CAPÍTULO IX-  OS JUBELOS DO TEMPLO
 
     Tiago de Molay tinha setenta anos quando foi preso. Estava completando nove anos como Grão-Mestre do Templo.
     Embora septuagenário, apresentava-se em boas condições físicas e parecia gozar de boa saúde. Tanto é que cavalgara, juntamente com dez cavaleiros, nos dias que antecedera á sua prisão, os quase trezentos kilômetros que separam Poitiers de Paris. Em Poitiers se avistara com o Papa, onde ficara ciente que o Máximo Pontífice ordenara uma investigação sobre as acusações que pesavam sobre os templarios. Essa investigação, o próprio de Molay já havia solicitado, em face das notícias que já haviam chegado aos seus ouvidos. Ele sabia que o rei Filipe havia apresentado ao Papa uma lista com uma série de acusações contra o Templo. Essas acusações eram baseadas em testemunhos de antigos cavaleiros que haviam deixado a Ordem, segundo o que Papa informara.
   – Dificilmente acreditaria que tais imputações fossem verdadeiras, meu filho – disse o Papa ao Grão-Mestre – mas é preciso apurá-las, até por conta da sua própria segurança e pelo zelo com o destino da Ordem.
   –  Concordo com Vossa Santidade – disse Jacques de Molay.  
   – Os inimigos na nossa Ordem estão cada vez mais ativos e é preciso tomar muito cuidado.
    Clemente apresentou então ao Grão-Mestre as acusações que lhe haviam sido feitas por Filipe, extraídas dos depoimentos de três antigos membros da Ordem, Esquin de Floyran, Bernard Pelet e Gérard de Byzol. Esses cavaleiros haviam sido todos expulsos da Ordem, e agora se dedicavam á tarefa difamá-la onde pudessem e encontrassem quem os quisesse ouvir. Eles seriam considerados mais tarde os Jubelos da Ordem do Templo.[1]
      – De certo que são difamações e calúnias urdidas por esses canalhas – disse o Papa. – e o rei Filipe está se aproveitando disso para atacar o Templo.
     – Isso é verdade, respondeu o Grão-Mestre. – Como Vossa Santidade esta ciente, nós recusamos o seu pedido de ingresso na Ordem e ele, desde então, tem procurado a nossa perdição.
     – Não é só por despeito que ele quer destruir o Templo. Ele quer principalmente os seus bens – lembrou o Papa.
    – Estou ciente disso – respondeu o Grão-Mestre. É principalmente por cobiça que o rei quer nos destruir.
    – Assim – disse o Papa – com um olhar de viés, que não deixava dúvidas – seria conveniente tomar providências em relação ao tesouro do Templo. 
    – Entendo. Vossa Santidade tem razão. Isso será feito o mais rápido possível– disse o Grão Mestre.
 
   Tiago de Molay era um velho teimoso e analfabeto, como Filipe o Belo, o apodava, mas não tinha nada de bobo. Sabia que um processo de difamação e calúnia estava em curso contra o Templo, processo esse que se destinava a liquidar a Ordem e expropriá-los de seus bens. Alguns dias antes chegara ás suas mãos um documento assinado por um advogado de Paris, chamado Pierre Dubois, denominado De recuperatione terre sancte, na qual o referido causídico advogava veementemente uma nova cruzada para recuperação dos domínios cristãos na Terra Santa. E que essa cruzada fosse comandada por Filipe, usando os recursos das duas poderosas Ordens, a do Templo e do Hospital.[2]
   “Essencial para esse empreendimento” dizia o documento,    “ é que a Ordem do Templo e do Hospital de São João sejam fundidas numa única organização.” Dado o pouco interesse demonstrado pelos hospitalários nessa fusão, e a obstinada resistência de Tiago de Molay, já manifestada inclusive por escrito, o documento não fazia por menos: recomendava sim-plesmente que a “Ordem do Templo fosse destruída e para as necessidades da justiça, aniquilada por completo.” 
 Foi por isso que, na noite de 12 de outubro, após assistir o funeral da princesa Caterine de Courtenay, esposa do Carlos Valois, irmão de Filipe o Belo, ele ordenara ao preceptor de Paris, Gérard de Villiers, que levasse o tesouro do Templo para Gisors,[3] onde ele ficaria escondido até poder ser embarcado para o exterior. Isso foi feito, e assim, o dinheiro do Templo iria financiar as lutas dos portugueses contra os mouros e a guerra dos escoceses pela independência da Inglaterra.[4]
   
      Filipe não conseguira botar as mãos no ouro do Templo mas se apossara de todos os bens que estavam registrados em nome da Ordem em todo o território da França. Isso não havia passado despercebido aos olhos do Papa. Embora respeitosamente, e com a devida cautela de um Papa que era refém do rei, Clemente V mostrou a sua indignação pelo ato de rapina praticado por Filipe contra os bens do Templo, escrevendo-lhe uma carta censurando o rei pelo seu ato intempestivo e agressivo, prendendo os templários e confiscando os bens da Ordem.[5]    
    Era, sem dúvida, um ato de coragem, praticado por um Papa que tinha abdicado do seu poder e se submetera, covardemente, aos desígnios de um rei que fizera dele um mero títere. Clemente não estava incomodado com o destino dos templários, naquele momento, encarcerados em sua maioria, caçados por toda a França e alguns deles sendo mortos onde eram encontrados. Ele estava preocupado com os bens da Ordem, que Filipe surrupiara com mão grande.
    Certamente que ele, sendo o Papa e chefe máximo da Igreja, poderia ter exercido a sua autoridade sobre Guilherme de Paris, para evitar que os templários fossem submetidos aos suplicios da tortura. Afinal, embora o Tribunal da Inquisição fosse, de certa forma, independente até da influência papal, nenhum Inquisidor, por mais poderoso que fosse, se oporia aos desígnios do Papa.
   A Inquisição era uma instituição eclesiástica e por conta dessa vinculação estava subordinada ao chefe da Igreja. Ela fora criada justamente para investigar a heresia cátara, e com a eficiência mostrada naquele episódio, se tornara uma instituição com vida própria. Tinha um imenso poder, que o próprio Papa a temia. Os reis, como Filipe o Belo e Jaime II, de Aragão, logo perceberam a importância política de tal instituição e fizeram dela uma arma poderosa contra os seus inimigos.
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    No dia seguinte ao que Godofredo de Charney foi interrogado, Tiago de Molay foi levado á presença de Guilherme de Paris. O monge dominicano d’Ennezat leu para ele acusações que já haviam sido feitas ao preceptor da Normandia. Ao ouvi-las, Tiago de Molay mostrou a mesma indignação que seu Irmão de Ordem havia demonstrado ao ser confrontado com tais declarações.
    – Infâmia – declarou o idoso cavaleiro, com uma expressão indignada, que as espessas barbas brancas não conseguiam esconder.
    – O senhor nega então as acusações que são feitas contra a Ordem do Templo? – perguntou Guilherme de Paris.
    – Nego, pela minha alma e pela minha devoção à Santa Madre Igreja, que tudo não passa de falsidade e calúnia – disse o Grão-Mestre, mostrando a altivez que ainda conservava, apesar da idade e da situação desconfortável que se encontrava.
   A postura altiva do Grão-Mestre não deixou de ser observada pelo Grande Inquisidor. “ Maldito herege”, pensou Guilherme de Paris. “Vejamos se ainda conservará essa postura de arrogância depois de alguns dias no cavalete.”
    – É do seu conhecimento que essas acusações foram todas feitas por antigos Irmãos da Ordem? – inquiriu Gulherme de Paris.
    – Essas acusações são falsas e foram feitas por membros expulsos da Ordem por conduta inadequada. Peço que essa circunstância seja levada em conta – disse o Grão-Mestre.
    – Certamente a levaremos – disse Guilherme, com um sorriso irônico. – Mas espero que o senhor seja mais colaborativo e poupe o seu tempo e o nosso dizendo logo o que queremos saber.
    – Se os senhores se referem a essas acusações absurdas que foram feitas contra a nossa Ordem, nada tenho a dizer – repetiu  de Molay.
    – E quanto aos bens em espécie do Templo, o que foi feito deles? – inquiriu Gulherme.
   Era a primeira vez que essa pergunta surgia no inquérito. Tiago de Molay logo percebeu que esse era o verdadeiro móvel de todo esse processo. Não pretendia entregar a coisa de modo tão fácil. Se Filipe queria destruir o Templo, e ele certamente o faria, disso o Grão-Mestre estava certo, pelo menos teria que salvar o tesouro do Templo. Ele permitiria que a Ordem permanecesse viva mesmo que fosse suprimida em França e outros países onde Filipe possuía influência.
     – Não existem tais bens em espécie – respondeu o Grão-Mestre.
     – O senhor está faltando com a verdade – disse Guilherme. Todos sabem que o Templo de Paris guarda uma incalculável riqueza em espécie.
     – Ela foi toda emprestada ao rei Filipe e a outras organizações – respondeu de Molay. – Como os senhores sabem, a coroa deve uma soma imensa ao Templo.
    Guilherme não estava disposto a deixar que o teimoso Grão-Mestre do Templo desviasse o interrogatório para outra questão.
     – O senhor se recusa, pois, a nos dar essa informação?– insistiu Guilherme. – Por certo não ignora que temos meios para arrancá-la á força. Insiste em negar?
– Nada tenho a dizer sobre essa questão – repetiu o Grão-Mestre.
    – Velho teimoso e tolo.  A culpa por tudo que for feito com a  e sua pessoa e com os seus Irmãos será toda sua ─ vociferou Guilherme, com o rosto rubro de colera.
    Só dois olhos altivos e frios responderam á ameaça do Inquisidor.
   – Levem esse velho arrogante e teimoso de volta á sua cela – ordenou o Inquisidor aos dois soldados que guardavam, impassíveis como estátuas, a porta da sala onde se processava o, interrogatório. 
 
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NOTAS HISTÓRICAS
[1] Conforme a tradição maçônica, Jubelos é a designação dada aos companheiros traidores que assassinaram o Mestre Construtor do Templo de Salomão, Hiran Abbiff, para obter dele a palavra de passe que lhes daria a condição serem elevados a mestres. A analogia é bastante apropriada, porquanto foi a inconfidência desses três traidores que deu munição para Filipe atacar o Templo.  
[2]  Pierre Dubois (1250-1320) advogado normando, foi um famoso jurista medieval, que trabalhou a soldo do rei da França, Filipe, o Belo, escrevendo várias teses e artigos defendendo a liderança do rei francês sobre toda a cristandade. Seu tratado De recuperatione Terrae Sanctae, escrito entre 1305 e 1307, é uma apologia ao rei francês, onde ele prega a realização de uma nova cruzada, sob a liderança de Filipe, e propõe a criação de uma assembleia de reinos europeus, que reuniria príncipes e bispos, sem a tutela do Papa.  A idéia era de uma federação de estados europeus, cada um governado pelos reis da cada país, libertos da interferência papal. Para Dubois, ” le roi est empereur en son royaume, idéia já defendida por Guillaume Nogaret, em 1303, e que causara um sério conflito com o Papa da época, Bonifácio VIII. Embora o trabaho de Dubois tivesse sido feito por encomenda de Filipe, o Belo, e tivesse um claro interesse midiático, ele pode ser considerado como uma das primeiras manifestações no sentido de se criar uma União Europeia, movimento que só teve sucesso no século XX.
 
[3] Gisor era uma fortaleza templária na Normandia, cujo território estava sob jurisdição da Inglaterra. Por isso Tiago de Molay julgou que o tesouro estaria a salvo ali, até que pudesse removê-lo para fora do país. Foto do autor.
[4] Alguns dias antes do ataque ao Templo, Tiago de Molay havia mandado queimar todos os livros e registros da Ordem, em Paris e outras preceptorias da França, bem como todas as ordens, rituais e instruções. Uma ordem circulou por todas as preceptorias da França, instruindo os Irmãos a não comentar com pessoas não pertencentes á Ordem qualquer assunto referente aos costumes e crenças templárias. Gerard de Villier, preceptor de Paris, escoltado por 15 cavaleiros fugiram na noite anterior ao ataque ao Templo, levando todos os bens de valor existentes no castelo de Paris. O tesouro foi levado para o porto de La Rochelle e embarcado em 18 galeras que nunca mais foram vistas em águas francesas. Essa informação foi dada por um cavaleiro chamado Jean de Challôns, em seu depoimento frente á comissão de inquisição. Ele disse que o comandante da esquadra era um seu parente, Hugo de Challôns, e que este havia “fugido com o tesouro do Templo”.
[5] Ver capítulo anterior, nota 45.