Corações

Era sexta feira. Estava calor. E o sujeito transpirava na parada enquanto esperava por algum ônibus.

O sujeito que trajava calça jeans e uma jaqueta azul acenou para que o ônibus parasse. A lua já brilhava em seu domínio, e as ruas já estavam vazias – exceto por um ou outro que ainda vagavam por ali, indo ou vindo de onde quer que fosse. Depois que o homem subiu no veículo deixou ali duas pessoas; um homem e uma mulher, marido e esposa que tinham dois filhos e um casamento chegando ao fim, deduziu da conversa que teve com ele. Os dois teriam sido sua vítima, não fosse pelo fato deles ‘não valerem a pena’.

Eu não valho a pena, pensou Josuel consigo mesmo. A vida nunca foi gentil comigo, sempre tive que correr atrás do que precisei, e nem sempre fiz isso de modo justo. Passei muito tempo preso, é claro, mereci. Mas agora, estou livre.

Ele pagou a passagem ao cobrador e passou pela roleta, fazendo-a girar. Olhou para os passageiros. Três homens, uma mulher. Sem pensar muito, descartou a mulher: ela não trazia consigo bolsa e usava roupas velhas, não seria um bom negócio, não seria de fato. Descartou um dos homens em seguida. Ele também não tinha mochila, apesar de ter as roupas um pouco mais vistosas que a da mulher. E, afinal de tudo, era apenas um piá, não deveria ter 16 anos, e isso chutando alto. Um dos outros dois usava fones de ouvido enquanto digitava num moderno smartphone cujo Josuel não conseguiu detectar. Visto isso, descartou o outro, e escolheu sua vítima.

Sentou-se num dos últimos bancos, de onde poderia observar os outros, e ali ficou. Josuel abriu sua mochila e tirou dali o Jornal do dia, roubado da banca perto da casa dele, cuja dona era uma senhora gagá que tinha costume de alimentar os pombos enquanto deixava seu pequeno comércio sem cuidado algum. Todos os dias, ele pegava um exemplar, apenas para manter-se informado, e também pelo prazer que tinha em roubar. O prazer que tinha em poder ser pego no ato, a adrenalina de surrupiar na espreita, em silêncio, invisível, e por fim dizer bom dia para a velha senhorinha e qualquer um outro que passasse por ele. Abriu o jornal, e suspirou; sempre as mesmas coisas.

Juro, se o prefeito aprovar o aumento das passagens dos ônibus, eu roubo a mulher dele, concluiu o homem com um riso abafado, para não se fazer notar. Gostava de pensar em si mesmo como um justiceiro as vezes, que roubava dos que mais tinham, mas sabia que isso não era verdade. Em seu fundo, sabia que fazia isso por prazer, e também porque precisava. Na verdade, a necessidade mesclava-se a vaidade, fazendo do útil, agradável. Levantou os olhos brevemente e viu o cabelo moreno do dono dos fones do ouvido, e então baixou-os novamente, e continuou a ler sem encontrar nada que o interessasse até a página seis.

Quem deixou os cachorros escapar, hein? Pensou consigo mesmo, sorrindo, e resolveu que leria esta matéria.

***

O manicômio da cidade divulgou hoje que a dois meses seis pacientes de alta prioridade escaparam do manicômio municipal. Os guardas foram encontrados mortos, mas não foram dados mais detalhes além destes. O nome dos pacientes serão mantidos em segredo, por questões jurídicas, mas fotos dos mesmos serão divulgadas para que a população possa se manter alerta. Não se sabe como o grupo conseguiu fugir, mas entre eles está Jesuzin, o homem que tinha um grande e perigoso delírio sobre o demônio ter possuído o coração de sua mãe. O verdadeiro nome de Jesuzin nunca foi revelado, pelos mesmos motivos. Abaixo estão as fotos dos seis pacientes; lembramos que se alguém vê-los, a polícia deve ser contatada imediatamente. A segurança no perímetro urbano será dobrada até que o caso seja solucionado. A justiça obrigou que sigilo fosse mantido sobre o ocorrido, mas agora declara estado de emergência.

Abaixo estava as fotos dos seis homens, o último deles tinha uma cicatriz na testa, e o nome Jesuzin estava sob a foto, e algumas informações apareciam ali.

Jesuzin, além de sofrer de um grande delírio, é cleptomaníaco e morou no perímetro rural do município. Na última vez em que foi visto, usava a roupa do manicômio municipal (judicial). O mesmo foi parar lá porque a justiça não o pôde julgar, sendo um psicótico. Segundo funcionários do manicômio, ele não gostava de tomar banho. Ele foi condenado a perpétua no manicômio, por matar pessoas e arrancar seus corações, acreditando que estaria exorcizando o demônio que os possuiu.

Josuel fechou o jornal e guardou-o em sua mochila. Passou então a mão no cós do jeans e sentiu o cano do revólver ali, gelado.

***

Depois de alguns minutos de viagem, dois passageiros desceram do ônibus; a mulher e um dos homens, mas a vítima escolhida por Josuel ainda estava ali, ainda digitando em seu celular. O relógio no monitor do ônibus indicava que já se passavam das onze horas. Sentado no banco ao fundo do ônibus, o sujeito pensava que se não conseguisse dinheiro logo, iria passar fome. Tentarei vender o celular do sujeito que vou roubar hoje por alguns trocados no primeiro beco que eu encontrar.

Sua vítima se levantou, e puxou o fio que solicitava a parada. E ele não poderia ter feito isso num lugar melhor.

O lugar era conhecido como o Bico do Corvo, e as faltas de energia ali eram constantes; não era um bom lugar para uma pessoa de bem, mas várias famílias moravam ali e não procurava problemas. Apenas queriam algum lugar para morar, e este deveria ser o caso do sujeito que havia acabado de se levantar. Então, naturalmente, Josuel também se levantou e se aproximou do sujeito.

- É bom descer acompanhado num lugar destes. Tenho medo de andar por aqui por essas horas. – disse-lhe Josuel, e perguntou depois – como se chama, amigo?

- Tomás. – respondeu o sujeito, e somente isso.

Bem, que cara quieto este, pensou.

- Prazer, Tomás. Sou Josuel. – se fazer de inocente, colocar-se como preocupado e com medo gera empatia, aprendeu o homem com o tempo. – Mora por aqui há muito tempo?

O veículo parou e os sujeitos desceram os degraus e saíram no Bico do Corvo, e como de costume, a iluminação não estava funcionando.

Perfeito.

A resposta só veio após alguns passos:

- Moro aqui desde que nasci, com minha mãe. – o homem tirou um cigarro do bolso e o acendeu. Deu uma longa tragada e jogou a fumaça para fora.

Josuel o acompanhou, lentamente; já conseguia sentir os arrepios de prazer eletrificando-o e eriçando seus pelos, já sentia a ânsia de satisfazer sua vontade de roubar, o instinto que lhe veio quando criança e o fez sobreviver por tanto tempo. Diminuiu o ritmo do passo e levou a mãos ás costas. Puxou a arma lentamente e liberou a trava de segurança.

- Ei, parado, amigo. – ordenou, apontando a arma para as costas de Tomás.

Ele parou, e olhou para trás. Não fez expressão alguma, parecia inacreditavelmente natural e familiar com a situação. Levou a mão direita para sua cabeça e mexeu em sua franja, e então levantou as mãos.

- O que você quer comigo? Por favor, não me mate. Eu tenho família! – Implorou Tomás, e se ajoelhou... – Por favor...

Ele falava de modo seco, mas Josuel reconheceu algo em sua voz, algo familiar.

O medo.

- Não quero sua vida, companheiro. Me passe o celular e sua carteira, e então o deixo ir. – Ordenou, quase rindo. Essa era a melhor parte, na opinião dele, era sentir o medo nos olhos da caça. – Vamos, passe pra cá, ou eu atiro! Ninguém aqui vai ouvir a porra do tiro, e se ouvirem, que vão fazer? Estamos num beco, companheiro. Aqui, estamos sozinhos.

O homem ajoelhado se levantou e levou as mãos aos bolsos do jeans. Tirou dali o celular e o fone de ouvido e entregou ao assaltante, e também entregou a carteira que estava no bolso de trás da calça. Quando ele fez isso, Josuel percebeu, sua calça quase caiu, mas foi levantada logo após.

Sentindo a onda de prazer que o ato lhe proporcionava, deixou de dar atenção à sua vítima e abriu a carteira. No escuro, apenas conseguiu perceber que havia bastante dinheiro ali, mas não pôde discernir quanto, e então apenas guardou-a. Agora, analisava o celular, que quase era demasiado grande para a palma de sua mão. Apertou o botão central e o visor iluminou-se, o que deixou a visão do homem embasada por alguns segundos, mas quando voltou ao normal, algo inesperado estava na tela do aparelho.

Senha incorreta. Teclado bloqueado. Tente novamente em 47 minutos.

A imagem de fundo era uma foto; a foto de uma mulher loira, de aparência jovem. Mas que mer...? Não conseguiu concluir o pensamento. Apenas sentiu a pancada, e então apagou.

***

Acordou num lugar sujo. E já outro dia; evidência disso era o sol que entrava pela janela e fazia seus olhos arderem. Na parede à sua frente, estava o quadro de um mulher velha, com grande terço que o envolvia.

Um homem entrou pela única porta daquele ambiente, que ficava a frente de onde Josuel estava. A claridade deixava-o zonzo, e demorou para que ele reconhecesse o homem que estava ali. Tomás.

E então, a memória do ocorrido depois que desceu do ônibus voltou para si, parecendo surreal, mesmo que soubesse que era verdade. Não disse nada – e nem ao menos conseguiria, pois sua boca estava fechada com uma grossa fita de cor cinza- apenas olhou para Tomás, que estava com a mesma roupa daquela noite. Momentos depois, ele notou que estava nu. Tomás se aproximou, trazendo junto de si uma faca... levou a mãe livre até o cabelo, e passou-a em sua franja... ali, havia apenas um resquício de cicatriz.

Incapaz de gritar, ou ao menos falar, Josuel soltou um choramingo. As últimas palavras que ouviu antes de morrer, foram com intuito de confortá-lo.

- Fique calmo, amigo. Aqui, ninguém pode te ouvir. E se ouvissem, o que iriam fazer?

***

O cobrador devolveu o troco para aquele rapaz estranho. Ele havia pagado com uma nota de cinquenta, embora estivesse cheirando levemente a suor e com suas roupas amarrotadas.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 10/04/2014
Reeditado em 22/04/2014
Código do texto: T4764099
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