As Treze Escuridões - DTRL

Preciso pedir milhares de desculpas pelo meu desaparecimento nos últimos tempos, mas minha vida virou de ponta cabeças. Bem, mas consegui deixar minha contribuição para o DTRL, é mais longo do que eu costumo escrever, mas espero que gostem.

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As Treze Escuridões

Aos cinco anos mamãe me disse que todos nascemos sobre a luz de uma estrela. Uma estrela guia, que estará sempre conosco, iluminando as decisões de nossas vidas.

Aos seis anos um incêndio levou a vida da mamãe e eu aprendi que o destino de uma estrela é desaparecer.

Eles me levaram para um orfanato de cores insossas, com crianças pálidas e freiras inertes me fazendo companhia. A comida era insípida, os dias apáticos e as noites tinham tudo para serem iguais, isso se eu não fosse diferente.

Havia algo dentro de mim, algo que não sabia o que era mas que sabia não haver nas outras pessoas. Era algo que me falava coisas, que aconteceram e que iam acontecer. Durante o dia eu conseguia ficar no comando, se o outro eu começasse a falar bastava tapar os ouvidos e cantar uma música para ele ir embora. Mas de noite não tinha muito o que fazer, o outro eu mandava em tudo e eu não podia me defender.

Eu odiava o outro eu. Odiava antes e odiava muito mais agora. O outro eu chegou a me mostrar o incêndio que mataria a mamãe, mas eu não consegui evitá-lo. E após a morte dela o outro eu passou a mostrar imagens de seu cadáver. Eu passava a noite inteira vendo seu corpo inerte deitado no caixão, rodeada por treze velas que queimavam bruxulentas, acompanhando o crescimento de bactérias em seu interior, vendo vermes devorando sua carne, formigas levando embora sua pele para alimentar a colônia. Criaturas carniceiras que despedaçavam aquela que eu mais amava.

Para piorar eu não conseguia me livrar das imagens, mesmo durante o dia. Todas as músicas que eu costumava cantava para espantar o outro eu foram ensinadas pela mamãe, e pensar nela só tornava as visões ainda mais reais.

Por isso, uma semana após entrar naquele orfanato, eu fugi. Aproveitei que começaria a frequentar uma nova escola e escapei. Mas claro que o destino de uma criança sozinha na cidade grande não seria nada bonito...Uma hora depois eu já havia sido roubada, depois de duastentaram me roubar de novo e ao ver que eu não tinha nada me espancaram, em três horas encontrei um gentil senhor que me deu um pedaço de lanche e cinco minutos depois eu havia perdido dois dentes quando dois bêbados levaram o lanche antes que eu desse sequer uma mordida.

Eu havia me escondido sob uma ponte e ainda esfregava a língua sobre os dois novos buracos em minha boca quando vi um biscoito ser estendido para mim.

- Come.

Olhei a garota que me oferecia o alimento e embora meu estômago estivesse roncando eu a ignorei.

- Não quer? – A menina perguntou num tom de zombaria. – Até parece! Pelo jeito que você segurou aquele lanche acho que daria sua vida por um pouco de comida.

Não podia negar que ela tivesse razão. Por isso peguei o biscoito e o comi antes que ela pudesse mudar de ideia.

- Bem melhor assim, não. – A garota disse dando um tapinha na minha cabeça. – A propósito, meu nome é Talita.

Eu olhei aquela garota pelo canto dos olhos. Ela devia ter o dobro da minha idade – não que isso significasse muito – e não devia ter tido uma vida muito feliz. Suas roupas estavam em frangalhos, apenas trapos que mal cobriam seu corpo. O cabelo era castanho e poderia ser bem bonito se não estivesse tão encebado. Haviam cicatrizes em sua pele, tantas que era difícil contá-las. Seus olhos eram negros, mas surpreendentemente eles eram felizes, como se todo o sofrimento que ela passara não fosse nada demais.

- Você está sozinha? – Talita perguntou e acabei aquiescendo. – Eu sei como é. Eu também estou. É horrível o sentimento de ser esquecido, não é? Acho que esse é o primeiro passo para a gente morrer, não ter ninguém que se lembre da gente.

Eu nunca havia visto a morte por essa ótica, mas não podia deixar de concordar.

- A gente podia ficar junto, que tal? Aí nós não esqueceríamos uma da outra e ficaríamos bem, o que você acha?

- Eu já tenho companhia demais. – Foi o que respondi e me afastei.

Mas não consegui ir muito longe, isso porque a Talita insistiu em me acompanhar.

- Eu tenho mais comida. Vem comigo, você não quer comer?

Parei virando para aquela garota. O que ela queria comigo? De qualquer maneira eu não conseguia lutar contra o básico instinto de me alimentar, por isso eu decidi segui-la, só para comer um pouco e talvez em uma hora ou menos ir embora.

Mas depois de uma hora eu continuava com ela. Depois de duas também. Quando vi o dia já tinha terminado e, sendo ela uma sem teto como eu, nós encontramos uma ponte deserta para nos abrigar e dormir. No dia seguinte eu continuei com ela, e no outro e no outro, e quando percebi a Talita era minha melhor amiga. Eu não demorei a perceber que, assim como eu, ela também havia perdido tudo e via em mim uma forma de se redimir pelo próprio passado. Eu não sabia que passado era esse e sinceramente não me importava em descobrir. Ela era uma protetora e para mim aquilo estava ótimo.

Não que tudo tivesse melhorado nesse meio tempo. Embora eu tivesse encontrado alguma paz com a Talita minhas noites continuavam um inferno. Eu continuava tendo visões, mas nos últimos tempos elas eram bem mais estranhas...

Não via mais a mamãe, ao invés disso eu estava sozinha, cercada por treze montanhas cujos picos ardiam em chamas. Pouca coisa se via além do fogo, apenas as silhuetas das montanhas e nuvens escuras que cobriam o céu. Meus pés estavam desprotegidos e pedras pontiagudas os feriam, fazendo o sangue formar um tapete vermelho. Não havia nada para cobrir meu corpo, por conta disso minha pele se arrepiava com o vento quente que soprava, um vento podre como o hálito de um demônio. Por falar em demônios eu não tardava em perceber que eram eles que me cercavam, pois eles eram as montanhas. E uma em especial inclinava-se para mim, revelando-se uma criatura gigantesca de formato humanóide, com olhos cheios de veias escuras e uma pele tão dura quanto rocha. A criatura abria a boca com dentes do tamanho de caminhões e mesmo querendo eu não conseguia correr, pois meu outro eu se revelava as minhas costas e me segurava. Dessa forma, numa única bocada, eu desaparecia no mundo dos sonhos para acordar.

Claro que tais pesadelos não tardaram em mexer com meu comportamento e atrair a atenção da Talita, que sempre perguntava qual era o problema e parecia bem sentida quando eu me recusava a contá-lo. A dor em seus olhos logo foi demais para que eu suportasse e ainda que nunca tivesse contado a ninguém sobre os pesadelos e sobre meu outro eu, acabei contando tudo à ela.

- Não sei porque você acha isso ruim... – A Talita disse ao término da minha história, abraçando as próprias pernas em seguida. – Pelo menos você tem alguém sempre com você. Já eu... Eu estou sozinha...

- Eu preferia estar sozinha a ter a companhia que tenho... – Respondi, o que era a mais perfeita verdade.

- E por quê? Você por acaso já parou para conversar com esse seu outro eu? – E após minah negativa ela continuou. – Nada que está dentro de você iria te fazer mal. Quer saber o que eu faria no seu lugar? Eu tentaria conversar com esse outro eu. Uma conversa pode resolver um monte de coisas.

Eu não entendia como alguém podia ser tão positivo mesmo após ouvir sobre um pesadelo. De qualquer modo era essa atitude que fazia eu me sentir tão bem quando estava com a Talita, por isso decidi seguir seu conselho.

Naquela mesma noite eu estava de volta ao pesadelo, com a montanha-demônio pronta para me devorar enquanto o outro eu me segurava.

- Por que você não me deixa sair?! – Perguntei aos berros um instante antes daquela boca me devorar.

Fechei os olhos já esperando o fim, mas o fim não veio, e quando abri os olhos de novo vi que o tempo havia parado.

- Porque é o que você quer. – Ouvi uma voz muito parecida com a minha soar, mas vinda das minhas costas.

Eu virei encontrando uma criança identica a mim, o olhar vago e o corpo marcado por cicatrizes.

- Como assim é o que eu quero?

A figura apontou a disforme cabeça da montanha-demônio.

- São treze as forças escuras. Assoma é uma delas. A força do esquecimento.

- Força do esquecimento?

- Eu te trouxe aqui porque você queria esquecer ela... Você queria esquecer a mamãe...

Eu olhei meu outro eu de olhos arregalados. Por ter ouvido aquilo tentei me lembrar da mamãe, mas nada além de um vazio enchia a minha mente, um buraco onde antes havia aquela informação.

- Sempre que você quer alguma coisa eu te mostro. Eu te mostrei a mamãe quando você quis vê-la. Eu mostrei o que aconteceria a ela quando você pediu. Eu sempre te mostrei o que aconteceu e o que acontecerá com todo mundo.

- Mas porque você fez isso? E porque você fez eu esquecer a mamãe?! Eu não queria ter esquecido dela!

- Você queria sim. Era a coisa que você mais queria. – O outro eu disse e não havia como negar aquela verdade, durante os pesadelos com seu cadáver eu não desejava outra coisa.

- Você precisa me fazer lembrar dela de novo! Já que você disse que me mostra tudo, me mostre a mamãe de novo!

- Não é tão simples. – O outro eu respondeu com uma expressão de dar pena. – Eu poderia te mostrar o rosto dela, mas para você não representaria nada. Assoma não fez você esquecer apenas sua imagem, mas o que ela representava.

Não havia nada além de uma pequena farpa da mamãe em minha mente, um último resquício que me dizia que ela era importante. Infelizmente um resquício que desaparecia.

- Não pode ser! Você tem que fazer alguma coisa!

- Você pode barganhar. – Meu outro eu disse após um instante introspectivo.

- Barganhar?

- Barganhe a lembrança de algo importante que tem agora pela lembrança da mamãe. Assoma não vai se incomodar, desde que o sentimento seja o mesmo.

- Mas o que eu...

Ia perguntar o que poderia ser barganhado pela lembrança da mamãe, mas não precisava. Eu sabia o que era e fazendo parte de mim, meu outro eu também sabia.

- A garota. Esqueça-a. Ela substituiu a mamãe para você então esqueça-a para ter a lembrança da mamãe de novo.

- Eu não posso fazer isso! – Respondi e aquela era uma tremenda verdade. Talita havia sido meu porto seguro nas últimas semanas, ela havia cuidado de mim, me dado comida e companhia quando eu não tinha nada. Se não fosse por aquela garota tenho certeza que já teria morrido.

- Você não se sentiria mal por isso, porque você não lembraria mais dela. – A figura a minha frente continuou talvez esperando que assim eu me sentisse melhor. – Além do mais não há razão para se preocupar, daqui a pouco a Talita não vai mais existir.

- O que você está dizendo?

- Você também precisa ir rápido. Ou também não haverá mais você.

Não tive tempo para perguntar o que estava acontecendo. Em um instante eu estava de volta a realidade.

E a realidade estava coberta em chamas.

O cobertor que eu usava ardia, consumido pelo fogo, mas como eu acordei a tempo consegui me afastar. Infelizmente a Talita não teve tanta sorte... As chamas pareciam ter colado as cobertas a sua pele, convertendo-a numa tocha humana.

Eu vi um grupo de bêbados adolescentes se afastar, rindo da desgraça que infringiram a vida daquela garota, rindo de seus gritos de desespero e das minhas tentativas de ajudá-la. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas eu nada podia fazer, nada podia contra eles nem a favor de minha amiga.

Ela ardeu até o desespero não conseguir mais mantê-la. Ela ardeu inconsciente enquanto eu tentava apagar as chamas. Ela ardeu sobre as risadas daqueles adolescentes, que pouco depois entraram no carro gritando algo sobre um racha. Ela ardeu até que não houvesse mais nada que eu pudesse fazer para salvá-la.

Sentei ao lado de seu cadáver que exalava um cheiro ardido. Devido a hora e por estarmos em um lugar isolado ninguém havia notado o ocorrido. Uma vida se fora e havia somente eu para chorar por ela.

- Você está aí? – Disse em voz alta embora mirasse meus próprios pensamentos.

“Sim”.

- Você disse que eu posso barganhar com o deus do esquecimento, se eu der uma memória minha posso recuperar uma perdida. Mas se eu der uma memória... Eu posso pedir outra coisa?

“Se Assoma aceitar, você pode”.

- Me leve para junto dele então. – Eu disse fechando os olhos.

De imediato senti o vento morno contra meu corpo e quando dei por mim estava cercada por aquelas treze forças de pesadelos, com Assoma esticando sua grande cabeça em minha direção.

- Você ainda lembra da mamãe. – Eu disse. – Então ele pode tomar as minhas lembranças, mas não as suas, não é?

- Apesar de sermos iguais, também somos diferentes. – Meu outro eu respondeu.

Eu bufei deixando os ombros caírem, logo encarando aquela montanha de horror.

- Você lembraria de uma coisa muito importante para mim? – Perguntei antes de Assoma abrir a boca pronto para devorar a lembrança de uma pessoa muito especial.

Há muitos quilômetros dali, em um racha até que movimentado, um dos competidores esqueceu como se dirigia, guiando a si e a todos seus passageiros para uma morte certa.

3 anos depois

A vida não melhorou para mim, pelo contrário, ela ficava cada vez mais e mais difícil. Há três anos minhas visões acabaram pois meu outro eu entendera que eu não queria mais tê-las, mas em compensação outras imagens me atormentavam, imagens de pessoas que já haviam partido e nem meu outro eu podia impedi-las de chegar até mim. Por isso eu estava sentada na beira de uma rodovia, decidindo se correria direto para os carros, quando uma sombra parou na minha frente.

- Você parece com fome, quer um? – A figura disse estendendo um bombom.

- Me esquece. – Respondi desinteressada continuando a olhar os carros.

- Não garota, esquecer não é nada bom, é o primeiro passo para alguém morrer, sabia?

Foi impossível não sentir algo ao ouvir aquilo, embora eu não soubesse definir o que fosse.

- Então, qual o seu nome? – O rapaz perguntou.

Não sei porque, mas eu não queria dar meu nome verdadeiro para ele. Eu até tinha uma lista razoável de nomes falsos adquiridos nas muitas vezes que o conselho tutelar me fichara, mas por algum motivo meu outro eu sussurrou um nome diferente e eu acabei repetindo-o.

- Meu nome é Talita.

- Muito prazer Talita, meu nome é Enzo. Enzo Velasquez. Eu não tenho um sexto sentido muito ativo, mas algo me diz que seremos uma boa dupla...

FIM

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Ps. - Talvez o final tenha ficado meio confuso para alguns que não acompanham meus textos, mas ei, essa é uma ótima oportunidade de embarcar no Amálgama Fantasma >>> http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/3816421

É isso, até a próxima!

Gantz
Enviado por Gantz em 02/11/2013
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