. E quis, acima de tudo, morrer, mas isso não aconteceu, porque a Morte me mostrou que leva quem ela quer e quando ela quer. Acima de tudo, ela leva do jeito que ela quer.

Escrevi duas cartas, uma para mamãe e outra para papai, que estava em viagem. Preparei uma mistura fatal e coloquei na escrivaninha do meu quarto. Antes de tirar a própria vida, como uma trágica heroína das histórias ultrarromânticas, daria um derradeiro abraço nos dois seres que me deram a vida, vida que não fazia mais sentido e da qual eu abriria mão. Faria isso assim que papai chegasse, naquela noite fatídica. Mas papai jamais chegou. Um acidente estúpido, causado pela imprudência de outra pessoa (papai era muito cuidadoso, o que de nada adiantou no final das contas), e havia uma pessoa boa a menos no mundo, que já tem tão poucos desses seres. E em breve haveria ainda outra a menos!

Sim, porque depois da morte de papai duas mudanças tiveram lugar em meu ser. A primeira é que eu vi a morte sob outro prisma. Queimei as cartas de suicida, joguei fora o veneno e decidi que eu não morreria por quem não merecia minha imolação. A segunda coisa é que morreram, eles sim, todos os traços de bondade e nobreza de meu coração. A mágoa e a sede de vingança ocuparam todos os espaços. A partir de minha primeira decepção, que foi ser descartada por quem eu tinha como a razão de minha existência, eu queria sumir, ir para um lugar deserto e não ver ninguém nunca mais. Mas, a partir de minha segunda desilusão, que foi saber que o meu príncipe nada encantado nunca dissera a verdade e sempre tivera outra pessoa, eu quis estar em meio a sociedade, e causar mal a ela, e principalmente ao traidor dos meus mais puros sentimentos.

Mudei radicalmente. Não saía mais do quarto. Não recebia nem mesmo as melhores amigas. Não atendia ao telefone. Parei de ir à escola, para extremo desgosto – somado ao de viúva – de minha pobre mãe. Fiquei desmazelada, parei de me cuidar, não me alimentava direito. Até meus hábitos de higiene pessoal mudaram, para pior. Em poucos meses, eu estava irreconhecível. Eu tinha três tias que tentavam falar comigo, mas, se eu não ouvia a minha própria mãe, ouviria a elas? A resposta é mesmo fácil de se obter. Achavam que era por causa da morte de papai, e vinham com umas conversas meio religiosas que me enojavam em vez de confortar. Eu sofria, na verdade, por egoísmo. Por fim, elas desistiram. Minha mãe, não. Mas aquilo estava acabando com ela, eu percebia pelos seus suspiros longos ao deixar o meu quarto de autoexilada. Só que eu não me importava. Eu não me importava mais. Com nada. Só queria saber como estava aquele que de maneira tão vil me enganara, e queria que ele estivesse mal.

Naqueles tempos não havia a internet e as redes sociais, eu não tinha como me informar sobre ele. Tendo rompido todas as amizades, ficava impossível. Então, pedi que chamassem uma pessoa detestável, uma menina sabidamente ruim, ex-colega de sala na escola. Sem amigos, maldosa, rebelde, era a típica garota-problema em seu mais puro conceito. Ela seria minha informante, eu a pagaria pra isso. (Papai sempre quisera que eu fosse independente, e me emancipara aos dezesseis, eu tinha meu próprio dinheiro, alguns bens e conta bancária em separado.) E ela me trazia as notícias dele, religiosamente, de dois em dois dias. E eu ficava sabendo que ele estava muito bem com seu caso principal e alguns outros relacionamentos espúrios, que certamente eram do conhecimento de sua namorada, uma pessoa que parecia não se importar com isso. Eu não entendia uma atitude assim.

Anália, a minha informante, era odiosa. Mantinha-me a par da felicidade daquele que não quis ser feliz comigo, e fazia ela isso com um prazer visível, nem se preocupava em disfarçar um sorrisinho ao me ver sofrer. Eu precisava dela. Mas também a odiava do fundo do coração cada vez mais negro. O mais engraçado é que eu buscava uma maldade em mim que teimava em se esconder, em fugir. Para minha infinita decepção, eu era uma pessoa essencialmente boa que tentava em desespero ser o exato oposto. Mas algumas coisas aconteceram para que minha fama de má surgisse e se consolidasse, e eu ajudei muito nisso, assumindo coisas que não fiz.

Certo dia, cansada do meu quarto de janelas eternamente fechadas e protegidas da vida exterior com pesadas cortinas, resolvi sair um pouco, ver a rua, tomar sol. E ali, naquele dia e naquela hora, nasceu, sem nenhuma intenção pré-estabelecida, a lenda de Lizandra.

Eu disse que não me cuidava direito havia meses. Dormia mal, me alimentava pior, remoendo meu ódio acho que envelheci anos naquele período. Estava pálida pela anemia e pela falta de sol. Os cabelos desgrenhados, as roupas – com vários dias de uso – amarfanhadas... alguém passou e me viu. Comentou. E o boato virou fato, na boca das pessoas que cuidam das vidas alheias por não ter uma que compense. Eu era, de repente, a bruxa. A morta-viva, a endemoninhada. Na volta da escola, grupos de crianças paravam na calçada do outro lado da rua, na esperança de me ver na janela, um vislumbre que fosse. Virei atração sinistra de um parque de diversões enorme, que era a cidade toda.

O primeiro episódio na construção de minha persona macabra foi o envenenamento de alguns cachorros no meu e em bairros vizinhos. Alguma alma ruim saía à noite distribuindo carne envenenada para os bichinhos, a maioria cães de rua, sem dono, mas alguns encoleirados e amados também encontraram seu fim em meio a convulsões, vômito e muita dor. Fiquei penalizada por causa deles, mas um dia, em que estava à janela e os meninos voltando da escola começaram a entoar “Bruxa! Bruxa!”, gritei com eles que se fizessem aquilo de novo eu lhes jogaria um feitiço como o que matou os cachorros. Nunca mais vi meninos na minha rua, a não ser os desavisados que desconheciam a história. O caminho de ida e vinda da escola passou a ser outro para os que estudavam.

Uma maldade eu inventei, e no rastro dela vieram outras, devidamente criadas pelo povinho provinciano supersticioso. Logo, eu era responsável por doenças, acidentes, separações de casais. Fiquei na minha, como dizem os jovens. Já não saía de casa mesmo, e a partir de então não podia pôr os pés pra fora. Tive medo. Acho que a casa só não foi atacada por causa de mamãe, pessoa muito querida na comunidade. Mas quem era obrigado a passar na frente do meu “lar” evitava olhar em sua direção, ou olhava com ódio. Uma coisa estranha, o ser humano.

Anália me contava que eu era o assunto da cidade. Estavam até pensando em reunir uns religiosos para “tirar o diabo” de mim, mas certamente minha mãe não aprovaria. Embora fosse uma pessoa correta e digna, e solidária com quem precisasse, ela não falava em divindades, deuses e esse tipo de coisa. Como eu também nunca perguntei, jamais soube o que ela pensava disso. Talvez nunca tenha perdido tempo com essas coisas. Engraçado que agora lembrei de uma citação que ela amava: “Deixem o Outro Mundo em Paz! O Mistério está Aqui!”... Talvez isso definisse seu pensamento sobre o “Além”.

Quando você acha que as coisas estão ruins o suficiente, elas sempre dão um jeito de piorar. Como você percebeu ao entrar lá, meu quarto fica no segundo andar, encimando esta casa de três andares em estilo Art Déco. No último dia em que veio me ver, minha informante estava visivelmente transtornada. O olhar perdido em um nada indefinível, olhos arregalados, diria mesmo esbugalhados, e mesmo assim vazios, opacos. Daria medo aos mais impressionáveis. Passou-me as informações que eu queria, a namorada de meu ex-amado era mesmo “uma corna conformada e consentida”, como se dizia naquela época. A cidade inteira sabia das traições dele, e claro que ela também, mas o namoro prosseguia, em uma aparente felicidade para consumo público. Depois de me atualizar, Anália fez duas coisas que eu não esperava. Deu-me, subitamente e sem aviso, um longo e apertado abraço, cheio de carinho e carência. E foi até a janela. Levantou a persiana, puxando gentilmente a cordinha, abriu a vidraça e, antes de saltar, olhou-me como se pedisse desculpas enquanto cortava profundamente o pulso esquerdo.

O sangue ficou no chão do meu quarto, nas paredes do lado de fora, e espalhou-se ao redor do corpo que convulsionava, quebrado pela queda. A ambulância chegou praticamente junto com o carro da polícia. Minha mãe e eu na delegacia, depoimentos, fomos liberadas com a recomendação de não sairmos da cidade. A notícia se espalhou rapidamente e logo eu era oficialmente a assassina de Anália, eu cortara seu pulso e a empurrara pela janela. Um ritual satânico, sem dúvida! A lenda de Lizandra ganhava cores mais sombrias. Nem mesmo a carta encontrada no quarto da morta, falando de sua intenção de se matar e isentando a minha pessoa de qualquer culpa, foi capaz de me livrar da condenação popular. As pessoas acreditam no que querem acreditar. Alguém com imaginação mais fértil inventou até que o bilhete fora colocado por mim no quarto da infeliz, por meio de artes mágicas.

Foi um escândalo, e não só pelo suicídio. Na mesma carta, a garota contava dos anos de violência sexual praticadas pelo próprio pai, o que causara o desequilíbrio emocional da filha, sua incapacidade em se relacionar com as pessoas e sua rebeldia infinita. Pedia perdão à mãe, e se revelava, no fundo, uma boa pessoa, destruída por um drama familiar e infelizmente bastante comum. Com base no conteúdo da carta, a polícia deu voz de prisão ao violador da própria filha. Estava ele em seu local de trabalho. Era um homem truculento, mas ninguém esperava que reagisse como reagiu. Recebeu os policiais à bala. Morreu no tiroteio, depois de matar um policial e ferir dois outros. Foi demais para a mãe de Anália. Alguma coisa na mente dela saiu dos trilhos. Olhar perdido em algum ponto insabido, não conversava mais, quase nada se alimentava. Consequência natural, adoeceu. Em seis meses estava morta.

Resumindo: passou o tempo, minha mãe faleceu, aparentando dez anos a mais do que tinha realmente, triste com a história da filha “bruxa e assassina”. Muitas narrativas de minhas supostas maldades ainda foram inventadas pelas pessoas de nossa comunidade. Eu me recolhi em meu autoexílio, não tinha necessidades financeiras, a comida era deixada na porta todos os dias e acertada mensalmente com o restaurante. O meu ex-amado se casou e traiu sistematicamente a mulher, que depois de ter dois filhos com ele cometeu suicídio. Ele, por sua vez, morreu durante um assalto a um dos bancos de nossa cidade, muitos anos depois. Aos poucos, todas as referências do meu passado se extinguiram. Fiquei só, em todos os sentidos. As pessoas me esqueceram, virei um elemento exótico que não causava mais assombro nem provocava interesse. E, por fim, eu mesma morri. Mas não saí daqui.

É isso. Você, que invadiu minha casa e pretende que eu saia dela, tem minha história. O que vai fazer dela, estranho cujo nome eu não sei?”

CELSO MORAES
Enviado por CELSO MORAES em 14/08/2013
Código do texto: T4433760
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