O VAGÃO DO MEDO

O VAGÃO DO MEDO

Jorge Linhaça

O sol escaldante brilhava lá fora, 38º, recorde em muitos anos.

As pessoas apinhavam-se no vagão superlotado onde qualquer movimento era quase impossível, qual fossem sardinhas em lata, cada um era mantido em pé pela compressão contra outros corpos, a ansiedade de chegar ao destino era o único alívio para os pobres miseráveis que, já acostumados ao flagelo diário, por falta de opções, acomodavam-se como podiam à situação.

Afinal chegar ao destino era o que importava e aquela sensação de alívio profundo quando pudessem ter seus corpos libertos, sentir os membros se moverem ao sair dali, lhes davam um novo ânimo, como se um novo sopro de vida invadisse suas almas imortais.

De súbito a composição para, estanca entre duas estações, como um burro de carga que empaca sob o excesso de peso. O ar condicionado, parco alívio para a sensação térmica, cessa de funcionar. Silêncio. Um silêncio advindo do susto, da incógnita do que lhes poderia acontecer. Aguardam um comunicado, uma voz que soe nos autofalantes dando conta do que está acontecendo. Nada... Nenhum alento, nenhuma voz.

A sensação térmica no vagão cresce minuto a minuto, os 38 graus do lado de fora se transformam, no interior do vagão em 50 graus. Pessoas começam a sentir os efeitos do ar viciado, da falta de ventilação. Tal e qual os vagões da morte, onde judeus eram levados pelos nazistas, estão entregues à própria sorte, ou quase.

Começam as discussões: Abre a porta de emergência.... Não se abrir vai ser pior, aí é que esta m... não anda mais, vamos aguardar... A mulher aqui tá passando mal... O senhorzinho ali tá com falta de ar... Abre logo essa porcaria!

O forno humano chegou ao limite tolerável pelo corpo de qualquer pessoa... Só havia uma saída para a situação, as saídas de emergência. Abriram-nas, saltando na via energizada , onde uma tragédia maior apenas não ocorreu por conta dos avisos dos mais centrados.

Lá de longe , da central de controle, alguém deu a ordem, cortem a energia da linha. Dito e feito, agora nenhuma composição teria como andar, por outro lado ninguém seria eletrocutado. Cadeirantes e pessoas com dificuldades de locomoção eram retirados da composição com auxílio de alguns solidários. A cena era digna de um filme sobre o holocausto, pessoas enervadas e angustiadas, outras subservientes, caminhando pelos trilhos em busca de alcançar alguma estação. Ao mesmo tempo, nas estações, pessoas aguardavam por horas o restabelecimento dos serviços. O acesso às plataformas continuou liberado, na ganância de lucrar com a desgraça alheia, as pessoas se espremiam nas plataformas que já não tinham condições de receber mais ninguém.

Acabou-se a paciência e imperou o instinto de sobrevivência, começaram a saltar sobre as vias, procurando um meio de escapar daquele inferno e seguiram a pé, qual uma procissão de condenados em direção a outras estações, na esperança de que lá encontrassem melhores condições de ao menos aguardar , por sabe-se lá quanto tempo, que o serviço se torna-se novamente operacional.

Horas perdidas de descanso, o desgaste psicológico era ainda maior que o físico. Pessoas perdendo aulas, outras sem chegar aos empregos, outros ainda privados do merecido repouso no aconchego de seus lares... Lá, de longe, os responsáveis riam da situação, sentados em suas salas com ar condicionado, acostumados a passear de helicóptero sobre a cidade, longe do caos que insistiam em resolver.

Os grotescos vampiros de almas saciavam sua sede com a angústia daqueles que não tinham para onde correr, que não tinham outra opção senão a de aceitarem passivamente o destino que lhes era imposto.

Mas ainda nada estava consumado, vem a ordem, “lá de cima”, sentem a borracha nesses baderneiros e vândalos, queremos ver sangue, queremos ouvir os gritos de pavor... Aproveitem que estão encurralados. E os escravos de preto, ávidos por aliviar a tensão, o desejo de mostrar sua “otoridade” e poder sobre os mais fracos. E tome “borrachada” nos pobres coitados, os cassetetes vibrando no ar e atingindo a quem quer que fosse onde quer que fosse.

Os algozes rindo, modernos feitores de escravos, escondidos sob a eterna desculpa de “só estrou cumprindo ordens”... O povo desancado, marcado pelas agressões, o corre- corre, o empurra-empurra, acuados contra catracas, contra plataformas.

O vandalismo comendo solto, mas não o do povo, o dos governantes, dos “seguranças”, dos ineptos “administradores” do martírio humano, buscando esconder suas próprias falhas massacrando inocentes e piorando o tumulto criado por eles próprios.

E no dia seguinte, qual um bando de cordeiros, sem ter outra opção, lá estavam os massacrados, pagando novamente para embarcar nos vagões do medo, enchendo os bolsos de meia dúzia de vagabundos que pouco se importam se é gente ou gado que transportam em seus defasados veículos, sob o olhar debochado e oculto de seus algozes.

A procissão dos escravos de eito continua, marcham em filas em direção ao cadafalso do dia a dia, a espera do dia em que as chicotadas lhes caírem outa vez sobre os lombos, presos no tronco da incapacidade administrativa e gerencial de quem deveria cuidar do seu bem estar.