MOLOQUE E A ROCHA BRANCA (cont.)

(DAMASCO-EBLA: ARCADIO, SEMITA)

O voo de São Paulo para Damasco não tem escala. É viagem de quatorze horas e trinta e nove minutos para cruzar dez mil, duzentos e sessenta quilômetros. Da janela para o corredor, intercalados adultos e crianças, estão: Isabela, Odete, Lucas e Euclides Altagnã. Nesse momento o avião, estabilizado, alcança o Atlântico. O quase doutor Altagnhã não é homem de ressentimentos. Tem olhos para o futuro, mas a sequência das fotografias na parede do quarto de Lucas Bashar ainda projeta um filme na memória. Ele recupera, sem resistência e a contragosto, os acontecimentos dos últimos dias: o caso de Maria Inês com sua cunhada terminando tragicamente pelas mãos de Edmundo, o incêndio que deixara órfão, e sem lar, o menino, a tentativa de assassinato de seus amigos Marcelo e Renata, a morte insólita do casal no posto de gasolina e os desvarios de Odete. A única saída pareceu-lhe ser a fuga em busca das origens. Euclides sorri para a esposa. Odete, na poltrona de número vinte e dois, se entrega sob o efeito de tranquilizantes. As linhas de expressão do rosto de Euclides são como hieróglifos antigos. Aura marcante de um texto denso e bonito.

Sua maior preocupação ainda é a dificuldade com a língua árabe. Os últimos parentes de Odete na síria nada falam de português e, na verdade, sentem prazer com o desconcerto dos hóspedes que chegarão pela terceira vez em Tell Mardikh e, de lá, para as ruínas de Ebla. Ebla! Rocha Branca, onde os anfitriões preferem vê-los gaguejar meia dúzia de palavras que colocar em suas bocas o som imundo de uma língua estrangeira. O que dizem nas aldeias é que os mais arredios moradores ainda falam eblaíto em rituais secretos. Euclides sente um arrepio. “Estamos indo para o inferno. A Síria é o mundo esquecido por Deus, e as ruínas de Ebla o cu desse mundo.” O silêncio, dentro do avião, é opressivo. Se cairmos o Atlântico será nosso túmulo. A voz do comissário de bordo anuncia o jantar em inglês e árabe. Pausa. Euclides, olhando para fora a imensidão negra azulada que a luz fria da lua revela, espera que a mensagem seja repetida em português. E mais uma vez ouvimos a voz do comissário.

- Senhoras e senhores, o jantar será servido em poucos minutos. Espero que o senhor esteja confortável com suas dúvidas, senhor Altagnã. É nosso dever prepara-lo para estadia tão breve...

...Euclides, apavorado de ouvir seu nome, pensa que é delírio seu. Recosta na poltrona...

...O senhor não tem poder para interferir, senhor Altagnã. O deus que habita o fogo destruíra sua geração...

Euclides Altagnã suspende a respiração, as refeições são entregues. Os passageiros jantam do seu lado. Uma das aeromoças se aproxima empurrando o carrinho com as embalagens plastificadas do jantar. E pergunta:

- O senhor aceita um cálice¿

- Não, obrigado. Euclides sorri disposto a não pensar. A aeromoça insiste ríspida:

- Beba e coma, faça sua parte.

Com semblante esfíngico desaparece no corredor, Euclides treme de medo. A voz do comissário de bordo retorna mais grave, mais gutural.

- Senhor Altagnã, foi Moloque quem criou esse mundo. Na terra de Can o chamam de Muleke. Os cultos a ele são orgias e, no altar são inúmeras as gestações indesejáveis. O destino das crianças nascidas dessa circunstância é o sacrifício. E, como a maioria delas nasce com defeitos patológicos é raro encontrar uma que seja pura de alma e corpo perfeito. Uma criança que purifique os infiéis. Moloque tem corpo humano e cabeça de boi. A enorme estátua de bronze que o representa sentado, levemente inclinado para trás, projeta o dorso e salienta a cavidade no ventre. Dois homens colocam betume ali. As chamas aguardam o momento da purificação. O fogo deve consumir viva a criança escolhida. “Querido, querido! Não vai comer¿”. É Odete. Euclides acorda em sobressalto do devaneio. Sem fome, esforça para dissimular o medo. Seca com a mão o suor da testa. A viagem está ainda começando.

Euclides Altagnhã revê as fronteira da Síria: com o Líbano e o Mediterrâneo a oeste, com Israel a sudoeste, Jordânia ao sul, Iraque à leste e Turquia ao norte. “A terra do levante” – conclui para formular, logo em seguida, novas perguntas.

Damasco é a cidade mais antiga continuamente habitada do mundo. Os primeiros povos a sobreviver, sob o clima árido do mediterrâneo, nessa região, falavam acádio. Língua semita assírio-babilônio cuja expressão escrita, cuneiforme, deriva do antigo sumério. Tão isolada quanto a língua, fora a escrita desse povo e sua memória é quase uma lenda. Há pouco tempo uma descoberta fascinante colocou a Síria em evidência: colonos israelenses descobriram vinte mil tabuinhas de barro com representações gráficas da língua eblaíta em sumério antigo. No entanto, a guerra da ocupação se estende nos assentamentos de Golã. O povo que um dia fez uso dessa língua está desaparecendo. Neste momento Euclides percebe, ainda vagamente, uma conexão entre tudo o que está à beira da extinção. O gosto amargo da bílis vem à garganta. Com a morte de sua cunhada, os únicos sírios do clã Bashar, nascidos na província de Ebla - a terra do sol magnífico - estão sentados ao seu lado. Lucas e Odete Bashar guardam, na expressão cansada, o benefício do alívio no sono.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 21/12/2013
Reeditado em 25/12/2013
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