AROMA DE MORANGO E O MEDO
 
Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.
 
Friedrich Nietzsche
 
 
                   Abri a porta devagar depois da grande e acidentada subida precisava descansar, ao parar em frente à porta senti o cheiro de morango agradável, meu joelho direito ainda doía, o vento soprava suave e desalinhava o meu cabelo, fiz um esforço, afinal não foi fácil carregar cento e trinta quilos subindo o morro, uma dezena de quilômetros no final a ponte de madeira sobre o lago negro.
                        A mochila pesava nas minhas costas e a retirei e coloquei no chão, minhas mãos tremiam, pensei na minha ex-mulher Laura e nas suas alegações para que eu não voltasse aquele local medonho, do medo que sentia dos nossos fantasmas, eu não acredito no sobrenatural, queria voltar para aquela casa da montanha, pois ali nosso filho morreu e  foi onde toda a tragédia que abalou a minha família havia começado.
                        O local tinha uma vista belíssima, a ponte de madeira sobre o lago terminava em um terreno plano onde ficavam duas mangueiras, parecia o teto do mundo, meus pais adoravam aquele local.
                        Foi ha vinte anos que ele partiu.
                        A casa estava arrumada, dois quartos, uma cozinha e um banheiro, tudo de uma madeira robusta que resistia ao tempo.
                        Quando terminei a limpeza, ficou muito bom, então dormi tranquilo.
                        Acordei com uma batida na porta, primeiro uma batida fraca e educada, depois esmurram a porta. Levantei meio sonolento, peguei o velho rifle e andei devagar, não era medo, mas sim uma insegurança, não me lembro de alguém morando naquelas bandas.
                        -Como vai? – Disse um rapaz de vinte e poucos anos, a idade que meu filho teria se estivesse vivo, tinha uma cicatriz feia junto ao olho esquerdo, um buraco no lugar do olho e parte do crânio estava deformado, ele mancava, por outra deformidade na perna, era bonito, tinha uma expressão dura e enigmática falou enquanto ainda apertava minha mão – sou Lucas, meu pai tem um sitio do outro lado, nós observamos o senhor chegar, temos que alertar sobre o perigo de ficar nessa casa, os moradores daqui acreditam que mora um Demônio em forma de criança nessa casa, perigoso, segundo a minha tia curandeira esse demônio é um justiceiro, se apresenta na figura de uma menina – ele colocou a mão no rosto – vê o fedor de morango? É muito perigoso ficar aí dentro, a casa pertence a ela e todo mundo respeita.
                        -Um demônio? Meu amigo, eu sou físico, um agnóstico, não acredito em nada, meu filho morreu aqui vinte anos atrás, vim aqui para me despedir. – Eu olhei para dentro – esse cheiro de morango me agrada.
                        -O senhor está por sua conta, não diga que não avisei.
                        -Desculpe perguntar, o que ocorreu com seu rosto? - apontei para o lado esquerdo do seu olho , onde havia uma deformidade no crânio.
                       O homem me olhou, não respondeu, mexeu no chapéu para um aceno cordial e complementou.
                        -Até logo, lembre-se, não devemos assumir a culpa que não temos– ele entregou um crucifixo na minha mão que entreguei de volta e disse.
                        -Não sou cristão.
                        -Uma pena, pode te proteger. A gente se vê por aí senhor Alfredo.
                        Fiz um aceno semelhante com os dedos,sem saber como ele sabia o meu nome, fiquei observendo ele ir embora.Fechei a porta, pois queria fazer um café andei até a cozinha, porém o que vi me assustou e disparei a arma sem querer.
                        -Está querendo se livrar de mim Sr. Alfredo, como fez com aquela criança? - Disse uma menina, tinha uma face angelical, porém seus olhos tinham um brilho maligno, vermelho, com olheiras negras.
                        -Quem é você? - Disse desesperado.
                        -Você sabe o que aconteceu, como pode esquecer? – a voz saia diretamente da minha cabeça.
                        -Não entendo? Meu filho caiu de um barranco aqui ha vinte anos atrás...
                        -Seu filho? O menino que teve a cabeça atingida por uma bala de sua arma de caça não era seu filho, acorde desse sonho, a culpa o devora, seu filho está vivo, sabe que ele usou a sua arma e disparou contra o amigo, tão pequeno, seis anos. Quem não protegeria o seu filho, então o senhor se livrou do corpo, atirou do barranco e escondeu a arma.
                        -Meu Deus... Como sabe de tudo isso?
                        Havia um aroma forte de morango.
                        -É impossível desfazer algumas coisas, coisas estúpidas que fazemos, e que não podemos voltar atrás, não é mesmo? - a menina sorria.
                        Comecei a chorar.
                        Morangos.
                        Apontei o rifle para a minha cabeça, era o fim.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 29/10/2013
Reeditado em 29/10/2013
Código do texto: T4547571
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.