Um crime.

Lentamente acordo.

Minha visão está embaçada e meu corpo dolorido.

Quando os focos de meus olhos se ajustam, vejo-me algemado a uma cama hospitalar. Ao meu lado, um homem gordo de meia idade, um policial, está sentado ressonando pesadamente. Sua cabeça pende para o lado de forma indolente.

Tento falar, mas minha garganta está seca e minha voz falha. Em um novo esforço, consigo emitir um pedido, com uma voz afônica.

-Água... Por favor... Água.

O policial simplesmente continua a dormir pesadamente sem notar minhas súplicas.

Repito por mais três vezes o pedido e ainda assim o homem dorme. Ele só desperta após se sufocar durante o sono. Ao ver-me desperto, o policial fica a me fitar de forma séria durante alguns segundos e então simplesmente se ergue e sai do quarto.

Muitos minutos depois, o policial retorna com um médico e uma enfermeira. Sou examinado, medicado e recebo água para beber. Meus lábios e garganta doem ao serem tocados pelo líquido.

Com uma voz pachorrenta, o policial indaga.

-E então doutor? Ele já está bem para ir?

O médico responde afirmativamente e então sou novamente deixado só.

Após horas, quatro agentes policiais entram e então sou desalgemado e praticamente carregado até uma viatura, devido aos meus passos vacilantes e uma atitude animosa por parte dos homens. Ao entrar na viatura, minha cabeça é empurrada por um dos policiais contra o carro e acabo por me ferir.

Ao entrar no posto de policia, todos os agentes presentes me hostilizam, sejam com palavras ou olhares. Sou levado até uma sala de interrogatório e algemado a uma mesa de aço cromado. Durante horas apenas o meu reflexo na mesa faz-me companhia.

Por fim, a porta se abre e um homem entra, ele é baixo, magro, de meia idade, veste um terno cinza barato e ostenta uma espessa barba, onde salpicos de prata se fazem notar. Ele traz em suas mãos dois copos descartáveis cheios de café e embaixo do braço, uma pasta de arquivos.

O homem deposita os objetos sobre a mesa e senta bem em minha frente. Ele oferece um dos copos de café para mim enquanto me encara seriamente, como se me estudando. Eu aceito o café e então o homem começa seu trabalho. Sua voz é grave e firme.

-Meu nome é John Nero Papaléo, sou investigador da polícia. Você sabe por que está aqui senhor Boyd?

Receoso, respondo ao investigador.

-Creio que sim, deve ser por causa do meu último caso.

Papaléo abre a pasta e começa a fazer anotações.

-Exatamente. A investigação do desaparecimento de Janne Tutlly. Quero que você me conte tudo sobre o caso. Tudo.

Eu anuo com um aceno positivo de cabeça e então começo meu relato.

-Fui procurado pelos pais da menina há um mês. Eles estavam realmente desesperados. A investigação da polícia foi encerrada sem conseguir resultados.

O policial me fita com raiva nos olhos. Continuo fingindo não notar.

-Os Tutlly são uma família de poucos recursos e por isso aceitei receber apenas metade do pagamento adiantado e o restante de forma parcelada. Eu...

Papaléo me interrompe.

-E quanto você cobrou pelos seus serviços?

Mesmo sem entender o sentindo, respondo a questão.

-Três mil. Com as despesas inclusas.

O policial me fita com desdém e sua voz parece se inflamar.

-Três mil? Isso é um roubo Boyd. Um roubo.

Tenho vontade de mandá-lo à merda.

-Não faço caridade e se vocês fizessem um trabalho decente eu não estaria aqui.

O policial aponta seu indicador para mim de forma ameaçadora e entre os dentes deixa escapar.

-Sem piadinhas Boyd. Só a merda da história. Continue sendo esperto e evite que novos acidentes aconteçam com você.

Minha vontade de xingar Papaléo só aumenta e a ela se junta a vontade de o espancar.

-Como eu dizia, eu aceitei o caso e tomando como base os dados da investigação de vocês, eu decidi tomar uma linha de investigação inversa da sua.

Ainda com a raiva aparente na voz, o investigador indaga mais uma vez.

-Como assim? Você fez o que?

Tomo um gole de café, ele é fraco, sem açúcar e frio. Deixo escapar uma careta de insatisfação.

-Janne era uma menina rara hoje em dia. Estudiosa, caseira, sem namorado e muito querida em seus círculos de convivência. Uma santa aos olhos das pessoas. E todos, inclusive vocês, pensaram que ela foi raptada, mas não, ela fugiu.

O investigador cruza os braços e se recosta na cadeira.

-Fugiu? Por quê? Com quem? Qual pista mágica você descobriu que te dá fiança nessa afirmação?

Eu sorrio.

-Internet Papaléo. Onde essas crianças vivem hoje em dia.

Meu sorriso é revidado por outro cheio de descrença.

-Sério? Internet? Nós vasculhamos o computador da menina Boyd, não havia qualquer conversa ou arquivo que apoie essa historinha.

Meu sorriso aumenta.

-Eu sei, mas não falo do computador dela e dos perfis de boa moça. Eu falo dos computadores de um cyber café da cidade e do perfil “fake”. A face real dela. E posso te garantir Papaléo, a menina não era tão certinha quanto os pais imaginam. Ela se correspondia com uma pessoa e o conteúdo dessas correspondências não eram inocentes.

Os olhos do policial se enchem de desconfiança.

-E como você descobriu isso? E onde estão os arquivos?

Meu sorriso se torna quase que um deboche.

-Simples. Eu refiz todos os passos diários da menina e por sorte, ao entrar em um cyber café e apresentar sua foto enquanto fazia perguntas para os funcionários, recebi a informação que ela era cliente contumaz. Suas visitas eram diárias durante a semana e não passavam de pequenos intervalos de meia hora. Bastou que eu explicasse a situação, para que os funcionários invadissem o perfil dela e me dessem todos os arquivos. Gente muito boa àqueles meninos. Os arquivos estão no meu arquivo virtual, é só verificar.

O investigador volta a fazer anotações.

-E sabendo dessa “face oculta” da menina, o que você fez?

Meu sorriso morre sem que eu saiba exatamente por que.

-Eu fui até o lugar marcado para o encontro. Uma fazenda em outro município. Um lugar muito bucólico e distante. O lugar ideal para que toda aquela merda acontecesse.

Papaléo me encara com seriedade.

-Que merda? O que aconteceu Boyd?

Minha voz começa a falhar, a garganta fica seca e suo frio. A cada instante uma fração da memória do ocorrido retorna. Nítida e vividamente retorna.

-Eu entrei na casa e não havia ninguém. Tudo estava em silêncio. Um silêncio quase tangível. Após vasculhar o térreo e o primeiro andar da casa, eu desci ao porão. O porão...

Minhas pupilas dilatam e fico como se catatônico. Continuo o meu relato com a voz como um sussurro.

-O porão... Aquilo não era algo humano... Não... Havia fotos de crianças cobrindo as paredes... Meninos e meninas... Eles estavam nus e aquelas coisas... Aqueles bichos... Faziam “coisas” com elas...

A expressão do rosto de Papaléo se contorce em um esgar de nojo, assim como o meu.

-Eram tantas fotos... Tantas crianças... Tão horrível... Desumano... Nojento...

Por instantes o ar me falta, minha razão se refaz por instantes e eu continuo o relato.

-Eu entrei em uma sala e um horrível miasma de morte e decomposição me fez vomitar. A sala era um abatedouro... De crianças...

Minha voz novamente assume tons de sussurros.

-Crianças... Em ganchos de açougue como porcos... Pernas... Mãos... Decepados... As peles esticadas em tábuas para secar... Crianças... Meu Deus... Eram tantas...

Mecanicamente eu gesticulo como se sacasse minha arma e faço mira na direção do policial.

-Saí daquela sala maldita e entrei em outra. Era um amontoado de livros... Centenas deles... Antigos... Muito antigos... O fedor de mofo e bolor era muito forte... Aquela sala não tinha nada visível de mau... Mas havia algo mau... Muito mau... Algo sem forma sabe?... Algo mau...

Papaléo soca a mesa e isso me puxa de volta para o agora. Para a sanidade que ainda resta.

-Pare com essa merda Boyd! Você está me sacaneando?

Quanto mais me recordo do acontecido, mais o medo e a loucura me dominam.

-Não. É tudo verdade. Tudo. Devo continuar?

Nitidamente o meu relato perturbou o policial.

-Sim, porra, continua.

Mesmo com o medo me dominando, eu sigo com a história.

-Eu segui para a última porta e ao abri-la me deparei com um longo corredor escavado na terra. A escuridão era total. Eu saquei a minha Colt 0.45 e lentamente segui pelo corredor espalmando as paredes úmidas. Após um bom tempo caminhando entre as trevas e o silêncio. Uma luz se insinuou junto de um som estranho. Um som de animais... Mas não eram animais... Não... Não eram animais... Eram “coisas”...

Meu rosto se contorce em uma careta de puro ódio.

-Eu entrei em uma sala onde pilhas de ossos... Ossos de crianças... Cobriam cada parede e partes do chão... Havia crânios que foram moldados para servir de lamparinas... E lá cinco pessoas... Não... Uma pessoa... Aquelas “coisas” não eram pessoas ou bichos... Eram “coisas”!

Cerro meus dentes com tanta força que o sangue surge entre eles. E entre dentes eu vocifero.

-Janne estava lá! Nua! Ferida! Pendurada por ganchos! Meu Deus! Eles destruíram a menina! Eles estavam tão chapados que nem me notaram! Estavam lá, nus e cantando uma merda de música sem sentido! Filhos da puta!

Novamente faço mira com uma arma invisível e gesticulo como se puxasse o gatilho incessantemente.

-Eu mirei na cabeça de cada uma daquelas “coisas”... E explodi as malditas cabeças de cada uma delas! Cada uma delas...

Minha voz novamente se torna um sussurro.

-Aproximei-me da menina. Ela estava tão ferida... Tão... Destruída... Mas estava respirando. Chamei o seu nome e ela lentamente abriu os olhos. Eu disse para ela que iria a salvar... Que estava tudo bem... Mas ela... Ela me pediu... Ela pediu... Me mate moço... Por favor...

Papaléo se debruça sobre a mesa com os olhos inquisidores.

-E você a matou Boyd?

Aceno negativamente com a cabeça enquanto continuo meu monólogo.

-Não... Eu não consegui... Ela implorou, mas eu não pude... Meu Deus... Era só uma menina... Não era santa como todos pensam... Mas era só uma menina... O que eles fizeram com ela... Foi inumano...

Arregalo meus olhos, minhas pupilas dilatam ao máximo, meus dentes batem, meu corpo treme completamente e suo em profusão.

-Ela expirou na minha frente, implorando para morrer...

Começo a chorar.

-Foi então que aquela criatura surgiu... O corpo de Janne começou a se debater e o ar ficou como se carregado... Como antes de uma tempestade de raios... E frio... Muito frio... Os olhos da menina se abriram e não havia nada lá... Só escuridão... E a voz... Aquela voz não era dela... Era de algo velho... Algo muito velho... Horrível... Eu disparei todas as balas restantes na cabeça “daquilo”... A cabeça explodiu e eu fiquei coberto de miolos, sangue e pequenos cacos de ossos.

Debruço-me sobre a mesa e encaro Papaléo fixamente nos olhos. Ele parece assustado.

-Mas ela não morreu... Não... A metade da cabeça do corpo da menina estava destruída... Mas ela começou a rir!... Rir!... Eu estava desesperado... Recarreguei a minha Colt e disparei novamente contra a “coisa”... Eu usei toda a munição... Um dos braços do corpo foi arrancado... Mas o riso só aumentava... E com o outro braço a “coisa” começou a se livras das correntes... Eu então corri... Corri... Eu fugi... E depois disso... Não me lembro de nada. Tudo é apenas escuridão.

Papaléo me encarra com a expressão completamente cheia de espanto e confusão. Por minutos, ele apenas me observa com a boca entreaberta. Repentinamente, o investigador explode de raiva e me soca na cara,

-Vai se foder Boyd! Seu merda! Não vem com esse papo de maluco pra cima de mim! Nós temos as provas! Foi você, seu filho da puta! Você!

Fico imóvel diante as espantosas acusações.

-Você foi encontrado vagando pela estrada em estado catatônico. Você estava coberto de sangue e dizendo que havia matado a menina. Fomos até sua casa e encontramos o corpo da menina esquartejado dentro da sua geladeira. Dentro de potes de conserva. E não foi só isso que encontramos seu merda! Havia várias fotos, vídeos e agendas. Você é um monstro Boyd! Um maldito monstro! Você fez aquilo com a menina e ainda arrancou o dinheiro dos pais dela! Seu filho da puta!

Minha surpresa é total.

-Não. Eu não fiz isso. Não...

O investigador agarra minha cara e vocifera.

-Eu vou foder você Boyd! Você não vai escapar com essa merda de papo de louco! Você vai ser menina na prisão seu viado! Eu garanto isso Boyd!

Papaléo sai da sala batendo a porta e eu fico completamente só, sem entender nada.

Após alguns minutos, algo absurdo ocorre. Refletida na mesa, a imagem de Janne. Seu reflexo é como se ela estivesse sentada e apoiada sobre a mesa olhando fixamente para mim. Tremo de medo e não consigo impedir que as minhas funções fisiológicas me traíssem. A imagem refletida sorri. Ela bafora seu hálito na mesa e uma marca de vapor se faz. A figura sinistra escreve com a ponta do indicador uma mensagem. Ela se levanta, me lança um beijo e desaparece como se saindo da sala.

Segundos depois disso, o investigador retorna. E ao se sentar na cadeira em frente a mim, ele percebe a mensagem.

“Você é meu Boyd. Você é meu.”

Papaléo me estuda perplexo, tentando entender como eu posso ter feito aquilo estando algemado do outro lado da mesa.

Meu horror é completo.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 09/03/2014
Reeditado em 10/03/2014
Código do texto: T4721904
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