Um emprego para Jacinto

Jacinto recebera um convite e não perderia mais tempo em vista da dificuldade das coisas.

Precisava de trabalho e encontrara o homem certo num restaurante do centro da cidade. Tivera uma troca de ideias rápida com o estranho que dizia se chamar Dr. Galdino. Jacinto explicara aquele senhor de meia idade, suas vãs tentativas para conseguir um emprego. Ali mesmo naquele primeiro encontro o Dr.Galdino ofereceu a Jacinto a promessa de um trabalho. Jacinto recebeu satisfeito um cartão com um endereço na zona leste da cidade aonde o Dr. o estaria esperando no meio da tarde para coversarem melhor e firmarem o contrato.

Saindo do restaurante, viu que demorara na conversa e que iria outro dia procurar o tal senhor de aparencia fina que lhe confiara o cartão.Tomou o metrô e rumou para casa. Andou um pouco e viu seus amigos na esquina da rua em que morava, parou, conversou um pouco sem fazer uso de nenhuma droga, despediu-se e entrou no edificio aonde morava.

Ouviu a mãe lá dentro do quarto fazer uma pergunta quando passava a chave na porta para tranca-la:

"-Quem está aí?"

"-Sou eu mãe!"

"-Chegou cedo hoje...pensei que era sua irmã."

Jacinto contou a mãe sobre o homem que encontrara no restaurante do centro da cidade, a conversa e a promessa dele. Estaria pronto para ir ao endereço dele amanhã a tarde. Iria lá de certeza, usaria sua melhor roupa e sua melhor conversa para convence-lo, quando voltasse sua mãe veria o resultado. A mãe de Jacinto levou adiante a conversa querendo saber o que o filho teria de fazer, Jacinto não tinha certeza o que seria exatamente. O homem lhe fizera muitas perguntas, se tinha família ou se obtivera alguma especialização em alguma universidade.

Jacinto tentara esconder sobre o assunto estudos. Será que o Dr. havia notado seu nervosismo quando disse ter 25 anos e ainda estar terminando o curso superior? Talvez o trabalho fosse para alguem especializado em alguma universidade. Viu que o homem enveredou de volta para as perguntas sobre familia e amigos então não pensou mais no assunto.

Continuou ali comentando com a mãe a conversa e depois resolveu ir dormir. Quando subiu as escadas para o quarto ainda a ouviu dizer:

"-Espero que tenha sorte amanhã Jacinto... Amanhã antes de sair lhe deixarei algum dinheiro para o táxi, embaixo da garrafa térmica, na mesa da cozinha."

"- Tudo bem. Boa noite mãe."

Jacinto deitou na cama e o cheiro da noite trouxe o chilrear da mata. Ele podia ver o brilho da lua quase cheia e também as estrelas. Dormiu rápido, um sono tranquilo e sem sonhos.

Ao sair a tarde no outro dia, pegou o dinheiro que a mãe lhe deixara e rumou para o endereço do cartão. O motorista do táxi o deixou em frente ao portão de uma mansão, cheia de árvores e um muro alto. Pagou o motorista e sem muita conversa de despedida saiu andando vendo o táxi sumir na estrada enquanto olhava a guarita sem porteiro.

Tentou empurrar o portão mas estava fechado. Apertou uma campainha e notou uma camera que filmava, a girar, seguindo os movimentos na rua em volta da mansão. Ficou ali esperando.

Um carro veio vindo lá de dentro por um caminho entre as árvores, parou, e o portão se abriu então automaticamente. Certamente alguem apertara algum controle sem sair da limosine preta, toda fechada por vidros também pretos. Jacinto atravessou o portão e se dirigiu ao carro. A porta de tráz aberta mostrava um banco de passageiros que parecia esperar por êle. Jacinto sentou no banco da limosine e fechou a porta. Olhou para a frente na esperança de ver o motorista mas, viu que só havia um vidro preto como os das janelas, do motorista, nem o desenho de uma silhueta.

O carro agora andava por uma estrada de terra ladeada por árvores altas e bem copadas que embora bem cuidadas, pareciam se distorcer a medida que a limosine adentrava o terreno. Solitarias estranhas árvores. Sentiu Jacinto lá dentro de si.

Finalmente Jacinto viu a casa, uma construção enorme de dois andares, trabalhada com os requintes da boa arquitetura gótica. A limosine parou em frente a entrada da casa, a porta abriu mais uma vez e deixou que Jacinto saisse.

Jacinto achou que uma gargalhada, uma galhofa gutural, havia saido do lado do banco do bizarro motorista mas, fora só uma impressão, pois o silencio era profundo quando olhou lá para dentro, já em pé do lado de fora. O carro partiu e Jacinto se foi em direção a casa.

Ao chegar viu o nome do Dr.Galdino escrito na porta que estava entreaberta e o próprio doutor alí em pé, esperando para recebe-lo. A saudação do Dr. veio em seguida:

"-Como vai Jacinto...vejo que você se interessou pelo meu convite...vamos entrar..."

Jacinto sentiu algo diferente no ar mas, assim mesmo entrou no hall.O Dr. mostrava a Jacinto um corredor por onde ir. Ainda no hall, Jacinto pode ver em frente o que presumiu ser uma sala. Não conseguia enxergar todos os detalhes, pois a luz arroxeada escura fazia um efeito de sombra.

A sala mergulhada na penumbra, era muito espaçosa e no fundo um móvel alto, lembrava um altar com um enorme nincho no topo, ladeado por algo parecido com púlpitos que desciam de um segundo andar. Jacinto achou aquilo ser um resultado da falta de luz, certamente seria uma mesa e sua imaginação estava a lhe criar ilusões.

Seguiu o Dr. Galdino pelo corredor de ladrilhos chegando a uma biblioteca. Entraram e Jacinto notou que as estantes nas paredes não deixavam espaço para mais um livro. No topo uma cúpula transparente deixava a luz solar entrar. A construção era alta e certamente seguia o andar superior que vira na sala, pois havia uma escada lá no fundo que não alcançava a cúpula tão alto esta se encontrava. Dirigiu o olhar ao doutor observando:

"-Puxa Dr.! Quantos livros!"

O Dr. se sentando numa poltrona, logo respondeu a Jacinto:

"-Algumas coisinhas...Aí você encontra livros sobre todos os assuntos, desde rituais celtas até obras atuais impressas nos últimos meses. Deixe-me agora lhe oferecer um lugar para sentar..." Terminou a frase acompanhado por um gesto que apontava uma poltrona larga, coberta de veludo verde escuro.

Jacinto se sentou de imediato, acompanhando com os olhos o Dr.Galdino tocar um pequeno sino, o qual, depois recolocou em cima da escrivaninha antiga encostada no canto da parede.

O Dr. levantou, indo abrir a porta deixando entrar uma camareira de uniforme com uma bandeija.

A camareira parecia a Jacinto uma boneca robotizada. Seus passos curtos eram duros, seu olhar sem brilho era fixo como se nada visse, e assim mesmo, pousou com grande delicadeza uma bandeija, com algo servido em copos, em cima de uma mesinha. Saira como entrara em seus gestos automaticos. A voz do Dr. cortou os pensamentos de Jacinto:

"-A camareira lhe servirá o que precisar. Ela não é de conversa mas, é muito eficiente."

O Dr. então ofereceu ao jovem um copo com algo para êle beber. Jacinto achou o gosto diferente. Parecia o mesmo gosto que sentira quando encostara a mão na boca há muitos anos atráz, depois de cortar o pé e sangrar muito. A mão deixara um gosto salgado em sua boca, um gosto de sangue, lágrimas e ferrugem. Olhou a coloração do líquido no copo, meio assustado com o paladar, mas, viu que a tonalidade nada tinha de vermelho. Voltou a tomar um gole abandonando depois o copo em cima da mesa. O Dr. o chamou a janela.

"- Sei que está estranhando o gosto Jacinto. Venha ver. Este é o fruto daquela árvore alí em frente, ela se chama A Enforcada, gosto muito do seu fruto, embora o gosto seja um pouco salgado..."

Jacinto sentiu um enriçamento nos pelos do corpo quando olhou a árvore. A árvore não era tão alta, sua copa era formada por galhos retorcidos em voltas de nós tensos como se se enforcassem um ao outro. Jacinto achou a árvore diferente, nunca havia visto algo semelhante antes.

Jacinto sentiu um pequeno tremor de medo na nuca e viu também que a tarde ia longe, morrendo, o sol se punha, dando vez a boca da noite. O Dr. Galdino já sentado levava em frente o dialógo:

"-Bem, vamos agora falar em que me servirá. Hoje a noite alguns amigos chegarão de uma longa viagem, virão me visitar. Os convidados que estou recebendo chegarão bem tarde. Assim, descanse um pouco, terá de servi-los hoje a noite. O trabalho será duro."

"-Mas, eu não estou tão cansado Dr. Além do mais o que terei de fazer quando êles chegarem? Irei servir bebidas diferentes e salgadas de suas árvores estranhas?"

"- Sim Jacinto. Você servirá bebidas e outras iguarias. Veja aquela porta lá em frente, alí você pode deitar e ao lado se banhar. Há também uma roupa para você se vestir no armario do quarto. Quando quizer pode ir para lá. ficarei aqui lendo, depois irei me vestir e virei chama-lo para a festa."

Horas depois Jacinto acordou com um leve ruido do lado de fora. Pensou como pudera ter dormido se não estava cansado. Lembrou que entrara no quarto, bebera um pouco'água e deitara na cama para experimentar a maciez do seu conforto. Cama confortavel aquela!

Tivera um sonho no entanto: mil faces tomavam corpo saindo das árvores da mansão. Os corpos eram pálidos, lábios carnudos avermelhados, que quando se abriam pareciam enormes bocas de peixes. Os dentes eram serras pontiagudas acompanhadas de longos caninos. Triturariam qualquer pedaço que encontrassem. A aparencia daqueles corpos despertava uma sensual volúpia . Agora que deixavam de ser árvores caminhavam como automatos numa mesma direção, o fundo da casa, onde cercaram uma pessoa e independente dos seus gritos o agarraram, para tirar com seus dentes e garras longas fatias de carne. Devoravam tudo com muito gosto. Suas bocas respingavam sangue quando voltaram. Após a nefasta refeição procuraram suas antigas posições, virando de novo árvores no pomar da mansão.

Jacinto deixou a memória do pesadelo de lado para atender a voz do Dr. Galdino que o chamava:

"Então menino, dormiu? Ainda disse que não estava cansado. Tome banho troque sua roupa que está quase na hora de atender os convidados. Estarei lhe esperando aqui fora."

Jacinto tratou de se banhar e ir vestir a roupa que o esperava no armário, uma especie de toga preta. Engraçado... êle achou que encontraria ali um uniforme de garçom. Nunca aquela toga longa de seda negra, sem colarinho e de barras e debruns bordados por brocados arrocheados.

Enquanto pensava, ouviu os passos de Galdino voltando, abriu a porta e viu o Dr. vestido num smoking preto, gravata borboleta e um medalhão na forma de pentagono, a balançar no peito. Galdino agora já apressava Jacinto:

"- Vamos! quero lhe mostrar a sala antes que os convidados cheguem!"

Jacinto andava agora atráz do Dr. Galdino, por aquele mesmo corredor que passara mais cedo, quando entrara na casa. Pensou ainda em comentar o pesadelo que tivera, mas, os passos rápidos do Dr. demonstravam que êle não estava a fim de conversa.

Iam em direção a sala de entrada que Jacinto vira mais cedo.

O enorme salão continuava na mesma tonalidade, um arrocheado meio sombrio. No teto uma abobada transparente tinha no centro o mesmo simbolo do medalhão de Galdino e mais letras douradas escritas em um idioma diferente que Jacinto não coseguia decifrar.

Será que o Dr. lhe diria o que vinha a ser aquilo? Abaixando a vista do teto, Jacinto viu, que já estava no centro da sala e alí no chão de ladrilhos o mesmo símbolo: um enorme pentagrama em mármore negro, cercado por taças com um líquido sanguinolento em volta de suas pontas.

Jacinto sentia o pelo de seu corpo se arrepiar com toda aquela esquisitice. Olhou em volta e o que viu ainda o deixou mais agitado. As paredes da sala pareciam lápides com rostos pintados. Retratos de pessoas de penteados antigos, um sorriso de lábios vermelhos numa pele escurecida, carcomida e seca de aparencia.

Jacinto começava a tremer seu medo naquele ambiente estranho. Seguindo vagarosamente os passos de Galdino. Este ordenava ao rapaz que se apressasse:

"- Rápido!-dizia o Dr.- Faltam segundos para as doze badaladas e os convidados chegarão na hora!"

Jacinto agora no centro da sala, tremeu quando ouviu o som da primeira badalada. Um ruído, um ranger veio da parede, as lápides se abriam. Pessoas tomavam a sala, Jacinto pode ver então que risos e gargalhadas mostravam dentes longos, presas finas, vampirescas. O terror tomava-lhe o coração, direcionou seu olhar ao Dr. Galdino.

Ainda viu quando este se instalava no nincho do altar. A figura do Dr. mostrava agora, chifres em sua cabeça, um sorriso de presas longas e ao se sentar, seu corpo dava vez a um quadril de bode, que terminava em cascos fendidos ao invés de pés.

Jacinto horrorizado, já não se movia na sala, parado bem no centro do pentagono. As formas vampirescas que sairam das lápides dirigiam um gesto de obediencia a quem se sentava no nincho. As gargalhadas ecoaram na sala quando a voz anunciou:

"- Eis o que trouxe para vocês hoje meus meninos!"

Jacinto entendeu tudo quando o circulo de vampiros se fechou e cravaram suas presas em suas veias para poder chupar seu sangue e saciar a sede. Seu último grito não seria ouvido. Jacinto se tornaria então daí em diante mais um desaparecido nas crônicas policiais da cidade.

A mãe e a irmã foram procurar algum sinal dele na zona leste da cidade depois de dias. Andaram quarteirões e ruas, pararam um instante para descançar.

"- Olhe! Mãe! Um pé de jacinto...ainda está molhado do orvalho da manhã...parece que chora...veja as gotas... Ao invéz de lágrimas parecem sangue!"

Mãe e filha voltaram para casa a chorar, ainda esperando um sinal do filho e irmão. Nunca mais o veriam.

O motorista do táxi se perguntava:

"- O que terá ido fazer aquele rapaz naquele terreno baldio? Será que alguma droga o fez ver mansões?"

Deu uma risada de mais um maluco que levara aquele lugar.

FIM

Angela Nadjaberg Ceschim Oiticica

angela nadjaberg ceschim oiticica
Enviado por angela nadjaberg ceschim oiticica em 21/04/2007
Reeditado em 01/12/2008
Código do texto: T458559
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