Longas horas

Longas Horas

Aqueles olhos brutos vermelhos me olhavam do lado de fora da cafeteria. Achei a principio que os anúncios luminosos haviam criado aquele reflexo.

Estando sozinha quase última cliente daquela cafeteria, não tiraria conclusões dos passantes da noite, uma vez que estava já tão acostumada àquela hora.

Não adiantava aquele medo que os diurnos sentiam da noite. A noite sempre bela e calma me atraia pelos encontros mais estranhos possíveis.

Os sonhos nos levavam longe; em breve de certeza conseguiria uma boa companhia.

A garçonete com um sorriso veio me trazer o café, aquele velho companheiro.

"Parece que o movimento hoje está pouco... Estive viajando e não tenho passado por essas bandas há um tempo." Me dirigi à garçonete, velha conhecida.

Ela respondeu passando uma toalha encima da mesa:

"É... isto aqui tem andado meio abandonado nos últimos tempos..."

Um freguês empurrou a porta, entrou sentou-se à mesa e a garçonete andou uns passos para atendê-lo.

O freguês era um daqueles conhecidos da noite. Ele também se serviu de um café e veio andando em direção a minha mesa.

"Olá, faz um tempo que não se vê você por aqui. O que tem feito?"

Olhei a rua, agora silenciosa, e os luminosos vermelhos a refletir no vidro da janela e na rua. Respondi ao freguês, meio envergonhada de não me lembrar o nome dele.

"Estive fora viajando. Fui resolver uns negócios. Vim aqui à procura dos conhecidos e parece que poucas pessoas vieram hoje. Afora daquele casal ali no canto e do rapaz sentado no bar, não há mais ninguém aqui. Contam-se as mais, nós dois agora."

A garçonete agora pendurava na porta réstias de alhos; andou até a janela e fez o mesmo.

"Você viu aquilo? A garçonete está pendurando réstias de alhos na porta e na janela." Disse eu ao meu companheiro.

"Isso por aqui já virou lugar comum. Por acaso você usa um crucifixo?"

"Gente fica parecendo que há algo de estranho por aqui. Alho, crucifixo... O que há?"

"Não se preocupe tanto... é só uma maneira de se manter uma boa conversa. Como sempre a noite é nossa."

A garçonete vem andando em nossa direção. Para em frente a nossa mesa. Dirige seus olhos ao meu companheiro, perguntando:

"Tudo bem agora Doutor?"

"Sim." Respondeu ele.

Agora me lembrava do meu companheiro, ele sempre conversava conosco sobre o sobrenatural. Os conhecidos, aliás, o chamavam de Dr. Sobrenatural. Qualquer discussão sobre este assunto e ele tinha respostas para tudo. A presença dele ali justificava o alho nas portas e nas janelas e sua pergunta sobre crucifixos. Vi que o assunto da noite seria dirigido pelo doutor até que chegassem novos companheiros. Se me sentisse cansada iria para casa ou para um bar mais alegre. Por enquanto manteria alguma conversa com ele.

"Daqui a pouco chegarão nossos outros companheiros inclusive os músicos e os poetas."

Dr. Sobrenatural respondeu calmo:

"Acho meio difícil que, alguém mais, ainda venha hoje aqui. Amanhã talvez, se o assunto for solucionado hoje."

Pensei: "Que assunto?" Olhando para fora da janela vi que os vidros se embaçavam com uma névoa, ainda refletindo as luzes vermelhas, em menor intensidade. Voltei-me ao Dr. Sobrenatural:

"Gostaria tanto de ver todo mundo... e o senhor diz que há um assunto a ser solucionado hoje?"

"Entendo que você sente falta de seus companheiros... Depois de um tempo fora, todos sentem. Já me aconteceu antes."

Um barulho começou a crescer na rua, vozes falavam altas a dizer:

"Por ali!" "Rápido!" "Depressa! Antes que o percamos de vista!"

Como habitante da noite, sempre o que se passava do lado de fora quase nunca me chamava atenção. Mas, esta noite podia se ouvir a correria e as vozes, como nunca se ouvira nas outras vezes que estive na cafeteria.

"Dr. Sobrenatural, o Sr. está ouvindo este barulho?"

"Todas as noites, há muito barulho. Não se preocupe. Daqui a pouco o silencio voltará."

Comecei a olhar em volta, o cheiro do alho aumentava e uma sombra desenhava um enorme crucifixo no teto da cafeteria. Não me sentia tão bem como deveria estar me sentindo, quando de repente ouvi um grito.

Um grito, que não podia ser chamado de humano, nem de nenhum animal conhecido. Talvez cem aves de rapina conseguissem soltar e emitir um guincho daqueles. Minha face se franziu e pensei em levar as mãos aos ouvidos para não ouvir aquele som. A garçonete tremia pálida. O casal e o outro companheiro da noite, se entre olhavam como se perguntassem entre si o que seria aquilo.

O Dr. Sobrenatural nos olhava a todos como se nada ouvisse. Seu olhar era calmo como se nos quisesse dar esperança de que nada estava se passando. De repente o silencio voltou. Antes que voltássemos a nos dirigir palavras, o som de umas batidas na porta da cafeteria e a voz de um freguês tardio clamava:

"O pegamos! Estamos livres!"

O dr. Sobrenatural abriu a porta, para deixar entrar um de nossos conhecidos.

"Matamos o vampiro! Nossos companheiros vêm aí! Estão somente aguardando, o total efeito da estaca! Daqui a pouco o sol sairá e nem poeira sobrará daquele monstro! Finalmente a liberdade!"

As noites são assim. Vi que o nevoeiro se desmanchara e agora o reflexo das luzes variavam de cores no vidro da janela. Os fregueses e amigos da noite começaram a chegar. O ambiente fervilhava a alegria da vitória sobre um ser nocivo.

Será que notaram, quando minha mão enxugou uma lágrima que me escorria? As luzes lá fora refletiriam algum traço de carmim nela?

§Angela Nadjaberg Ceschim Oiticica

angela nadjaberg ceschim oiticica
Enviado por angela nadjaberg ceschim oiticica em 05/05/2007
Reeditado em 01/12/2008
Código do texto: T475410
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