A Mulher da Relva

Sobral é uma cidade repleta de lendas. Acho que nunca estive em uma cidade mais coberta de misticismo que essa. Ela não tem grandes monumentos e nem sítios arqueológicos. As coisas simplesmente aconteceram (ou acredita-se que aconteceram).

Não é a toa que a Universidade do Sobral é a única a ter um curioso curso de “Estudos Avançados da Alma“. Não é exatamente o mais procurado, mas nunca está vazio.

O lugar está repleto de lendas, como a da Chácara que é assombrada por cavalos carnívoros. Acho que é a mais famosa. Mas a minha preferida sempre foi a da Criatura Nonomon. Segundo consta, tratava-se de um ser homemídeo monstruoso de quase três metros de altura e que trazia um “X“ no lugar do rosto. A lenda conta que Nonomon sequestrava quem tinha um certo sonho um determinado número de vezes.

Mas a lenda que me marcou de certa forma foi a da Mulher da Relva, porque eu tive uma experiência impressionante com essa história.

Passei a infância em Sobral e, como deu para perceber, cresci ouvindo essas histórias. Depois me mudei para Furnas e só voltei para lá em ocasiões especiais. Sendo a mais notável delas um casamento de um amigo da cidade.

É difícil quando se cresce precisar o real tamanho das coisas e suas distâncias. A infância nos ilude com a impressão de que tudo é uma questão do quanto ar cabe em seus pulmões e não vemos o quanto alguns lugares são grandes e alguns até insalubres. Cheguei a essa conclusão quando decidi fazer o caminho até a igreja a pé a partir da Praça da Juta, próximo onde moram meus pais e estava hospedado.

O leitor porém não se sentirá imergido na história se eu continuar negligenciando a coadjuvante de minha história, que é a Mulher da Relva.

O povo de Sobral acredita que, sempre que a filha caçula de uma família da cidade se casa, o fantasma de uma noiva que foi deixada no altar se levanta e tenta levar um dos convidados para sempre com ela.

A lenda é simples assim. Com certeza não é das lendas mais elaboradas de todo vasto e macabro folclore de Sobral.

Bom lá estava eu caminhando sozinho à noite pela Pça da Juta, indo até o casório um amigo de infância. Tomando o sereno na cabeça, passo meus olhos saudosos pela paisagem e absorvo a nostalgia de tempos idos vendo a sorveteria que depois virou video-locadora e que hoje é lan-house (e que está quase virando outra coisa), a padaria que virou super-mercado e a escolinha que lembra tudo, menos escola. Como eu disse antes, a lembrança que eu tinha do lugar me traía e eu constatei que o caminho era muito maior do que eu lembrava. Depois da Pça da Juta, uma estrada comprida atravessa um corrego e se perde em meio a um capinzal. Naquele horário era tão deserta que dava para andar no meio da rua para poupar os sapatos (que nem estavam engraxados, mas que também não precisavam ficar sujos). O luar era tão grande que me servia de holofote. E eu teria a certeza de que aquele seria o último lugar seguro da Terra para se andar a noite em segurança naquele horário, não fosse pelo acontecimento que venho narrar.

Quando já estava há uns cem metros do final da estrada senti uma coisa bater na minha cabeça. Olhei para baixo e vi uma pedra bem pequena. Quando me preparava para olhar para trás, sinto uma segunda pancada e me estatelo no chão.

Acordei no hospital sem me lembrar de nada. Enquanto terminavam de me aplicar pontos, aos poucos ia recobrando os sentidos. No começo, sentia alguma vontade de vomitar e um inexplicável cheiro de terra. Alguns amigos estavam lá, meus pais e até os noivos ainda com roupa de festa, me causando um certo constrangimento por marcar o casamento deles daquela forma. Estavam muito preocupados.

Aos poucos minha consciência foi voltando. Tinha sangue por todo o lado. Levei pontos no supercílio e nas costelas. Tinham enfaixado minha cintura, mas as gases revelavam alguma vermelhidão oculta. Meus sentidos voltavam: dor de cabeça, nas costas... precisei de um analgésico.

Eu usava um relógio importado do Japão que um sobrinho me deu. Ele parecia bem comum, mas tinha uma particularidade: uma câmera embutida bem pequena. Achamos estranho não ter sido roubado. Minha carteira também estava lá (dinheiro, documentos, tudo!) Não me lembro quem me deu a idéia de ligar a câmera do relógio em um computador. Talvez ela tivesse se ligado sozinha e tenha registrado alguma coisa. Mas preferi fazer isso reservadamente na minha casa. Não queria chocar ninguém mais ainda com as cenas que ela teria.

De repente chegou o médico. Pediu que a maioria das pessoas deixasse o quarto. Tinha uma chapa de raio X na mão e se pôs a falar: "você não corre perigo, mas sofreu um grande trauma. Seu agressor extraiu algumas das costelas falsas do senhor".

Senti minhas têmperas esquentarem quando ouvi aquilo e até serviu para me deixar menos grogue do efeito dos analgésicos. Mas achei que as pessoas que ficaram na sala junto comigo ficaram ainda mais chocadas. Puseram a falar todas ao mesmo tempo e aos berros, como se a culpa fosse do doutor. Olharam meu curativo inúmeras vezes e o médico me assegurou que nenhum órgão ficou comprometido.

Fiquei em observação uns três dias e descansei por mais cinco dias na casa dos meus pais. Quando fiquei bom e digeri melhor os acontecimentos me pus a pensar um motivo para alguém querer roubar as costelas falsas de alguém, mas não cheguei a nenhuma conclusão. De volta à minha casa em Furnas, me lembrei da ideia de ligar a câmera do relógio no computador e pensei, agora que estava mais sóbrio, que era uma grande bobagem. Quem podia imaginar que a câmera podia se ligar e, durante a suposta luta que tivemos, ter tido a felicidade de focalizar o rosto do meu agressor?

Mas não me contive por muito tempo. Queria provar para mim mesmo que eu tinha superado o episódio e que não tinha medo no que poderia descobrir. Então aproveitei minha privacidade e fui ver isolado, como se estivesse a ver um filme pornográfico escondido. Tinha muito medo de chocar as pessoas que já estavam assustadas e que tinham cuidados comigo até quando ia ao banheiro.

O relógio tem um cartão micro SD. Tirei ele e espetei no computador. Para minha surpresa o cartão estava quase cheio. Tinha parado de gravar não tinha muito tempo. Preparei um chá e comecei a ver.

Aquilo estava muito chato... tinha horas de coisa nenhuma passando. Ela se ligou quando me preparava para o casamento. A primeira imagem era de eu arrumando a manga da camisa. Quase dormi até chegar a parte da minha caminhada. O mundo todo se passava de lado e tremendo muito, devido à posição do relógio no meu pulso.

Quando chegou se aproximou da parte do ataque literalmente grudei na cadeira. Cheguei a parar um pouco para buscar café na cozinha e tive um medo bobo de voltar para o quarto e achar algo a mais assistindo o filme comigo. A câmera tremia muito, mas não demorou para achar um vulto me seguindo ao fundo, logo depois de passar por uma cabaninha de madeira abandonada, que mais parecia uma cabine de vigilância. Lembro que gritei sozinho "ali" e naquela hora gostaria mesmo de que tivesse mais alguém junto para ter certeza de que não estava vendo coisas. A imagem, no entanto, não era muito nítida e o vulto poderia ser perfeitamente qualquer coisa.

Eu estava muito apreensivo quando vi a parte em que fui atingido pela pedrinha. E então, logo veio a outra pancada e a queda. Despenquei no chão e comecei uma luta contra alguma coisa que não focalizava na câmera, que vivia de lado. Não dava para entender nada porque a câmera tremia muito e eu não parava de gritar, me dando um certo medo mais de minha reação do que qualquer coisa. Só dava para ver que meu algoz usava muito pano.

Ficamos lutando no chão e, de repente, parei de lutar. Meu algoz se levantou e se afastou. Deu para ver pela sombra que se dispersou, porque aquilo nunca ficava focalizado. Mas para minha surpresa, não foi aquilo que me roubou as costelas. Outra coisa veio, aparentemente o "chefe". Deu para ver dando a volta, mas só aparecia da cintura para baixo: era uma mulher e vestia trapos bem longos.

Ela andava de lado sem demonstrar que movia as pernas, como se deslizasse. Vinha com uma foice pequena na mão. Num desses deu para ver claramente: era mesmo a Mulher da Relva, aquela da lenda. Aquela que sequestrava um convidado dos casamentos da cidade. Só podia ser, não havia outra explicação para tamanho grau de sinistrismo.

Eu parava o vídeo e voltava muitas vezes para poder entender bem o que era aquilo. A imagem não focava ela direito, inexplicavelmente o que era branco ficava muito branco e ofuscava a lente e o que era preto ficava preto demais e borrava um pouco.

Em nenhum momento deu para ver o rosto, ou da cintura para cima. Nem mesmo o capanga fantasmagórico que me atacava apareceu mais no vídeo. Eu ficava boquiaberto vendo o vídeo até meu resgate, que demorou um pouco.

Nunca mais voltei para Sobral. Quando quero ver alguém, as pessoas vêm até Furnas. E todo mundo entende. A versão oficial é que eu fui assaltado e que dei pela perda de um item de valor que não percebera na hora. Apaguei o vídeo e qualquer resto dele.

E foi assim que fiquem com medo de minha cidade natal.

(http://imagemcomfantasma.blogspot.com)