Retorno maldito

Entrou correndo em casa, ofegante, suava muito. Seus pais notaram o estado de desespero de Fábio, e as lágrimas que escorriam por sua face. Levantaram-se imediatamente do sofá onde assistiam televisão e foram atrás do filho, que não aparentava estar bem. O jovem, apenas 21 anos de vida, caminhou mais rápido. A sua mente estava tomada pelas imagens da bela Fabiana beijando outro. Ele acalentava aquele amor, que no fundo, sabia que jamais daria certo, no entanto, não se conformava. Muito triste ele havia se aproximado do casal e ouviu da bela jovem, que nada nutria por ele além de amizade. Ainda teve que aturar a agressividade de Marcos, o jovem mais bem visto da universidade. Sentia ódio emanando pelo seu corpo, e pouca vontade de viver.

Entrou no quarto dos pais e foi até o lugar que portava a morte, abriu rapidamente a gaveta do “criado mudo” branco, postado ao lado da cama e puxou a pistola. O senhor Carlos Resende entrou no quarto correndo, seguido pela sua esposa. Tiveram tempo de ver Fábio apontar a arma para têmpora lateral direita da cabeça e puxar o gatilho. O sangue vermelho e viscoso banhou a cama do casal, logo ao lado, onde caiu, morto, o jovem que não suportara mais uma decepção por parte de alguém que tanto amara. Os gritos da senhora Mara se fizeram ouvir por toda a vizinhança. Não havia o que fazer, o jovem tivera morte instantânea.

O dia seguinte foi tenso para toda a cidade de Assunção. Mesmo não sendo muito popular e até um pouco distante dos demais jovens, a casa da família Rezende foi muito visitada, por amigos da família e colegas de faculdade do rapaz. Fabiana também estava lá, chorava muito. Não conseguia acreditar que ele gostasse tanto assim dela. Todos olhavam o grande caixão marrom, postado no meio da sala, rodeado por cadeiras e pelos dois pais que pranteavam ininterruptamente a perda trágica e precoce do único filho. A dor parecia consumi-los. Muitos falavam sobre o jovem, que era esquisito, estranho, perturbado. Com certeza, louco. Alguns de seus colegas de faculdade falavam baixinho sobre os últimos jogos da rodada do Campeonato brasileiro. Na área da casa algumas pessoas até sorriam, contando piadas.

No entanto, em meio a todo esse mar de conversas insensíveis, uma pessoa observava a face do jovem. Não desgrudava os olhos, sabia que alguma coisa estava errada. Conhecedor de ocultismo, Antônio Rezende, avô paterno de Fábio olhava para o neto que tanto amara. Perceberá que a sua face parecia repleta de tormento e dor. Não encontrara paz com a morte, o desespero o perseguia. Tinha certeza que algo mais aconteceria. Rezava em silêncio para que estivesse errado e o neto tão amado pudesse encontrar o caminho para a eternidade. E descansasse de uma vida pouco feliz. Antônio, com seus 70 anos, era o melhor amigo de Fábio e por tantas vezes ouvira as queixas do neto e suas lamentações sobre essa vida. Pretendia apresenta-lo ao ocultismo no momento que julgasse certo, mas não houve tempo.

O dia passou. Sem missa de corpo presente, Fábio se matara, por isso a Igreja Católica não o velou, seu corpo foi enterrado no grande Cemitério da Consolação. Antônio Rezende foi o único familiar a ver a terra ser jogada por sobre o caixão, torcendo para que tudo houvesse se encerrado ali. O idoso foi o último a ir embora, quando já escurecia. Ao se retirar, deu uma última olhada pesarosa para o túmulo. Fechou os olhos por alguns segundos, saiu.

Viúvo que era, Antônio se encontrava só em casa. Sentado em uma poltrona, pensava no neto, e na grande maldição que acompanhavam aqueles que morriam sem paz. Cochilou sentado. Sonhou com o seu filho que jamais lhe dera ouvidos sobre as artes escuras e também não escutaria seus medos. Pensou no neto, quebrando a tampa do caixão e revirando a terra até ganhar a superfície. Acordou suado, ofegante. Alguma coisa precisava ser feita e não estava disposto a esperar.

O relógio marcava 00h30min. Levantou-se e foi até o seu escritório. Afastou um compartimento falso da sua volumosa estante de livros e abriu uma porta. Sabia o que procurava, o Livro dos Mortos. Iria ao cemitério com essa grande obra e leria uma oração especial para que o neto não se levantasse. Sentia que não podia perder mais tempo. Saiu de casa no seu carro e chegou ao cemitério onde o portão havia sido arrebentado. O seu coração batia forte. Viu o coveiro ao canto, branco, tremendo, suando.

- O que houve? – perguntou Antônio em agonia.

- Nun..nun..nun...nun..Nunca vi mortos andarem – respondeu o coveiro antes de desfalecer.

O velho correu até o túmulo, e este estava revirado de dentro para fora. Fábio havia saído. Chegara muito tarde, pensou Antônio antes de cair sobre os joelhos. Mas sabia para onde ele iria, e precisava detê-lo. Ergueu-se e caminhou rapidamente para a saída do cemitério enquanto sacava o celular do bolso e ligava para o seu filho indagando-lhe onde fiava a casa de Fabiana. Pouco se importou com a voz alterada de Carlos ao ouvir a pergunta aparentemente absurda. Importava apenas que ele havia respondido.

Entrou no carro e dirigiu-se velozmente para a residência da jovem. Ao chegar viu que o portão luxuoso havia sido destruído, e de dentro, ouvia gritos. Correu. Ao entrar na casa viu Fábio parado a frente de Fabiana – seminua deitada na cama – com Marcos – também seminu. Viu este avançar para o morto-vivo e ser arremessado contra a parede como se fosse uma bola de papel.

- Pare seu idiota. Você não pode fazer nada! – gritou Antônio para o jovem.

Este mais uma arremeteu contra Fábio que com apenas a mão esquerda segurou-o pelo pescoço e o ergueu acima da cabeça. Com a mão direita começou a apertar o peito esquerdo de Carlos, fazendo forte pressão com o polegar, contraindo a mão. Os olhos vermelhos de Fábio faziam um forte contraste com a sua pele muito branca. Ódio emanava por eles.

Antônio Rezende sabia que não poderia correr em direção ao neto, não teria forças para lidar com ele. Abriu o livro em busca de uma oração especial. Folheava-o rapidamente, mas não tão rápido. Carlos gritou de dor e desespero enquanto suas pernas balançavam. Seu coração foi arrancado por Fábio com as mãos nuas. Sangue voou para frente em um janto quente, banhando o assassino que arremessou o corpo inerte e sem vida pela janela.

Fabiana continuava a gritar, paralisada na cama, enquanto Fábio, com as sobranceiras arqueadas demonstrando sua raiva ia em direção a ela. O sague de Marcos escorria viscoso. O morto caminhava e queria completar a sua vingança.

- Wk creatura pacis requiescet. Volta quod pro aquela deve Ser Tua agora domum. Deixa quia ego vivo et vivam et repousa. Omnes enim vos Livra-consumens orans, aut odio, pois Podera hoc quodcumque ajudar em em Tua die. Vai-Te, meu filho inveniunt vel perdão. Semper Saiba quod diligetur – leu o idoso, com face pesarosa.

TRADUÇÃO: Descansa criatura sem paz. Volta para aquela que agora deve ser tua morada. Deixa que os vivos vivam e repousa. Livra-te de todo o ódio que ora te consome, pois este em nada poderá te ajudar em tua jornada. Vai-te, meu filho, e encontra o perdão. Saiba que sempre será amado.

Fábio ficou paralisado e seus olhos deixaram de ser vermelhos, mais uma vez olhou para Fabiana e pediu perdão. Virou-se, e lentamente começou a caminhar passando pelo avô. Agradeceu-o com voz inaudível. Caminhou. Antônio fechou o livro e com as duas mãos segurou-o a altura da cintura, como um sacerdote seguraria uma bíblia. E aquela era a sua bíblia. Fechou os olhos.

-O que vai acontecer agora? – perguntou Fabiana.

- Ele voltará para o lugar de onde não devia ter se levantado - Virou-se saiu sem dirigir um único olhar para a jovem.

Fábio chegou ao cemitério e começou a descer para o seu túmulo. Onde se deitou. Por sobre ele a terra se remexeu e o cobriu novamente, como se nada houvesse acontecido.

Fim.