Espíritos Malignos

Dedico aos derrotados...

Que suplicam e patinam,

Mas não chegam a lugar algum...

Espíritos Malignos

A placa de luto em frente à casa velha atraia os conhecidos do defunto. No centro da sala estava ele, o morto, com a boca e o nariz recheados de algodão. O corpo calejado pela vida de exageros graças à boemia, estava agora costurado com linhas grossas, coberto pelo paletó acinzentado, paletó este dado por seu filho mais velho, na esperança que o pai larga-se dos vícios e se convertesse. Isto nunca aconteceu.

O tempo que lhe arrancou a saúde passava como o vento que soprava a chama das duas velas grossas postas no caixão simples, e os poucos que choravam por ele se encolhiam de frio com o soprar gélido do vento noturno:

— Por favor, fechem a porta – pediu a velha viúva chorosa.

Foi ouvida, mas não pelos vivos ali dentro. A porta se fechou sozinha, como que se o vento que entrava á tivesse fechado. A velha olhou bestificada para o povo. Olhou para os filhos e netos, todos tentaram ignorar tal passagem.

Diante das orações altas as luzes piscaram. A viúva fez o sinal da cruz e se desfez de sua segurança. Aquilo não poderia ser ignorado. Gritou alto:

— É você Venâncio?

Ora, Venâncio estava deitado em seu caixão, recheado de algodão e coberto por flores frescas. Mesmo assim as luzes da casa velha piscaram, como que se quisessem responder por ele:

— Espíritos zombeteiros – Gritou Agenor, o filho Pastor da “Igreja Chama de Cristo” – Estão caçoando da gente! Os amaldiçoados não respeitam nossa dor!

De repente as luzes se apagaram. As velas grossas na cabeceira do caixão iluminavam a sala, enquanto os viventes gritavam de medo, tentando abrir a grossa porta de madeira.

Era inútil, estavam presos e fadados ao desespero, enquanto o Pastor Agenor excomungava aos gritos para os espíritos deixarem a sala:

— Eu exijo que saiam desta sala criaturas endemoniadas! Em nome do senhor! Deixem limpo o ar que cobre meu pai!

O caixão chacoalhou. A viúva viu o bigode fino de seu finado esposo se repuxar. O algodão começou a escorrer do nariz junto com o sangue grosso e negro. De imediato, as luzes se acenderam e as velas se apagaram. Os desesperados chorando de medo olharam as lâmpadas se avivarem... A luz ficava cada vez mais forte e incandescente. Quando todos acharam que a lâmpada explodiria, viram moscas girarem em volta dela. A viúva velha arrancou um lenço da bolsa e limpou o nariz do cadáver. O sangue grosso e negro mostro-se gosmento. O filho ainda pregava de joelhos, enquanto as moscas na lâmpada se multiplicavam e as flores do cadáver vibravam.

O povo entregue começou a orar junto com o pastor, as inúmeras moscas posavam no defunto e as mais ousadas, ficavam coladas no sangue que saia de suas narinas. Debatiam as asas para saírem, em vão, estavam condenadas e presas como todos naquela sala. O pastor cheio de coragem viu que não adiantariam orações. Limpou os joelhos e enfim entendeu que os espíritos não iriam embora tão facilmente. Foi até o velho armário do pai e o abriu, arrancando todas as garrafas de cachaça. Espalhou a água ardente pelo cadáver coberto de moscas e bradou:

— Se o álcool e a falta de fé de meu pai deixou que vocês entrassem em sua casa, queimarei todos aqui e agora, para a salvação de sua alma! Eis agora a libertação da alma de meu pai! Que não se converteu em vida, mas será batizado com fogo aqui e agora!

Riscou o fósforo e atirou sobre o caixão do velho morto, que se debatia agoniado, como se sua alma impura ainda estivesse aprisionada no corpo morto. Os presentes sentindo o medo e o cheiro da carne queimada, quebraram as janelas para saírem de dentro da casa. Pastor Agenor orava aos gritos, enquanto o corpo torrado do pai pipocava em meio as madeiras do caixão. As luzes fortes finalmente explodiram, dentro da sala apenas os filhos e a viúva, enquanto a chama do corpo iluminava o ambiente. As velas da cabeceira se derreteram e o monte de carne queimada despencou no chão depois que o caixão e a base se queimaram.

Agenor olhou orgulhoso para seu feito:

— Papai se orgulhava por não gostar de igreja, mas se tivéssemos velado ele lá, certamente os espíritos zombeteiros não apareceriam. Mas agora acredito que ele esta liberto.

Enterraram o que restou do morto, sete dias depois, o filho pastor realizou uma missa de sétimo dia em homenagem ao pai.

Dentro da igreja pequena, os fiéis e amigos do morto se sentaram nos toscos bancos de madeira, esperando o Pastor pregar suas verdades. O Pastor do alto de seu altar, iniciou o culto em memória ao pai:

— Deus á de convir que todos os seus filhos deveram ser salvos, até mesmo aqueles que abandonaram seu nome para viverem nos prazeres da boemia.

Nisto, o vento frio adentrou pelas portas de vidro colorido. A viúva levantou-se e sem titubear perguntou:

— Venâncio?

A tempestade então despencou lá fora, o Pastor ordenou que as portas fosse fechadas e elas se fecharam, sem que ninguém o obedecesse. As luminarias piscaram e as velas avivaram quando elas se apagaram. As moscas cobriram o forro da igreja e o pastor gritou o nome do senhor. De súbito as luminária voltou a se acender, como havia acontecido na casa velha. As lâmpadas ficaram forte até explodirem, as labaredas logo dominaram todo o forro, que despencavam na cabeça dos presentes. O povo corria angustiado, enquanto os espíritos zombeteiros gargalhavam em alegria. Diante de tanta dor, a viúva caminhou em meio ao fogo e gritou alto:

— Eu lhe perdoo Venâncio! Lhe perdoo por toda a desgraça que fez em vida!

O silencio se fez. Apenas o barulho da chuva forte perpetuava lá fora. O pastor caiu de joelhos e gritou:

— Também te perdoo, meu pai!

Então as portas da igreja se abriram. Um homem todo chamuscado adentrou, vestindo o terno cinza. Ele sentou-se em um dos bancos e orou de cabeça baixa. Diante dos olhares perplexos dos que ousaram ficar, se levantou e saiu, com as costas cobertas pelas chamas do inferno.

Pastor Agenor passou por inúmeras igrejas depois daquele dia, dando seu testemunho sobre o batismo de fogo e o perdão concedido. Mas todas as vezes que se deitava, olhava para a lâmpada apagada no teto do quarto iluminado pela luz do luar. E quando olhava com atenção, conseguia ver as moscas rodeando a lâmpada apagada, como espíritos zombeteiros clamando por luz, a mesma luz do perdão que ele conseguiu em batismo e clemência ao pai Venâncio.

Julio Dosan
Enviado por Julio Dosan em 23/10/2013
Código do texto: T4538828
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