O Conto Maldito (Parte II - O Veneno)

Havia-me dirigido a um local isolado da mata. Ali, impulsionado pela estranha e imperiosa sugestão, a qual, esclareço, era como uma ordem que me impelia irresistível e inexplicavelmente a deitar-me e adormecer, saí de meu corpo físico, estando perfeitamente consciente de tudo, ou seja, sabia que estava dormindo e que meu espírito deixava o corpo. Imediatamente à minha saída, vieram dois seres muito esquisitos, os quais “agarraram” meus braços imateriais e carregaram-me, sob meus nervosos e inúteis protestos, a um gigantesco e antigo castelo semi-arruinado. Adianto que toda a forma de locomoção naquele ambiente era aérea, flutuáramos pela noite até o castelo, visto que nos encontrávamos no mundo astral. Aqueles seres, que posteriormente soube que eram chamados de Ganardos, consistiam em algo como um ser híbrido entre entes antropomorfos e animalescos. Possuíam pele espessa e amarelada, coberta por pelos (exceto a face), com dentes azuis. Todavia, apresentavam um porte muito semelhante ao dos humanos.

Os Ganardos não pronunciaram uma só palavra durante todo o tempo que estive no castelo (7 dias, como já mencionei), somente alguns grunhidos. Desconfio que não sabiam expressar qualquer tipo de linguagem articulada, não obstante, entendiam muito bem as ordens da... Dela. O castelo era muito imponente, e seu aspecto de quase ruína dava-lhe um ar tenebroso, que atraía e repelia simultaneamente. Era cercado por um magnífico arvoredo frondoso e verdejante em um imenso jardim esplendidamente florido, com lagos deslumbrantes que refletiam o luar. Por entre aquela infinidade de árvores, quase um bosque, divisei inúmeros animais, alguns bem conhecidos meus, outros, nem tanto... Os Ganardos levaram-me castelo adentro, até deixarem-me em uma espécie de sala insólita, iluminadas por velas rosáceas. Assombrava o aspecto daquela sala, por sua solenidade e discrição, pelo clima sereno, profundo, místico, misterioso. Sua mobília era um tanto estanha, parecendo antiga e moderna ao mesmo tempo... parecia algo extraterreno...

Aguardei apreensivo por alguns instantes, até que surgiu uma belíssima e jovem mulher, trajando uma longa túnica lilás. Ao mirar sua face, percebi de imediato, sem a conhecê-la, é claro, que ela era o objeto de minha alucinada paixão. Senti-me desfalecer; assombro, medo, febre, delírio apossaram-se de meu ser, e tive ímpetos de jogar-me aos seus pés. No entanto, não o fiz e lutei para manter a presença de espírito. Ela olhou-me fixamente, pareceu esquadrinhar através dos olhos os recônditos de minha alma. Por fim, sorriu etericamente e falou-me com uma doce, melíflua, melodiosa voz:

- Oh sim! Vejo que és aquele por quem tanto procurei! Oh, enfim encontrei aquele por quem irei me apaixonar! Findou-se minha fatigante e prolongada busca. Estás apaixonado por mim, é claro...

- E como não poderia estar... és tão linda... Meu Deus! Tão perfeita! Pareces ser a mulher, ao menos fisicamente, que eu sempre sonhei...que habita meus mais inescrutáveis anseios... Afinal quem és, de onde vens, onde estou?

- São perguntas que não posso responder, não por enquanto. Mas digo que me consideras tão perfeita porque ao chegares ao castelo, antes que me visses, é claro, li tua mente, tua alma, conheci-te profundamente e assumi as formas femininas que em tua psique estavam, teus mais íntimos desejos, tuas mais secretas necessidades, teus sonhos mais sublimes...

- Então, qual é tua autêntica forma, a original?

- Ora... Um dia saberás...

- Um dia! Mas que dia será esse? Afinal, o que queres de mim, por que estou aqui? E os outros, que agora estão mortos, também vieram para cá? O que querias com eles?

- Fazes muitas perguntas simultaneamente, mas irei dar-te algumas respostas, entendo tuas dúvidas. O que quero de ti? Amor. Por isso estás aqui. E os outros... ah, sim, também vieram ao meu castelo, mas não queria nada com eles. Queres dizer então que estão mortos? Lamento, mas não tenho culpa.

- Como não? Morreram porque vieram para cá, porque abandonaram seus corpos. Se não querias nada com eles, por que os trouxeste? - interiormente eu lutava para não correr e agarrar a divina mulher, esforçando para controlar-me e descobrir quem afinal era ela.

- Na verdade, eu não os trouxe, eles que vieram. Leram o livro por vontade própria e vieram a mim. O livro que leste não escolhe seus leitores. O Conto Maldito contém uma poderosa magia que encanta a todos que o lêem, literalmente, sendo tal encantamento uma terrível paixão, a que sentes por mim agora.

- Sim, entendo que estou enfeitiçado por tua beleza e perfeição. O estranho é ter-me apaixonado antes de ter-te visto.

- E quem disse que precisamos ver alguém para nos apaixonar? Apaixonamo-nos, antes de mais nada, por nossas próprias representações internas, as quais as tuas, eu assumi. E não só fisicamente. O livro foi uma isca. Fui eu que o escrevi. Uma isca para te encontrar, que funcionou. Através de teus olhos li tua alma e tive certeza que minha busca encerrou-se. Também li a alma dos outros que vieram, dos homens ao menos, e vi que não eram ninguém, então os desprezei. Quanto às mulheres que vieram, dispensei-as sem ter que analisar. É claro que desfiz o encantamento.

- Mas as mulheres, das quais uma era minha amiga, estavam apaixonadas por outra mulher? Não creio que...

- Claro que não. Imaginavam que eu fosse um homem. Como disse, apaixonamo-nos por nossas representações psíquicas do amor. Não tenho culpa de suas mortes. E o que é a morte de alguns humanos medíocres, se foi para proporcionar nosso cósmico encontro, o amor infinito que podemos vivenciar?

- É uma idéia terrível... Mas por que queres tanto amar-me, o que tenho de especial? Deves me dizer quem és tu!

- O que tens de especial? Tens para mim o que eu tenho para ti... Tu sabes o que é... Por infindáveis rincões do universo procurei alguém como tu. Tenho vivido através dos séculos, alimentando-me das almas homens, ou seres masculinos, melhor dizendo, que por mim se apaixonaram. Absorvo uma fração de suas almas, mas não concedo nada da minha a eles. Porque não a merecem. Mas cansei disso. Não mais viverei assim, não suporto mais essa miserável existência. Anseio fervorosamente compartilhar com alguém minha alma, minha energia anímica, doar uma parcela sua a algum ser que a mereça, que a dignifique, e tenho certeza que agora encontrei: tu a mereces! Desejo possuir uma parte de tua alma como fonte inesgotável de energia cósmica. Em troca, dar-te-ei uma parcela da minha. Mas não te obrigarei a nada, ainda que o possa fazer. Tens o livre arbítrio, eu o respeitarei. É tua a escolha...

- Mas... Mas se te apoderas, se bem entendi, da alma de outros seres, és uma espécie de... de vampira!? Estou certo? O que falas é tão sublime, tão divino e, ao mesmo tempo, tão ...demoníaco! Não consigo entender, mas te adoro cada vez mais!

- Se queres me chamar de vampira... não farei objeção.

- Não posso amar uma vampira... Eu...

- Se não aceitas meu amor, agora mesmo podes retornar ao teu corpo e à tua vida normal. Irás deixar-me com o coração aniquilado, mas não te impedirei, prometo. Porém, se aceitares o que te ofereço, deverás passar pela morte. Então retornarás ao teu corpo físico e, no armário de tua cozinha, encontrarás em singular veneno que lá deixarei, do modo como deixei o livro na biblioteca. Beberás o veneno e, em seguida, lerás O Conto Maldito novamente. Assim, dentro de meia hora, estarás comigo para todo o sempre. E não haverá volta. Provaremos o amor pela mútua absorção de nossas almas... E agora, não me pergunta mais nada. Só terás mais respostas quando vieres a mim através do veneno...

- Mas então será tarde demais... E se a verdade for demasiado terrível para que eu a suporte? E se fores um monstro embaixo desta bela forma?

- É como disse. Só depois terás as respostas. Terás que arriscar...

- Eu não sei... Minha paixão é imensa, mas paixão não é amor, pode ser tudo uma ilusão. Poderei mesmo te amar verdadeiramente? Isso tudo não é uma insidiosa armadilha de perversa aranha? Nem sei quem és realmente, o que fizeste e fazes em tua estranha existência. Afinal, meu Deus, qual é tua real forma? Como posso confiar em uma... uma vampira? Preciso saber!

- Não saberás nada até decidires. Repito: terás que arriscar. Agora, voltarás para teu corpo e retornarás à tua casa. O veneno estará no armário. Então decidirás. Bebê-lo ou jogá-lo fora? Se beberes, lerás o livro e virás para mim eternamente. Agora, vai.

Com um beijo da magnífica mulher, despedi-me febrilmente. Ela sorriu de forma absolutamente divina... ou seria... diabólica? Antes de sair, percebi que na penumbra da sala alguns pequenos seres me espreitavam pelos cantos. Ao tentar mirá-los, esconderam-se. Então, os Ganardos vieram e me carregaram de volta ao meu corpo.

Acordei-me no mundo físico e retornei à minha casa. Ao chegar, fui direto à cozinha. Abri o armário. O veneno estava lá. Hesitei por vários dias, atormentado por insanas dúvidas. Nesses dias, meditei sobre o meu futuro na humanidade e verifiquei que nela eu não teria futuro algum. Qual o futuro, afinal, desta humanidade? foi o que pensei... Até que, finalmente decidido, abri o armário, peguei o veneno, abri o esquisito frasco, e traguei aquele líquido azul-cintilante lentamente... Era... delicioso! E fui ler outra vez O Conto Maldito...

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 17/04/2007
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