"E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe”
 
Sublime_mar - DTRL15

2051 - 27 de Março – “Pontos”

Era curioso vê-lo se erguer, enquanto todos continuavam no chão. Analisamos a situação; crianças, adultos, idosos, não importava, estavam no chão.

Naquele momento, bem quando os soldados baixaram as armas, vi o jovem se erguer com uma coragem incrível. Olhei bem nos olhos dele, os soldados apontaram as armas novamente e ao invés daquele corpo frágil recuar, o mesmo fez exatamente o oposto, ergueu as mãos e caminhou manquitolando em nossa direção.

- Viemos em paz! – gritou pela primeira vez, enquanto os outros se preparavam para atirar – Viemos em paz! – Repetiu, me olhando nos olhos como se soubesse que eu estava no comando, e pela ultima vez, bradou – Só queremos ajuda! – e naquele momento houve o primeiro disparo, e ele caiu de joelhos.

 


Diário de Bordo – Nave Rastreadora Gaia “25 de março de 2051“

Aqui quem fala é o Capitão “H Guerra”. Hoje se completam 37 anos de uma busca implacável. Essa nave tem sido nossa casa desde “O dia da partida”. A cada dia que passa nosso comportamento se aproxima do de animais. Vivemos um retrocesso, na verdade sobrevivemos. Conter a fome, o medo, a ignorância e ao mesmo tempo a astucia dessa raça em processo de decomposição é uma responsabilidade árdua.

Fato é que devido ao fracasso de nossa missão, estamos perdidos há mais de trinta anos, é duro imaginar que fomos tão otimistas ao pensar que encontraríamos a tão sonhada “Pontos” em apenas cinco anos.

Durante essa viagem, temos sido salvos pelo que restou de pequenos planetas destruídos, provavelmente pelos mesmos seres que invadiram nosso lar, e são nesses planetas desertos que encontramos ao menos o pouco de água para seguir viagem e matar a sede de nossos filhos, e dos filhos dos nossos filhos, e também de nós mesmos.

Somos remanescentes, um bando de zumbis vivos vagando no espaço. Se alguém ouvir isso, se você está aí, se pode me ver, por favor, precisamos de vocês, pois já perdemos pessoas demais e também já nasceram outros, e bem... A fome nasce com eles.

 

Terra – Há muito tempo atrás


Soubemos através de um pronunciamento feito em rede mundial, era uma assembléia unida até então “às escuras", onde se encontraram todos os lideres de países do mundo; rainhas, reis, presidentes e presidentas. Assistíamos as imagens que chegaram frações de segundos antes das vozes, até que essas em uníssono liam a mesma mensagem em idiomas distintos, enquanto na tela da TV o espaço era dividido para todos aqueles rostos, um ambiente quadriculado separado por margens brancas, onde dezenas de personagens escreviam seus nomes na história da humanidade. Quase ao centro reconheci o rosto dela, era nossa Presidenta, Dilma Rousseff, que como de costume mantinha-se firme tal qual uma rocha.

Enquanto ouvia aquilo, olhando diretamente nos olhos daquela líder, não conseguia entender a falta de emoção e toda inexpressão de qualquer sentimento naquele rosto e voz. As legendas passavam no rodapé da tela, era isso que eles queriam, era daquela maneira, pois queriam dar a noticia juntos, unidos, ao menos no fim.

Passaram-se semanas e nos despedíamos uns dos outros e da Terra, e a atmosfera criada era um tanto quanto mórbida, nostálgica e completamente conturbada. O caos reinava quase que absoluto e o terror se propagava no ar carregando consigo o odor da morte. A violência chegou travestida de paz e se instalou em todo o mundo, os lideres em breve abandonaram suas idéias, ideais e nações. O dinheiro perdeu valor, ricos ficaram pobres, enfim éramos todos da mesma classe. Não restava nada a não ser a esperança de um minuto após o outro, e quando a certeza de um fim se aproximou nem mesmo esse minuto era aguardado.

Afinal, o que eles queriam de nós? O que iriam fazer conosco?

Pensamentos pouco otimistas chegavam a ser conclusivos, de fato a fé só restou para um bando de fanáticos que se uniram, e juntos manifestavam a certeza que bradava em seus corações, entoando cânticos, orando a Deuses, acreditando que aquela era uma mensagem dos céus. Anjos que vinham para nos salvar, nos libertar para uma nova vida. Bando de tolos regados a mel.

As naves pousaram sobre oceanos, rios e lagos, pousaram sobre a vida e tudo que a representava. Inicialmente ficaram estáticas, enquanto tentávamos estabelecer qualquer que fosse a conexão, até que abruptamente algo aconteceu.

Certo dia as naves se moveram, mas sem sair do lugar, giravam como discos, criando tufões e um feixe de luz escapou da parte inferior de cada uma delas, esparramadas pelo mundo. Estavam de alguma forma drenando maior parte da fonte de vida do planeta. Naquele momento a guerra foi declarada.

Depois de tentativas frustradas em combater aquela praga, nos vimos cada vez mais volúveis, frágeis e tão mortais. Naves coletoras sondavam a terra, levavam pessoas, espécimes de animais, ninguém aparentemente retornava.

Exércitos foram destruídos, enquanto tentávamos penetrar as barreiras invisíveis que protegiam as naves. No inicio elas apenas ficaram ali, paradas, mas certo dia responderam. Tão logo sentimos o poder ofensivo deles, éramos aniquilados por outras pequenas naves inimigas que respondiam com agressividade. Feitas de algum aço orgânico, aparentemente impenetrável, saiam de dentro das naves maiores como se as mesmas parissem-nas no ar. Era uma catástrofe sem precedentes.

Eles não se comunicavam conosco, não respondiam nossas mensagens, tampouco conseguíamos ver o que eram, ou como poderiam ser. Depois do sexagésimo quinto dia as naves começaram a partir deixando para trás um rasto de destruição, fome e sede. Bilhões morreram, outros milhões ficaram doentes, o ar, a água, a fauna e a flora, tudo começou a apodrecer, como se uma nuvem de gafanhotos tivesse passado sobre a terra e toda sua imensidão.

Aos poucos estávamos sendo extintos, até que um milagre veio do céu e nem mesmo os mais crédulos esperavam por isso.

 

2014 - 16 de maio - Terra


Estávamos eu e um bando de sobreviventes sentados à beira de uma fogueira. Ironicamente riamos de nossa própria desgraça, relembrávamos de tempos que nunca voltariam, de um mundo que ainda que decadente já nos deixava saudade.

Éramos sete sobreviventes, esse era nosso grupo, eu não tinha parente algum ali, eles também estavam longe de ser considerada minha nova família, porém sabíamos que logo outros chegariam para tentar roubar nossa comida e a pouca água que nos restava. Lá estávamos, armados de instinto de sobrevivência, pedaços de ferro, ferramentas imprecisas, duas ou três armas de fogo e tão pouca munição que talvez não enchesse dois tambores de um 38, ainda assim éramos donos da verdade.

E ela caiu do céu, incandescente tal qual uma estrela, rasgando a noite, descendo num assobio, caiu e logo sentimos um baque, um estrondo enorme. Ela estava cerca de oitocentos metros de nós. O que fazer? Ah, era a lei do momento; “Achado não é roubado”.

Saímos correndo feito um bando de loucos, claro que não éramos os únicos, outros a queriam, e certamente alguns covardes correram para longe dali, afinal os minutos eram preciosos.

Estávamos cada vez mais próximos, e quando chegamos estranhamente o metal não exalava o calor que esperávamos. A nave jazia ali, era enorme, ah, era ainda maior de perto. Não havia portas, era negra, havia estranhos faróis, luzes radiosas em formato disformes circundando-a, era tudo tão diferente de tudo.

Fomos os primeiros a chegar, mas não fomos os únicos, logo outros vieram, duas facções, uma conhecíamos bem, eram os Fanáticos (um bando de religiosos que decidiu que aquele era o apocalipse e que Deus os havia incumbido uma missão, libertar o restante das almas que ainda vagavam pelos destroços), do outro grupo apenas tinha ouvido falar, estes eram mais recentes porém numerosos e se autodenominavam; Piratas, eram corsários sem um navio.

Quando os fanáticos atacaram, revidamos rapidamente, eram em torno de trinta, e ao contrário dos piratas, queriam matar todos, já os outros só queriam roubar o que pudessem carregar, se bem que eles não poderiam carregar aquilo.

Lutávamos bravamente. Perdia mais amigos, como de costume, e os Piratas também perdiam, mesmo sendo em um bom número. O líder deles era uma mulher; Jéssica. Ah, era uma morena de olhos verdes, como esmeraldas. O cabelo curto havia sido cortado por ela mesma, a história é triste, mas deixe-me contar:

Certo dia um idiota a estuprou em praça publica, isso depois do filho de cinco anos ter sido levado por uma das naves. Ela foi a única que conheci que havia perdido alguém daquela forma. A maioria, como eu, simplesmente já tinha certeza que seus entes estavam mortos, por isso entendo que o fardo dela certamente sempre foi maior.

- Precisamos lutar juntos para vencê-los – gritei para ela, enquanto acertava um idiota com minha arma predileta; um machado vermelho que encontrei no posto do corpo de bombeiros, onde descobrimos também um caminhão cheio de água. A sorte às vezes sorria para mim.

Lembro de chegar lá e encontrar o lugar vazio, e com meu pequeno bando pegamos a água e nos escondemos em um porão onde ficavam guardadas as ferramentas, mangueiras e uniformes dos bombeiros. A passagem era uma espécie de escotilha. Era uma portinhola, duas abas meia lua que se abriam revelando que na verdade a coluna que se estendia até o teto era um tubo liso de inox com diâmetro de seis polegadas, estilo filme caça fantasmas. Descemos por ele como crianças que acabaram de encontrar um parque de diversões. Sempre foram esses, aqueles momentos estúpidos, eram deles que não me esquecia, nem mesmo em batalhas, tampouco agora.

- Ok! – disse ela, após analisar friamente a situação, e de repente estávamos lutando lado a lado, e os fanáticos caiam um a um.

- Nada mal para uma mulher – eu dizia vendo ela se sair bem com aquele cassetete que depois de certo tempo me contou ter pego de um policial que havia se matado com uma bala na cabeça após ver duas crianças matarem outra menor, por um simples pacote de salgadinhos que restava em uma máquina quebrada, num bar completamente destruído da zona sul.

- É meu – disse a primeira. E a segunda respondeu que era dela, e aí começou a discussão. O policial tentou intervir quando uma terceira criança acertou-lhe uma pedra na cabeça. Caído no chão viu o irmão maior de um dos garotos passar ao lado e sorrir sadicamente vendo-o naquela situação. Após isso os dois mataram um garoto, com desdém desprezível. Inconformado com a situação e com o que a vida havia se tornado o policial andou alguns metros, como um zumbi admirando o nada, com os olhos vagos e um andar nada pragmático. Parou e apontou a arma para própria cabeça. Em segundos que definiram seu destino puxou o gatilho, dando um fim poético aquela ultima bala. Foi ali que ela conheceu aquele cassetete, foi assim que Jéssi entendeu que precisava sobreviver, pois concluiu que se entregar era ainda mais desonroso e medíocre.

A luta continuava, estávamos dominando a situação quando vi a Pirata ser encurralada e em ato heróico acertei outro fanático e parti na direção dos três que a cercavam. Um tinha um espeto de duas pontas, de assar carne, outro tinha uma marreta de três quilos e o terceiro, esse tinha um par de correntes.

Dois deles abandonaram-na e vieram em minha direção. Eu sabia me defender, mas aquela luta era injusta. Acertei o machado no ombro do que carregava a marreta e quando dei por mim, senti uma dor dilacerante, o metal simplesmente adentrou no meu rosto, a três centímetros de minha boca, ao menos uma das pontas dele, já a outra perfurou meu olho esquerdo, eram quatro centímetros de ferro enferrujado afundado na minha pele. Caí entre os escombros, olhei para meu futuro; “Um minuto talvez? É, eu não terei isso tudo” Ponderei e aquele pensamento me apavorou.

O agressor riu descaradamente e enquanto segurava o espeto brincando de me torturar com movimentos sádicos, fechei o olho e fui desperto apenas com o gemido dele, um som inquietante, assim que abri novamente o olho vislumbrei Jéssi, ela o enforcava com a corrente do terceiro agressor que estava no chão com uma enorme mancha avermelhada na testa. Não conseguia manter meu olho bom aberto, a ardência era terrível, e a dor descomunal.

- Acho que você vai precisar de um tapa-olho – ironizou enquanto aquele que me ameaçara caia ao meu lado, e eu ouvia os gritos dos Piratas, erguendo suas armas e uivando como um bando de lobos.

 

2051 - 27 de Março – “Pontos”


Quando ele caiu de joelhos perante os soldados, e a mim, imediatamente ordenei que cessassem fogo. Para sorte dele, não o atingimos, para nosso azar ele era esperto demais.

Uma das espécies mais novas de todo o universo, a raça humana, tão prepotente, um bando de adolescentes rebeldes se descobrindo em meio ao caos que criam enquanto suas atitudes não refletem ao poderio de sua racionalidade. E lá estava um sobrevivente, que agora descobrira sua verdadeira origem, enfim estava a um passo de experimentar a maçã do conhecimento que Eva oferecera a Adão. Estava tão próximo das respostas que as perguntas já não lhe faziam sentido. O grande e poderoso Pontos, ali, á sua frente, e nada, nada mais poderia impedi-lo.

 

2014 - 16 de maio - Terra


  Ela me ajudou a levantar, olhou para mim enquanto rasgava um pedaço do pano que vestia, o amarrou em minha cabeça, unindo as duas pontas um pouco acima da minha nuca, tapando meu olho direito para que assim eu conseguisse manter o outro olho aberto. Aquilo me causou um alivio imediato.

- E então, só restaram alguns de vocês – Afirmou – devemos lutar? – perguntou enquanto eu absorvia a imagem ao meu redor.

- O que vai fazer com aqueles dois? – Retruquei, olhando para dois Fanáticos, que estavam amarrados no chão, enquanto cerca de cinco piratas os cercavam.

Foi a primeira vez que Jéssi me olhou daquela maneira, sorriu e deu ordem para que me levantasse. Segui-a em meio aos montes de entulhos, até próximo dos dois. Ela parou e os outros se afastaram, demonstrando um respeito que eu já não sabia que existia.

- O homem aqui deseja saber o que faremos com vocês – ela disse apontando o cassetete em minha direção, e logo vi o sangue respingando da ponta cilíndrica da arma – sinceramente, não somos assassinos – continuou com uma voz firme e rouca, um tanto suave e sedutora, mas naquele ponto, ah, era assustadora – mas também não somos adeptos a clemência – finalizou olhando nos olhos dos dois prisioneiros de guerra.

- Não n...nos... Ma... Mate – gaguejou o senhor de meia idade que há pouco erguera um facão e havia matado outros dois.

- Quanto de nós você matou? – Perguntou a ele.

- Matei apenas dois – respondeu prontamente, enquanto o medo reinava em seus olhos castanhos, que se moviam, inquietos e lacrimejantes.

- Responda a pergunta seu imbecil – ela disse – Nós! Estou falando de todos nós, homens, mulheres e crianças – disse em um tom ameaçador. Quantos já matou?? – Insistiu.

- Como posso me lembrar – Respondeu trêmulo.

- Resposta errada! – disse acertando-lhe a barriga com o cassetete – perguntei quantos – continuou cutucando as costelas do homem repetitivamente – Quantos? Quantos? Diga idiota!

- Deus seja misericordioso – ele dizia em meio a contrição – eu não sei – e então outro golpe – Aaaaaa!!! Matei pecadores em nome do meu Senhor – e aquele foi o fim. Um último golpe certeiro lhe acertou o queixo deslocando-o completamente.

- Agora vamos – ela disse olhando para o outro – você também é um assassino? – Perguntou.

- Sim – o negro respondeu sem nenhum temor.

- Quantos matou?

- É uma pergunta difícil – respondeu sem ao menos piscar os olhos. Logo ela começou a andar em volta dele.

- Vê como eles não se importam com nada – Disse olhando para mim – são assassinos, e nós também somos.

- Matei dezessete pessoas, vivas – ele respondeu, e a expressão do rosto ainda era a mesma.

“Que resposta mais idiota” pensei comigo mesmo, é claro que matou apenas pessoas vivas.

- Está ironizando? – ela retrucou em tom de ameaça.

- Não. Queria eu poder sorrir ou ironizar agora, mas tenho um cassetete apontado para minha cabeça, e minhas mãos e pernas, bem, estão amarradas – relatou erguendo as sobrancelhas. Talvez meus miolos estejam pelo chão daqui a alguns segundos, mas essa é a melhor resposta que tenho para você, moça – ele deu uma pausa – Afinal, nunca sabemos ao certo quantos matamos.

- E o que quer dizer com isso? – ela indagou.

- E Caim matou Abel – Ele riu – Quantos ele matou? Um? Ou possivelmente uma nova linhagem? Talvez uma dezena, ou uma centena de descendentes? Quem sabe milhares, ou até milhões? – Ele baixou a cabeça – Quantos eu matei? – risos, nessa hora ele parecia ser insolente – Quantos você matou? Nem mesmo a possível extinção de nossa raça é uma certeza – Aquela resposta me deixou pasmo.

- É, uma resposta interessante – Ela virou-se para mim – Acha que ele me convenceu? – perguntou-me, e naquele momento me coloquei a pensar sobre aquilo tudo, enquanto os outros me olhavam ansiosos pelo julgamento.

- Não – respondi depois de refletir.

- Por quê? – Ela insistiu.

- Porque se ele crê que a extinção não é uma certeza, por que ser um Fanático e matar os de sua própria raça?

- Boa rapaz! – ela se voltou para ele.

- Verdade, um fanático – ele suspirou.

- E? – Ela insistiu, e eu pude ver os punhos dela pressionando ainda mais o cassetete.

- E não há resposta para sua pergunta. Ao menos nenhuma que salve minha vida – disse, e os olhos brilharam – Somos sobreviventes. É isso que somos, todos nós; Piratas, Fanáticos, todos – e uma lágrima fez um rasto fino de lama em seu rosto imundo – muitos talvez não mereçam viver, não depois do que já fizemos e do que ainda irão fazer. Por isso faça o que tem que fazer, moça, apenas sobreviva.

Ela levantou mais uma vez o cassetete. Nada mais importava, olhou para o homem à sua frente, olhou-me diretamente no olho que me restava, e como um juiz usando de seu malhete, tal qual a Deusa Thêmis empunhando a balança, e equilibrando a razão e o julgamento, gritou para os quatro cantos:

- Sobrevivênciaaaaaaa!!!

E assim a partir daquele momento, eu; Henrique, me tornei “Guerra”, e aquele que se tornaria meu melhor amigo; Jorge, desde então fora conhecido como; “Jorge, o Sábio”, não éramos mais simples humanos, não mesmo, agora éramos Piratas.

 

2051 - 27 de Março – “Pontos”


Nós nunca tínhamos visto eles de perto, como poderíamos saber quem eram?

Quando soubemos que a Terra fora destruída, lembramos rapidamente das palavras inscritas por nossos ancestrais e preparamos Pontos para a chegada dos novos habitantes.

E assim dizia;

“Virá, pois, como ladrão o dia do Senhor, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se dissolverão, e a terra, e as obras que nela há, serão descobertas”.

Aquelas palavras eram tão verdadeiras, tão reveladoras. E as verdades não paravam por aí. Estava escrito, almas vagariam na terra até que se cumprisse a profecia, entretanto aquela raça era mais forte do que pensávamos, eles pareciam não temer nem mesmo a seus Deuses.

Não iriam se entregar nunca, e ali estavam, lutando pelo minuto seguinte e pelo próximo depois deste, e lutariam até o fim, porque enfim encontraram aquilo que outrora havia lhes faltado, encontraram fé.

Quando ele chegou até mim, quando vi que era tão jovem, pensei em como eles puderam continuar existindo, afinal que poder era aquele que possuíam e que os mantinham vivos? Por que eles não morreram junto dos outros?

 

2014 - 16 de maio – Terra


Pensamos que seria mais difícil entrar na nave, porém ao nos aproximarmos sentimos algo diferente, uma energia tal qual puro magnetismo nos puxando levemente para o objeto. Seguimos ao encontro dela anestesiados, era algo dessemelhante de tudo que havíamos experimentado até então, e à medida que nos aproximávamos, ah, eram tantas sensações, como se um afeto enorme invadisse nossa alma.

Caminhávamos, e ao chegar cerca de um metro e meio das paredes daquele curioso aço orgânico, o mesmo parecia estar vivo. Como um lago que é atingido por uma pedra, se movia expandindo os movimentos circularmente, como a água sendo corrompida, e abruptamente fendas se abriram, eram portas nos convidando a adentrar, contudo uma luz ofuscante impedia que víssemos o que havia lá dentro. Olhei para o lado e Jéssi me olhou de volta, eu sorri e dei mais um passo, não podia fazer diferente, aquela era nossa deixa, ela me devolveu o sorriso, acho que foi bem ali que eu soube que a amaria, Jéssica entrou, e também entrou para sempre em meu coração.

Enquanto transpassava as barreiras de quase meio metro de espessura, olhei para aquela estrutura orgânica e pude perceber que pequenas ramificações se moviam como serpentes negras, ou talvez, veias de um material flexível e extremamente resistente, que hora se mostrava rígido como o mais nobre de todos os metais, outrora, mesmo mantendo sua resistência, era uma espécie de tecido, carne ou pele. Algo tão vivo, e completamente inteligente.

A luz diminuiu assim que entramos e tão logo a repentina cegueira provocada por tamanha luminosidade cessou, e foi nesse momento que nos deparamos com a visão conturbada de algo que nos assustou.

- O que é isso? – Perguntei assustado, olhando para as inscrições que se estendiam ao longo das paredes e para as imagens no teto. Era como se toda uma história estivesse ali. O que mais nos espantou foi entender tudo aquilo, ver ali todo um dialeto, mensagens, tão conexas, claras como a luz do dia.

- É a palavra de Deus – disse Jorge num suspiro longo e indecifrável. No que afinal estava pensando? Ele, um fanático, ao entrar na nave e ver aquilo decerto poderia pensar ainda em mais possibilidades do que eu, e se eles estivessem certos? E se Deus realmente quisesse aquilo? Meus pensamentos foram interrompidos pela voz de Jéssica.

- Deus?? Então agora ele é um alienígena? – indagou, e ali havia algo mais que ironia, seria sarcasmo? – A meu ver isso é muito maior do que podemos imaginar, Sábio – Disse olhando para Jorge.

- Está supondo que tenhamos sido enganados? – Me intrometi deliberadamente, enquanto ouvia Jorge ler algo em voz alta.


- Enoch? – exclamou e então leu:

"...recebi a visita de dois homens de grande cultura, como jamais havia visto na Terra. Seus rostos brilhavam como o Sol, seus olhos pareciam lâmpadas ardentes. O fogo era expelido por seus lábios. Suas roupas pareciam plumas. Seus pés eram purpúreos, seus olhos brilhavam mais que a neve. Chamaram-me por meu nome..."

- Será possível? – questionou outro, enquanto todos olhavam atentos para as mensagens, que mudavam ao toque no aço. A bíblia inteira estava escrita naquelas paredes, enquanto no teto, imagens de anjos, de Jesus, e de outros seres, alternavam o tempo todo, indo e voltando, como se fossem catalogadas. E mais a frente eu li algo que me deixou atônito.


- Aconteceu no trigésimo ano, no quinto dia do quarto mês, quando eu me encontrava no Rio Chebar entre os exilados. Lá se abriu o céu...eu, porém, vi como veio do norte um vento tempestuoso e uma grande nuvem, envolta em resplendor e incessante fogo, em cujo centro refulgia algo como metal brilhante. E cada um tinha quatro rostos e cada um quatro asas. Suas pernas eram retas e a planta de seus pés era como a planta do pé de um bezerro e brilhavam como metal polido – Pausei e então passei para o próximo versículo – Além disso vi, ao lado dos quatro seres vivos, rodas no chão. O aspecto das rodas era como o vislumbre de um crisólito e as quatro rodas eram todas da mesma conformação e eram trabalhadas de modo tal como se cada roda estivesse no meio da outra. Podiam andar para todas as quatro direções, sem virar-se ao andar. E eu vi, que tinham raios e seus raios estavam cheios de olhos em toda a volta das quatro rodas. Quando os seres vivos andavam a seu lado e quando os seres vivos se elevavam do chão, também as rodas se elevavam." – Que merda é essa? – Questionei relutante.

- É Ezequiel, um vislumbre. Alguns dizem que o que ele viu na verdade foi a glória de Deus e que as quatro rodas simbolizam os quatro evangelhos e os quatro evangelistas – Foi o que disse Jorge, mas estávamos dentro de uma nave, nem mesmo as palavras do Sábio carregavam tanta certeza... “Alguns dizem??”. Ora bolas!

Deus, Aliens, a Bíblia, o ser humano e a tal palavra de Deus gravada em uma nave que parecia ser mais do que uma simples nave. Afinal o que estávamos fazendo ali? Quem éramos de verdade? Quem era nosso Deus? Minha mente não estava conseguindo processar tudo aquilo, e como conseguiria?

- Isso é absurdo! Quem são vocês? – Jorge gritou, de pé e então girou, olhando a imensidão da nave. Não havia painéis, nem mesmo um comando, era algo imenso e um enorme corredor se revelava a nossa frente. Jorge gritava com a própria nave.

- Ele pode estar aqui – Disse Jéssica, o olhar um tanto melancólico e ao mesmo tempo esperançoso. Ela se virou para o corredor e começou a caminhar a passos apressados, a cada passo enquanto a seguia algo me convidava a entrar, a vasculhar aquele interior e particularmente eu já me sentia a vontade ali.

Haviam várias salas, quartos, mas não haviam camas, não, cada cômodo parecia guardar um tipo de conhecimento. Em um quarto a violência estava estampada pelas paredes, imagens de guerras passadas, sangue escorrendo pelas paredes de aço, morte e atentados terroristas, era como se eles soubessem tudo sobre nós, mas onde eles estavam? Quem eram eles?

Noutra sala encontramos imagens de felicidade, sorrisos, comemorações por vitórias pessoais, alegria, e tudo parecia ser um conto de fadas.

Entramos e saímos em várias salas; dor, amor, sofrimento, angustia, depressão, era um misto de tudo que pode se experimentar, mas nada foi pior do que chegar a ultima sala e encontrar aquilo que ela procurava, ou quase isso.

Jessica olhou para as cápsulas de pé, o ambiente era frio, gélido e ostentava uma morbidez surreal. Quando vi os primeiros, dei um passo para trás. Crianças, velhos, jovens. Um bando de gente morta, congelada, aberta ao meio enquanto a parte interna de seus corpos não estava ali. Eram vazios e sem vida, ocos e bizarros, roxos como só o frio poderia tingir-lhes. Ela não encontrou o filho ali, graças a Deus.

Não percebíamos movimento algum do lado de fora. Encontramos por fim uma sala interessante, a forma era de um crânio, e havia duas orbitas transparentes ao menos internamente de onde podíamos ver tudo lá fora, inclusive os curiosos que insistentemente continuavam chegando, e se matando do outro lado daquelas paredes, sem saber que estávamos ali.

Havia duas poltronas, de frente as órbitas, sentamos e encostei a cabeça no encosto de metal, e mais uma vez estranhei como macio podia ser aquele material.

- O que você fazia antes disso tudo? – Indagou Jéssi.

- Antes de ser um pirata? – brinquei – bem, eu era médico, na verdade quase isso, digamos que faltava apenas um ano e meio para me formar, mas estava fazendo meu estágio no hospital regional de São Paulo.

- Excitante – Ela comentou libertinamente. Senti como há muito tempo não sentia. Meu corpo respondeu subitamente àqueles estímulos. Ajeitei-me naquela espécie de poltrona e respirei o ar incrivelmente puro ali dentro. Era como se a máquina adaptasse o ambiente a nós.

Pensei em ir à direção dela como um verdadeiro garanhão e possuí-la com volúpia, mas estava indeciso quanto ao tom que usara, seria uma brincadeira, um joguete, ou realmente um flerte insinuantemente divertido?

Antes que eu pudesse pensar, ou falar qualquer coisa mais, ela simplesmente veio para cima de mim, com uma voracidade tentadora. Aquilo era insano, mas afinal, não sei o que aconteceu, talvez fosse todo aquele caos, ou quem sabe o ambiente da nave tenha contribuido para que aquele desejo aumentasse, o certo é que não pude resistir, afinal a queria completamente. Ali mesmo, naquela poltrona, fiz o melhor sexo de minha vida e enquanto isso acontecia, por algum motivo a nave voltou a funcionar, como se estivesse apenas recarregando suas baterias.

Sentimos um leve balancear e vimo-la planar, se distanciando dos escombros, e indo em direção as nuvens cinzentas que escondiam o universo de nós. Aquelas barreiras após serem quebradas nunca mais seriam vistas.

Batizamos a nave como Gaia, a sugestão foi dada obviamente por Jorge, que no momento explicou que Gaia, era a Deusa da terra. Disse ainda que ela veio de Caos, que foi a primeira divindade a surgir no universo, e uma das mais complexas. Ele explanou muito sobre mitologia naquele dia, e a cada palavra aclarada, a cada prisma absorvido, eu me via mais fascinado por aquele novo amigo, de um conhecimento tão amplo. Com o tempo descobri que Jorge havia sido seminarista, obviamente acreditava em Deus, mas mesmo sendo um fanático, não se prendia apenas aos ensinamentos de uma religião.

O tempo passava. Aos poucos a nave revelava-nos todos seus segredos, e a cada nova revelação ficávamos ainda mais curiosos. Em cada planeta que visitávamos o cenário interno da nave se modificava; o ar, a parte interna da nave, a estrutura se adequava, a situação gravitacional, tudo, e nós que estávamos dentro da nave também sentíamos mudanças, como se nos adaptássemos aquilo.

Assim como o tempo passava, a fome também chegava. Em uma das salas havia água, uma amostra de água coletada na terra, algo em torno de mil litros, não mais que isso, entretanto não havia comida ali e a única idéia após relutantemente ignorarmos aquilo, foi a de nos alimentarmos da carne daqueles que haviam sido congelados. Foi um processo árduo, algo realmente difícil de aceitar. Mas dez dias depois de nossa partida, o que podíamos fazer? A fome já havia deixado dois de nossos homens loucos, e no fim foi a decisão mais acertada. A nave não falava conosco, mas bastava agora um pedido e os comandos eram dados. Pedíamos para que um corpo fosse descongelado e isso era feito, depois bastava cortar a parte que queríamos e pronto, por azar eu era um dos poucos que sabia bem como funcionava o corpo humano, como tirar cada parte sem danificar a outra, afinal era um cardápio incomum.

Assim que os descongelava levava para uma sala de aquecimento. Como disse anteriormente, Gaia era repleta de salas inteligentes, cada uma tinha suas funções, algumas tinham várias. A estrutura da nave era algo impressionantemente mutável, e os recursos pareciam ser ilimitados.

Era crucial que cortasse mãos, pés e cabeça, e esses eu jogava fora, pois não suportava imaginar aqueles olhos congelados me espreitando enquanto escapelava os cadáveres. Também segregava os poucos órgãos que haviam deixado para trás, e partes consumíveis, e em seguida limpava o que era necessário.

Outro ponto que sempre me causou repulsa eram as genitálias masculinas, “argg”, algumas tinham tantos pêlos, eu cortava o órgão sexual e juntava com os restos descartáveis, para depois lançá-los ao espaço. Isso era feito de maneira simples, colocávamos o que queríamos descartar em qualquer canto da nave e dávamos o simples comando; “descartar”, e pronto, os restos eram engolidos pelo metal como se devorados por um poço de areia movediça e posteriormente eram expelidos no espaço.

Carne velha era passada demais, dura demais, mas as orelhas tinham um sabor diferente, portanto essas não descartávamos. Como estão vendo o inicio realmente foi difícil, mas o que estávamos fazendo de mal? Não estávamos mais matando para sobreviver, não, eles já estavam mortos e nós apenas queríamos continuar vivos, e que mal há em se gostar daquilo que se come?

Não encontramos vida alguma, apenas morte e destruição. Os planetas eram inóspitos, e somente pequenas fontes de água eram encontradas. Aos poucos descobrimos mais sobre a nave, a cada passo nos conectávamos mais com ela. Ela podia rastrear a água, ia diretamente onde havia as reservas, e um dia Jorge descobriu algo mais.

A nave nos mostrou uma imagem, a efígie de um grande planeta, tal qual a Terra, porém cinco vezes maior, e nele estava tudo aquilo que nos foi tirado. Imagens começaram a passar como se em um filme 3D. Vimos naves, naves como Gaia, descarregando tudo aquilo que tiravam dos planetas saqueados; água, animais, vida, pessoas, tudo. Tudo era colocado naquele planeta que segundo os registros de Gaia tinha o nome de “Pontos”.

Assistíamos aquilo e a cada imagem nos surpreendíamos mais, até que vimos algo impressionante, as naves se transformavam em gigantes, gigantes de ferro. Jorge olhava aquilo atônito e Jéssi estava ao meu lado, sentia seu braço direito envolto em minha cintura. Nesse dia ela não estava bem, e com o tempo eu soube o porquê.

- O que é isso Gaia? O que vocês são? – Jéssi perguntou, e aquela foi a primeira pergunta diretamente relacionada a origem das naves. Não sei o que sentíamos, se era medo, curiosidade, ou um misto dos dois?

- Emins – uma voz estridente e metálica bradou aos nossos ouvidos, e aquela foi a primeira vez que ouvimos a voz de Gaia.

- Emins? O que é isso? Outro idioma? – Devassei.

- Não – Jorge olhava para as imagens, até então estava emudecido, mas compenetrado – Emins, meu Deus, eles deviam estar todos mortos, mas será possível que sejam de metal? Estou pasmo! Segundo a Bíblia eles eram uma tribo ou povo que morava no território ao L do mar Morto. São descritos como grandes, numerosos e altos “como os Anaquins”. Esta comparação com os filhos de Anaque indica que os Emins eram de estatura gigantesca e eram ferozes, porque Moisés declarou a Israel: “Tu mesmo ouviste dizer: ‘Quem se pode manter firme diante dos filhos de Anaque?’ – Jorge parecia descrente, não sei se naquela informação, ou se em tudo aquilo que acreditara durante toda a vida – Não se pode determinar definitivamente a origem dos Emins, embora alguns achem que eram um ramo dos Refains.

- Vocês são Emins, Gaia? – perguntei.

- Gaia é Emins – Ela respondeu.

- Vocês são nossos amigos? – Agora quem perguntava era Jéssi.

- Emins não amigos – respondeu – mas Gaia é Emins, Gaia amiga é da Terra.

- Por que voltou para nos buscar, Gaia? – Pesquisou, Jorge.

- Gaia gosta de sala feliz – e então entendemos tudo – Gaia gosta de sala feliz – Ela repetiu. Gaia escolheu aquelas imagens, os risos, as vitórias, viu a parte boa do ser humano – Gaia leva piratas para planeta azul – completou e então nos voltamos novamente para imagem de Pontos.

- Pontos é a primeira divindade que surge como força primal das águas e é personificado como o mar primitivo – Jorge revelava – Planeta azul? Pontos, o líder e mestre de todos os rios aterrorizantes que banham o tártaro. Esta dualidade de Pontos, como o gerador da vida, e o líquido da morte, nos faz refletir que vida e morte têm um ponto comum – Tinha horas que dava vontade de desligar o Jorge e aquela era uma delas. Nossa busca estava apenas começando, agora procurávamos Pontos, seria ele o paraíso?

 

Nave Rastreadora Gaia “25 de março de 2051“


Acabando de gravar a mensagem, me virei para Jéssi, estava linda como sempre, seus olhos me fitavam e eu podia sentir o cheiro dela no ar, eu sentia aquele aroma, os olhos continuavam parados, sem piscar, aquilo era nostálgico. Jéssica estava congelada.

Aconteceu quando menos esperava. Aos poucos notamos que dentro de Gaia nossa saúde parecia perfeita. Acordei certo dia, Jéssi estava grávida de sete meses e Noé estava em seu ventre. Jéssi estava mal, algo estava acontecendo com ela. Aos poucos estava emagrecendo, ficando em um estádio deplorável, o bebê estava mais quieto, mais fraco e ela continuava dizendo que estava tudo bem.

“Não é nada, Pirata” Ela dizia. “É a gravidez, Noé deve estar construindo uma arca para sair de meu corpo” e sorria.

Passei a cuidar dela, mas até mesmo para um médico era difícil diagnosticar um paciente que não queria ser curado. Descobri tarde demais que Jéssi não queria aquela criança, ela não queria Noé, pois achava que ele tomaria o lugar de Lucas, seu filho perdido. Ela ainda estava obcecada em encontrá-lo. Jéssi havia escrito uma carta e a guardava escondida de mim, até o momento certo de me entregar ou deixar onde eu pudesse encontrá-la, entretanto Gaia certo dia falou comigo, enquanto eu e Jorge dialogávamos sobre a ultima de nossas excursões a um pequeno planeta que era chamado de Glesius.

- Jéssica quer ser carne dada aos vermes! – disse a voz robótica.

Ouvi aquilo e levei um choque, uma ira imensa me possuiu. Que merda era aquela que ela estava dizendo. Estava zombando de Jéssi?

- Repita isso, Gaia – disse em tom alterado, enquanto Jorge se levantou ao meu lado, ainda em silencio.

- Caro data Vérmibus – ela disse – Jéssi quer ser carne dada aos vermes – E naquele instante eu quis destruir aquela nave.

- O que é isso? Por que você está falando isso? – perguntei e Jorge me pediu calma, e então me explicou.

- Amigo, ela está dizendo que Jéssi quer morrer – A voz de Jorge chegou num tom ameno, e então ele continuou – Essa é uma visão vinda dos romanos – ele começou a explicar – Um homem ou um animal mortos eram, em todo caso, "carne dada aos vermes" – eu ouvia aquilo enquanto sentia a mão de Jorge pousada em meu ombro – Isso era desagradável, entretanto, os romanos não a diziam com todas as letras. Para transmitir à família, aos parentes e amigos que alguém havia morrido, eles não diziam que o morto era "carne dada aos vermes" ou ("Caro data vérmibus"). Eles faziam essa comunicação de uma forma sintética, dizendo simplesmente que o morto era "ca-da-ver", empregando apenas a primeira sílaba de cada palavra – recebi aquilo como um baque, e logo que perguntei a Gaia por que ela achava isso, a mesma me mostrou onde estava escondida a carta. Logo que a li, percebi o quanto ela estava sofrendo. Jéssi havia escrito a carta e nela explicava o motivo de ter se suicidado após o nascimento da criança. Jéssica iria se matar assim que Noé nascesse.

Não havia como revelar a ela que eu sabia de tudo. Com a ajuda de Jorge e Gaia aguardamos o nascimento da criança e assim que o mesmo foi feito fizemos a única coisa que poderia ser feita, pegamos Jéssi e a levamos para sala fria, onde a coloquei em uma câmera e a congelamos. Prometi a mim mesmo que encontraria Lucas, nem mesmo que tivesse que apanhar seus ossos pelo espaço.

Estou gravando essa mensagem por um motivo, quando entramos em Gaia éramos vinte e seis a bordo, nove mulheres e dezessete homens. Hoje, 37 anos após esse dia, somos cinqüenta e três pessoas, crianças, adolescentes, adultos e idosos. Para quem nasceu na terra o tempo passa de maneira diferente, ainda esperamos o ultimo minuto, mas para aqueles que nasceram em Gaia, ao alcançarem a maturidade, por alguma correlação com a nave o envelhecimento acontece de maneira mais branda, Jorge defendia que isso estava diretamente ligado com a longevidade na Bíblia, acreditava que esse é um dos poderes de Gaia, foi uma pena ele ter morrido, mas os mortos eram necessários, era a contribuição para que continuássemos nossa busca.

Estou no fim da minha vida, mas deixo essa gravação para você Noé, meu filho, e para aqueles que procuramos. Deixei um lar para trás e não sei se chegarei a encontrar aquilo que busco, nem qual a verdade para todo esse caos que é o mundo, mas não deixarei de lutar jamais, pois uma mulher um dia me disse, “Você é um Pirata”, e é isso que sou.

Fim de mensagem.

 

2051 - 27 de Março – “Pontos”


Ao vê-lo assim, imaginei a mensagem que ouvimos, daquele que tinha apenas um olho, era mais velho, barba e cabelos longos, a sua imagem e semelhança.

Olhei-o de cima abaixo, aos meus olhos era um gafanhoto, lembrava-me bem os homens de antigamente. Assim lembrei-me das palavras que carregaram meu povo de volta a Terra.

“Certamente dias virão em que farei soar o brado de guerra contra Rabá dos amonitas. Então ela será reduzida a um monte de entulho, e os seus povoados e aldeias serão consumidos pelo fogo; então Israel expulsará aqueles que o expulsaram; deserdará os que o deserdaram!”

 

2051 - 27 de Março – “Pontos” – O que eu vi

Noé, meu filho, se levantou em meio a todos, havia feito um juramento a mim, eu estava debilitado, mas ele prometeu que iria proteger a todos, e agora estávamos em Pontos, de frente aos Gigantes, e mesmo de longe, eram como os gafanhotos que destruíram a terra, Naves numerosas, e a visão daquele planeta era impressionante.

- Nós viemos em paz, queremos o que é nosso de direito, sabemos que são mais fortes, mas essa terra também é nossa – e então ele olhou nos olhos de metal daquele que Gaia havia chamado de Basã.

“Porque só Ogue, rei de Basã, ficou de resto dos refains; eis que o seu leito, um leito de ferro, não está porventura em Rabá dos amonitas? O seu comprimento é de nove côvados, e de quatro côvados a sua largura, segundo o côvado em uso.

- O que vocês são? – Ele perguntou e pudemos perceber, deitados no chão, que eles estavam de alguma forma surpresos com nossa sobrevivência.

- Somos homens – respondeu Noé – Somos humanos – Continuou – somos Piratas – e por fim concluiu – mas acima de tudo somos sobreviventes.

Era incrível o que meu filho havia se tornado, e eu tenho certeza que Jéssi terá orgulho dele um dia. Olhando para o gigante, para meu filho e para todos aqueles que estavam ajoelhados como eu, tive certeza que ele ficaria bem. É uma imagem que ficará para sempre em minha memória, não como aquelas tolas imagens, mas como a imagem de uma nova era, de uma nova terra e daquele magnífico, e sublime mar.

Gaia permanecia ali, olhando para nós, de cabeça baixa. Ela também era um deles, uma nave, um gigante, e suas pernas eram mesmo retas e a planta dos pés era como a planta do pé de um bezerro, ah, e brilhavam como metal polido.

Levantei-me, olhei para além dos gigantes e os vi. Vi carneiros, cavalos, outros animais que nem sonhava que existisse, e também vi outras pessoas, elas trajavam roupas simples, e pareciam camponeses. Lembrei-me do que Gaia nos contou a respeito dos corpos nas naves. Não eram experiências, eram doentes, alguns estavam em fase terminal; câncer, Aids, doenças incuráveis para raça humana. Outros apenas estavam no inicio, a doença começava a tomar conta de seus corpos. Os mortos serviram para estudo e logo os outros foram curados. O plano deles era começar de novo, com poucas pessoas, curando a raça humana de toda sua prepotência.

O gigante olhou para nós, e ordenou que os outros Emins guardassem suas armas, e que nós nos levantássemos, pois os tempos de guerra haviam acabado, e agora estávamos em casa. Por fim disse:

- O fim é apenas um recomeço, a Paz nada mais é que um benefício da guerra, assim foi no tempo da Arca, assim foi no nosso tempo, e assim está sendo agora para a raça Humana . O fim, o inicio, a origem... Não há explicação para tudo, tampouco perguntas para tantas respostas. Que haja paz!

Olhei para Gaia e ela pareceu ler meu pensamento, corri para ela que logo era uma nave, novamente. Jéssi estava sendo descongelada, não sei mais se morrerei tão rápido assim, ou se terei a eternidade. O que será Pontos, de verdade? O que são esses Gigantes? Afinal, onde está Deus? Quem é ele? O que havia nos outros planetas, estaria tudo ali? Ah, Jéssica iria acordar. Lucas estaria vivo? Tantas perguntas, mas como Basã mesmo disse;

“O fim, o inicio, a origem... Não há explicação para tudo, tampouco perguntas para tantas respostas. É preciso ter fé!

Olhei Para minha amada, os olhos dela piscaram, o sorriso ainda estava congelado, como quando ela adormeceu aquele dia, estava ansioso.

- Acorde meu bem, é hora de procurar seus filhos.

E ao fim da história uma criança falou:

- Conte mais vovô Guerra!!!

- Por hoje chega, Jorginho - respondeu lembrando-se do amigo que perdera há tantos anos - Crianças, agora vamos apagar essa fogueira e ir para cama, afinal amanhã será um novo dia, aproveitem o sono, pois cada minuto deve ser eterno.

Fim_nício!