Gritos na eternidade.

Entro na sala, ela é escura, sem janelas, abafada e suas paredes são recobertas por chaves e clavículas desenhadas com sangue e gordura ainda frescas. Fecho a pesada porta de ferro com dificuldade, as dobradiças rangem ante ao enorme esforço e a corrosão do ar úmido e mofado. Tranco a fechadura e jogo a chave fora a passando por baixo do minúsculo vão de sua base.

Acendo um fosforo e guio sua chama para uma das centenas de velas negras que infestam o lugar. Ao terminar essa longa tarefa, eu procuro no velho e gasto armário, os incensários que necessito. Eu os disponho nos cantos do recinto e os acendo, enquanto elevo minha voz em uma prece.

Dispo-me e guardo minhas roupas no armário ao mesmo tempo em que de lá, tomo o livro sagrado com suas velhas páginas de pergaminho milenar. O grande códex, já viu milhares de homens e já participou de infinitos rituais de grande magia e sangue inocente. Sua encadernação é de um gasto e bolorento couro, ou melhor, pele humana. A maioria das páginas foi escrita em um idioma há muito perdido. O mesmo idioma que os homens da mítica cidade, que foi queimada por chamas quais águas de uma tormenta, onde todos os pecados e devassidões eram tidos como direitos divinos.

Unto meu corpo desnudo com a gordura da jovem menina que imolei em honra ao Grande Bode Negro de Mil Faces. Quão maravilhosa foi sua imolação. Eu a violei durante dias seguidos e quando seu delicado corpo infantil ruiu devido a minha lasciva e selvageria, o esquartejei e por fim, devorei a tenra carne, cheio de satisfação e fé em meu deus profano.

Retiro a grossa lona que recobre a máquina que me auxiliará na conjuração de meu senhor, e a unto com a mesma gordura que me recobre. A máquina foi criada por homens fracos e covardes, que temendo tanto a ira de seu pequeno “deus” cego e morto e a doce sedução do Grande Bode, a usavam para torturar todos aqueles que iam contra a manada de ovelhas cegas. Tanto foi o sangue inocente vertido sobre ela, que seu metal se tornou negro e dele emana um odioso azedume.

Gastei todas as minhas posses, na aquisição de tão magnifica peça, mas não dou grande juízo sobre isso, pois bem sei que o meu senhor irá cobrir-me com os tesouros e glórias do mundo.

O meu senhor é caprichoso e apenas atende ao chamado dos mais fiéis e audaciosos servos de sua vontade. Para conclamá-lo ante minha presença, devo suportar um doloroso martírio, pois o sangue e a dor o aprazem.

Começo o ritual, abrindo o tomo negro ante a máquina, na página onde uma gloriosa figura do meu senhor está ilustrada. Ele segura uma jovem que cheia de horror e dor é violada.

Elevo minha voz em um novo cântico, as chamas e a fumaça das inúmeras velas e dos incensários parecem dançar na cadencia de minha voz e em rodopios, cercam o meu corpo.

Agarro uma das correntes da máquina e forço o afiado gancho de sua extremidade em meu calcanhar esquerdo. O antigo metal rasga minha carne com facilidade e a dor me excita profundamente, de uma maneira sexual. Repito a operação em meu outro calcanhar e isso só aumenta meu êxtase. Tomo outra corrente e forço o pontiagudo metal em meu pulso, a dor é ainda maior, pois dessa vez a carne não cede de maneira fácil e tenho que fazer uma grande pressão contra ela. Minha excitação só aumenta com a dor. Executo a perfuração do pulso restante já quase que completamente fora de mim de tamanho júbilo físico ante a dor.

Vendo-me totalmente preso a máquina, eu aciono a alavanca e lentamente as correntes são tracionadas ao som monótono das engrenagens que rangem como os dentes dos condenados injustiçados.

Centímetro por centímetro, sou erguido do solo e cada vez mais meus membros são retesados pela força do mecanismo. A dor é cada vez maior, assim como meu prazer.

Quando já completamente erguido, a máquina cessa seu movimento por instantes e eu fico como se fora um animal no abatedouro. Meu êxtase atinge seu clímax e acabo por ejacular fartamente no ar. Minha alegria aumenta, pois sei que isso agradará ainda mais ao meu senhor e assim seus favores serão ainda maiores.

Novamente as engrenagens se põem em movimento e cada vez mais meu corpo é repuxado. A dor aumenta a um ponto que deixa de ser prazerosa e nesse momento, percebo que a vinda de meu senhor se aproxima. Cada vez mais a carne é tracionada até ao ponto de seu limite... E o meu senhor não surge.

O desespero me domina. Sinto a carne ceder ante ao irresistível repuxar da máquina. Urro de dor e grito por socorro, mesmo sabendo que ninguém virá.

Ouço o som de minha carne se rasgando enquanto começo a me afogar em meu próprio sangue. A pele, carne, músculos e cartilagens por fim se rompem, deixando o sangue fluir como uma abundante fonte escarlate.

A dor é lancinante.

Meus membros são arrancados pela força da máquina e meu tronco cai ruidosamente no chão duro. Durante minutos fico a me debater como um profano peixe na piscina de sangue que foi gerada por minha carne.

Meus sentidos começam a morrer, assim como eu, e após dolorosos minutos, a luz dos meus olhos se extingue e sou dominado pela escuridão da morte.

Acordo entre as trevas.

Olho para o alto e encaro um céu negro sem qualquer astro. O chão é duro e cheio de pedras cortantes que ferem meu corpo. Tudo é escuro e frio, terrivelmente frio. O silencio é quase que total, ele apenas é quebrado pelo som da cortante ventania que ergue nuvens de pó que me cegam por instantes.

Desorientado, caminho por horas a esmo, até que na distancia diviso um pequeno ponto de luz. Eu sigo nessa direção.

Meus pés são a todos os momentos retalhados pelas pedras cheias de gumes, por vezes tropeço e acabo por ferir mãos e joelhos.

Após uma longa jornada, consigo distinguir a chama de algo parecido com uma enorme fogueira e sua luz revela para mim a real natureza do solo. Não são pedras que cortam meus pés, mas sim, milhões de ossadas que recobrem todo o lugar. Mesmo cheio de receio, eu continuo seguindo em direção da fonte de luz.

Ao me aproximar a ponto de sentir o calor do fogo, eu vislumbro uma enorme rocha de cristal negro que parece absorver grande parte da luz. Sobre ela, uma estranha figura está sentada, um homem, de aparência muito bizarra. Ele é incrivelmente alto, tem a pele branca como o mais puro leite, com incontáveis rugas profundas e cheias de fungos. Sua magreza é completamente anormal, a pele parece estar ao ponto de ser rasgada pelos ossos, como se colocassem a pele de alguém sobre ossos apenas. Ele tem em suas mãos uma estranha flauta, confeccionada a partir de um fêmur. Apesar de parecer estar tocando o instrumento, nenhum som se propaga.

Ao me notar, o flautista cessa sua performance e como um lagarto desce a rocha. Já de pé sobre a infinita ossada, ele me encara silenciosamente. Pergunto onde estou e com um sorriso mau e um olhar de puro asco e desdém, ele responde com uma voz clara de criança.

-Sabes muito bem onde estás. Este é o vale da morte. Onde os condenados rangem os dentes e sofrem. Minha prisão e meu domínio.

Finalmente percebo a verdade que o temor havia me ocultado e caio de joelhos ante ao meu senhor em palavras de exaltação.

Com velocidade sobrenatural, o flautista corre até mim e com uma de suas mãos agarra minha face erguendo-me do chão. O aperto de seu punho é qual o de uma tenaz e meus ossos se partem deixando com que o sangue flua através de minha boca e narinas. Olhando fundo em meus olhos, meu senhor vocifera em um tom de voz semelhante ao de um lobo que pudesse falar.

-Silêncio! Silêncio homenzinho... Pensas realmente que sua servil e abjeta bajulação hão de me agradar? Que te trarão qualquer benesse?

Fico completamente atônito e o horror se infiltra por vez em minha alma.

-Eu abomino sua raça! Eis aqui a criatura mais frívola, fraca, covarde, falsa e hedionda: o homem! És o motivo de todo o mal da existência! É o motivo de minha ruína e decadência! Como pôde o Pai ter vos amado mais que a mim? Seu primeiro filho! Sua mais perfeita obra! Como pôde ele ter vos amado e ainda os amar?

Após um ensurdecedor brado de ódio, o demônio larga-me ao chão e eu tenho o corpo perfurado por vários ossos. Tento erguer-me, mas as pernas faltam comigo e acabo por tombar novamente. Com o olhar cheio de horror fito mais uma vez o ser, que retornara para o enorme cristal. De lá, ele continua seu monólogo.

-Mas sabes a grande ironia das coisas homenzinho? Este vale de trevas e morte é minha prisão... E vossa também! Só que na medida em que és um condenado sem poder, sou por minha vez, o senhor desta prisão. E tu homenzinho, pelos seus crimes contra o Pai e contra mim, será eternamente punido por minha vontade!

Com um gesto afetado, o demônio parece conclamar alguém e então passos são ouvidos na eterna escuridão.

Após um curto espaço de tempo, um vulto diminuto se define cada vez mais ante a luz da fogueira vindo das trevas e quando a luz acaba por banhá-lo, meu martírio eterno tem início. Uma figura dantesca se aproxima de mim lentamente em passos trôpegos. A menina que eu sacrifiquei ao demônio caminha em minha direção. Seus membros foram unidos de forma desleixada e rústica por um grosso barbante que os costura. Seu ventre expõe suas entranhas que se arrastam pelo chão e enrola-se, vez por outra nas pernas da figura, a fazendo tropeçar. De sua vagina escorre sangue podre como se fosse cascata.

Por mais uma vez tento fugir e novamente meu corpo falha.

A menina acaba por me alcançar e com sua voz infantil pergunta.

-Por quê tio? Por quê?

Grito de horror e acabo por me urinar. O demônio ao ver isso começa a rir e com a voz cheia de deboche, pede-me.

-Por favor, homenzinho, continue. Grite! Grite perante o horror que geraste! Grite! Pois somente isso me agradará vindo de você. Seus gritos de horror pela eternidade.

Duas pequenas mãos de criança envolvem meu pescoço o esmagando. A menina então aproxima seus lábios de minha face e com uma mordida feroz, arranca um enorme pedaço de minha carne.

Grito.

Em total desespero grito ante a danação eterna e o riso cruel do demônio.

Grito durante a eternidade.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 04/03/2014
Código do texto: T4714617
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