A ÚLTIMA BALA

A ÚLTIMA BALA

Jorge Linhaça

Sinal vermelho, hora do rush, carros enfileirados aguardam poder seguir viagem. Entre as fileiras a criança esfarrapada oferece balas aproximando-se dos vidros que se fecham quase que imediatamente. Um ou outro motorista ou passageiro encontra uma moeda para comprar o doce, ainda que seja apenas por pena da criatura magra e paupérrima que percorre o asfalto de pés descalços.

Cada venda é uma alegria, embora o sorriso não seja o forte da frágil criatura, pois significa que o pão poderá frequentar a sua mesa naquele dia.

Lá no morro onde vive a vida não é fácil, sua mãe doente se vira como pode e vez por outra arranja alguma faxina para fazer na casa de alguém, mas sua saúde é tão debilitada que não consegue trabalhar mais do que uma ou duas vezes por semana.

O pai? O pai sumiu no mundo anos atrás, alguns dizem que morreu ou que foi morto, outros que mudou de estado, alguns, ainda, especulam que esteja preso. O fato é que nunca mais se soube ao certo de seu paradeiro.

La no farol a famélica criança percorre centenas de vezes o mesmo trajeto até que se acabem as balas que vende e começa sua longa jornada de pés descalços até o aconchego do pequeno barraco onde divide a cama com mais dois irmãos menores, além da sua mãe.

Afora a velha e carcomida cama, pouco mais há no barraco, uma velha geladeira que permanece quase sempre vazia, exceto pelas garrafas de água gelada, que amenizam um pouco o calor e enganam a fome até a hora da parca refeição, feita num fogão igualmente velho, mas, cuidadosamente limpo. As duas ou três panelas, já enegrecidas pelo uso, poucas vezes já se viram cheias de alimento. Tudo ali é escasso e muito simples, o armário de cozinha não passa de alguns caixotes de laranja pintados de branco, que permanecem quase sempre aguardando por um fortuito saco de arroz ou de feijão.De resto, serve apenas de suporte para as panelas, pratos, copos e talheres já desgastados pelo tempo.

No pequeno bolso, a criança leva os poucos trocados, frutos do trabalho suado e muitas vezes desprezado pela maioria das pessoas. Ela sonha, como toda criança, mas seus sonhos são mais simples:

Sonha com o dia em que poderá ir á escola e voltar para casa sem precisar ir para o farol vender suas balas, sonha com o dia em poderá brincar com outras crianças pelas ruas perto de sua casa. Sonha com o dia em que não precisará deixar seu único calçado em casa quando voltar da escola, para que dure até o fim das aulas.

Sonhando, vai a criança, de volta à sua triste realidade. Já cai a noite sobre o morro e as vielas e becos mergulham na penumbra típica das ruas mal iluminadas.

Nas sombras o perigo a espreita, como espreita todas as noites, em cada canto a morte aparece das mais variadas formas, tão logo seja evocada nas conjurações do cotidiano.

Naquela noite em especial as ruas estavam mais desertas, mas aquela criança em seu sonhar um futuro não se deu conta disso, seus pés cansados e o corpo franzino arrastavam-se viela acima quando os primeiros ruídos secos percorreram o ar, como que anunciar uma ira divina ou uma tempestade tropical.

Os tiros de fuzis, pistolas e metralhadores continuam, em um confronto entre quadrilhas rivais. Os moradores, deitados no chão de seus barracos imploram aos céus que se apiede de suas almas apavoradas, que preservem suas miseráveis vidas para que possam batalhar mais um dia pelo seu sustento. Lá fora os riscos das balas traçantes riscam o negror da noite qual cometas ou estrelas cadentes, verdadeiras estrelas da morte. O pavor se alastra pela comunidade e o manto negro da morte paira sobre as cabeças de todos, culpados ou inocentes. Gritos de guerra e urros de dor ou de pavor se perdem no meio dos estampidos.

Quando por fim quando cessa o conflito, as pessoas se aproximam de um corpo caído em meio a uma mancha vermelha que se forma ao seu redor... Alguns o reconhecem como a "menina do farol", filha da diarista que mora no alto da viela, aquela mesma criança que sonhava com o dia em que venderia sua última bala no farol.

Alguém na multidão comenta:

- Que ironia, a menina que viveu vendendo balas encontrou a morte justamente num outro tipo de bala...

UMA BALA PERDIDA.