O outro lado
“Dizem que quem morre não volta para falar como é do outro lado, mas eu voltei.”                                                        Na cama vizinha, uma senhora roncava ruidosamente. Mesmo na penumbra dava para acompanhar as horas no relógio dourado pouco acima da porta. Passava um pouco das duas da manhã. De vez enquanto o silêncio era quebrado por uma porta batendo, pelo som de descargas, ou pelo gemido de algum paciente no quarto vizinho. Sempre dormi bem, mas nessa noite estava insone. Tinha uma sensação de que algo importante ia acontecer. Nunca fui religiosa, mas senti uma necessidade muito grande de rezar. Fechei os olhos e balbuciei o “Pai nosso”. Um frio repentino inundou o quarto. Puxei o cobertor, mas não consegui me aquecer. Meus ossos doíam enregelados. Uma sensação de formigamento se espalhou pelo meu corpo. Minha boca estava seca, sem saliva. Tentei acionar a campainha para pedir socorro, mas minha mão continuou pesada e inerte. Olhei em direção á minha companhia de quarto, e ensaiei um grito, mas o único som que saiu dos meus lábios foi um grunhido rouco. O frio assim como chegou partiu, e um forte calor ocupou o seu lugar. Meus olhos começaram a lacrimejar, e uma tonteira forte me dominou. O relógio marcava três horas da madrugada.                                                Um som de água me despertou. Um cansaço extremo fez com que eu fechasse de novo os olhos. Alguém me cutucou fortemente as costelas me obrigando a sentar. Piscando notei que estava rodeada por várias pessoas. Alguns me observavam curiosos, outros tinham o semblante fechado e me olhavam com raiva. Não reconheci nenhum daqueles rostos. Perguntei onde estava, e uma mulher negra começou a rir histericamente. Um sujeito franzino se aproximou e a arrastou para longe de mim. De pé comecei a examinar o lugar, mas até onde a vista alcançava só via árvores ressequidas e pedras. Eu nunca vira um lugar tão feio e sombrio. As pessoas foram abrindo caminho para que eu passasse. Pareciam temerosos de encostar-se a mim. Eu precisava descobrir onde estava encontrar um telefone e ligar para o meu marido. Lembrei então do hospital. Eu estava muito doente e não podia ficar sem meus remédios. Como é que eu viera parar ali? Eu tinha sido sequestrada? Percebi que eu estava usando um vestido simples azul  e estava descalça. Logo eu que sempre fui tão vaidosa! Fui me afastando e os outros foram me seguindo á distância. Ali não havia casas, comércios, nada. A sede começou a me incomodar, e lembrando do barulho de água que ouvira antes comecei a procurar. Encontrei um pequeno rio de águas muito claras, e sem me preocupar com etiqueta ajoelhei e bebi avidamente. Á principio não notei nada de estranho, mas logo percebi que a água tinha gosto salgado. Gosto de lágrimas. Cuspi enojada e gritei para as pessoas que estavam um pouco afastadas me olhando. “Que lugar é esse? Digam pelo amor de Deus!” Um garotinho apanhou do chão uma pedra e lançou no rio. Um redemoinho se formou e horrorizada vi vários rostos na água. Todos tinham expressão de sofrimento. Lamentos começaram a sair das suas bocas. Correndo me afastei dali e entrei em uma espécie de caverna escura. Encostada á parede morna chorei em desespero. O som de algo rastejando chegou até a mim e logo notei que coisas como cordas se enrolavam em minhas pernas. Gritei com todas as minhas forças, enquanto morcegos batiam as asas por sobre a minha cabeça, e aranhas enormes passeavam pelo meu rosto. Do lado de fora da caverna, às pessoas falavam entre si em uma linguagem desconhecida. Risadas e choros se alternavam. Implorei por ajuda e nesse momento uma espécie de luz foi colocada na entrada. O pavor me dominou no momento em que a claridade revelou o que eu tinha por companhia. Homens e mulheres gemiam com os corpos em decomposição. Cobras de vários tamanhos e espécies os mantinham presos, grudados á parede. O que mais impressionava era perceber que eles haviam perdido a esperança de saírem dali. Pareciam conformados com seu destino. O cheiro de coisa podre me fez vomitar, e vermes surgiram de todos os cantos atraídos por algo diferente. Começaram a entrar em minha boca, nariz e ouvido. Nesse momento passei a esmurrar o ar, e voltei à vida no momento em que o pessoal da funerária ia começar a lacrar o meu caixão.
 
vânia lopes
Enviado por vânia lopes em 25/09/2013
Código do texto: T4497864
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