Mundo de Trevas - Capítulo 5

Casa de Victor, meia hora antes da experiência:

Um ordinário programa de culinária na televisão ensinava como rechear um frango para assá-lo. O chef, com toda a postura e elegância que a telinha exigia, enfiava uma colher de pau por entre as coxas do bicho sem cabeça e sorria com o comentário que seu ajudante fizera sobre isso.

Victor, sentado na sua poltrona encardida e rangente, fumava um cigarro enquanto seus olhos desinteressados acompanhavam aquela baboseira.

"Quando foi que a televisão virou esse monte de estrume?" perguntava-se, sem saber se o pensamento havia sido dito só na sua cabeça ou se foi em voz alta.

Na cômoda ao lado da poltrona, o frasco vazio de comprimidos para hipertensão parecia um punhal. Depois de ter engolido, Victor se arrependeu. Não de ter desistido da vida: isso ele já vinha maquinando com convicção há bastante tempo. Arrependeu-se da forma com que fizera – comprimidos, como aquelas mocinhas passionais dos romances de banca de jornal...

Após um toque num dos botões do controle remoto, um pequeno relógio surgiu na tela da tv. Três e meia da tarde. Será que ainda estaria vivo quando a experiência começasse? Será que a programação da tv seria interrompida por algum plantão quando a hora derradeira chegasse? Será que seu raciocínio ainda tinha lógica ou a medicação já vinha lhe corroendo os miolos? Não, ele era gordo, tinha certeza de que o efeito custava bem mais tempo para aparecer aos gordos.

Levantou-se, não passaria seus últimos minutos sentado naquela poltrona como vinha fazendo ao longo da sua velhice toda. Lembrava com saudades da sua época de policial. Na varanda da casa, ficou olhando para a direção leste, onde sabia que a alguns quilômetros de distância ficava o tal instituto de pesquisas em que tudo aconteceria.

Concluiu que não foi uma boa idéia tomar os remédios naquela hora. A qualquer momento sentiria a vida se esvaindo e não poderia assistir o que muitos diziam, será o maior fenômeno celeste artificial da história da humanidade. Já podia sentir a mão tremer, não sabia se por efeito das drogas ou por medo do que poderia encontrar depois de morrer.

Logo em frente a sua casa ficava uma estrada que levava ao CPPMA. Ele nunca fora até lá, mas sempre via os cientistas e soldados seguindo naquela direção. Bem que poderia pegar seu carro e partir naquela direção, pelo menos até onde sua vida agüentasse levá-lo...

"Não!" exclamou para si mesmo, sentando-se no chão de madeira. "Não é hora de ser dramático: eu me matei porque quis."

Fechou os olhos, embora ainda não tivesse sentido nenhuma dor, desejava que fosse assim até o fim, indolor, uma morte como uma soneca na tarde –––––––––––– Não sonhou, talvez por não ter dado tempo: abriu os olhos com o som infernal de buzinas e berros. O céu estava bastante escuro, a experiência estava sendo executada e ele ainda estava vivo para presenciá-la.

Deduziu que tudo havia começado há pouco tempo, não iria demorar só cinco minutos?

Olhando na direção da CPPMA, podia ver o tornado negro emanando ainda mais microorganismos para atmosfera. Olhando para frente da casa, podia ver alguns poucos carros em altíssima velocidade indo na direção contrária à do instituto. E olhando para o interior do seu imóvel, podia ver uma estranha criatura que havia derrubado a sua televisão e a rodeava.

Era quadrúpede e revestida de uma vasta camada de pelos muito secos e desgrenhados. No geral, parecia um animal silvestre do tamanho de um cão de pequeno porte, não era exatamente o tipo de bicho que assusta um homem.

– Mas que diabos será isso? – pegou a vassoura ao lado da porta da frente e correu até lá. – Saia da minha casa, bicho imundo!

Sem piedade, acertou-lhe uma seqüência de golpes que aos poucos foi jogando o ser estranho para a porta. Espantou-se com o fato de aquele animal não andar como a maioria, ele "se arrastava" por sobre seus pelos, como se deslizasse em vez de caminhar. No entanto, Victor não iria perder tempo pensando nesse tipo de coisa agora. Quando conseguiu levar o bicho até a varanda, chutou-o com tamanha força que a criatura voou para perto da estrada.

Se fosse um animal comum, se sentiria ameaçado e iria embora. Mas a estranha criatura peluda fez exatamente o oposto: vendo naquele homem um lutador em potencial, estufou-se toda e voltou em velocidade para o contra-ataque.

– O quê?!

Victor teve tempo apenas de fechar a porta, segurando-a com força enquanto que do outro lado o bicho se batia com força contra a madeira para entrar.

Não... ele não deixaria que um animal esquisito entrasse na sua residência e destruísse tudo como fez com a televisão. Já não tinha amigos porque não gostava de pessoas mexendo nas suas coisas, imagine então se um animalzinho esquisito teria o direito de fazer isso! Trancou a porta e correu para o quarto, onde guardava a espingarda da época em que ia caçar no pantanal. Ao voltar, ainda vislumbrou o momento exato em que, com aquelas batidas, a criatura conseguiu arrebentar a porta de vez e entrar.

O que antes era apenas um bichinho de menos de meio metro de altura, agora já era bem maior que Victor. A mesma bola de pelos parecia ter quintuplicado seu tamanho, para desespero do homem, que com as mãos tremendo um pouco apontou a espingarda na direção do estranho ser.

Aquela criatura não emitia som nenhum, nem sequer um rosnado, parecia de fato um imenso emaranhado de pelos que adentrava cada vez mais na casa, até que recebeu a primeira bala, o que o impulsionou um pouco para trás.

– Saia já da minha casa! – bradou Victor, atirando outra vez, e outra, e outra.

Mas o resultado daqueles disparos foi no mínimo inesperado: a criatura crescia ainda mais!

Voltou a se aproximar da varanda, querendo novamente adentrar na casa do homem, que já não entendia mais que tipo de pesadelo era aquele em que estava vivendo. Quando a criatura entrou, passou por cima da mesinha de centro e a destruiu completamente, o que só enfureceu mais Victor.

Ele já havia entendido que tiros não iam ajudar muito, então correu até lá e empurrou o estranho bicho com a força dos braços mesmo. Expulsou o monte de pelos da sua varanda, e no quintal da casa ele socava a criatura enquanto gritava para que ela fosse embora dali de uma vez.

Mais de dez minutos numa brava briga para não deixar que aquilo entrasse e destruísse tudo o que era dele. E nesse meio-tempo, Victor se perguntava por que ele estava tão interessado em proteger as suas coisas afinal de contas? Os remédios já estavam em seu organismo, logo fariam seu efeito e ele estaria estrebuchado no chão. Por que lutava tanto se esse seria o fim?

No entanto, deixando a racionalidade um pouco de lado, ele só repetia para si mesmo que não queria que aquela criatura entrasse, golpeava-a com o cano da espingarda e com chutes sem prática.

E foi mais ou menos naquela hora que o carro de Rubem estacionou ali na estrada próxima e o soldado veio em sua ajuda. Juntos, os dois conseguiram expulsar dali o ser esquisito e depois Rubem explicou a ele tudo o que sabia sobre o que estava acontecendo. Victor então contou que havia um lugar seguro para onde eles podiam se refugiar, um casarão abandonado no meio do deserto. Juntou todos os mantimentos que guardava na cozinha e os levou até a sua van na garagem da casa, mas antes de os dois seguirem até a casa de Rubem, onde ele resgataria a sua esposa Bruna; Victor fez questão de descer mais uma vez da van e empurrar um pesado móvel contra a porta da frente da sua casa.

– Pro caso daquele bicho tentar voltar – explicou, seco.

***

A pouco menos de quinhentos metros da entrada da cidade-forte, agora:

O carro chegou a balançar quando Rubem empurrou Ezequiel contra a porta do veículo. Segurava-o pelo colarinho da camisa e tinha tanta fúria nos olhos que por um momento Adonias pensou que ele sacaria a arma e atiraria no próprio amigo.

– O que você tava pensando? Esse moleque só vai nos atrasar! Só vai ferrar com a gente! Você o ensinou a atirar? – batia repetidamente o amigo contra o veículo. – Hân? Ensinou? Não ensinou, não é? E agora, com que cara você vai chegar pro pai dele se alguma coisa acontecer?

A discussão, porém, foi interrompida quando Victor caiu de joelhos no chão e começou a vomitar. Os carros só haviam parado naquele ponto do caminho porque ele havia avisado que não estava se sentindo bem.

Adonias foi até ele, perguntou se estava sentindo alguma dor ou coisa parecida.

– Não – mentiu Victor, que na verdade sentia cada vez mais uma pontada profunda no estômago. – Precisamos seguir adiante.

Adonias não queria preocupar ninguém, mas ele viu a cor escura que aquele excremento havia adquirido no chão. Victor não estava nada bem.

– Escute, garoto – Rubem se dirigiu ao filho de Osmar. – Não acho que seja uma boa idéia você seguir até lá conosco – esforçava-se ao máximo para engolir a raiva que sentira há pouco, quando descobriu que seu amigo havia lhe escondido um passageiro extra. – Nós deixaremos um dos carros aqui, você fica nele e espera até voltarmos...

– Eu não vou fazer isso! – bradou Adonias. – Estou atrás de uma dessas criaturas e tenho certeza de que ela está lá – apontou para a cidade. – Vocês não vão me impedir!

Victor interveio na discussão:

– Rubem, eu acho que deixá-lo aqui sozinho não é uma boa idéia... Pelo menos se ele for conosco temos mais chance de protegê-lo...

O líder do grupo ficou calado por alguns segundos, nos olhos do rapaz loiro ele via com clareza que Adonias não estava blefando. Cerrou os punhos, odiava quando sentia que as coisas estavam caminhando para uma tragédia e mesmo assim não conseguia fazer nada para impedir – era exatamente a mesma sensação de quando trabalhava no Centro de Pesquisas.

Sem olhar no rosto de ninguém, voltou para o seu carro e bateu a porta, continuando seu trajeto.

– Ô garoto – Ezequiel o chamou, já sentado no volante do segundo carro. – Está esperando o quê? Entra logo!

No refúgio, uma vez que todos queriam ficar do lado de fora da casa para esperar pelo retorno dos carros, pediram para que Osmar e Cléber trouxessem o homem em estado de choque para o exterior do casarão também.

– Não que ele vá se interessar pelo ar fresco – Juliana brincou. Ela não era muito de medir as palavras.

Puseram-no sentado numa cadeira ao lado do tronco de cajueiro que, distorcido, era um grande banco semi-circular onde todos os outros se sentavam. Osmar não queria falar sobre o ocorrido, sabia que não ia demorar muito para que Adonias começasse a ter essas atitudes impulsivas dele. Cléber deitara-se e olhava para a imensidão escura, também sem dizer nada.

Leila e Bruna, que começavam a se conhecer melhor agora, falavam sobre as dificuldades que eles teriam que enfrentar dali por diante:

– Se eles não conseguirem água agora – Leila perguntou –, por quanto tempo nós podemos nos sustentar com o que temos?

– Eu diria que poupando ao extremo, agüentaríamos quatro dias... Mas os nossos problemas só vão piorar com o passar do tempo... Sem o sol, em questão de meses virão doenças de pele, irritações, alergias, várias outras coisas. Nem que consigamos ficar longe dessas criaturas, não vamos conseguir nos manter por muito tempo nessa escuridão...

– Dou um ano de vida para a raça humana – Cléber sentenciou, ainda olhando para o céu, calando as duas mulheres.

– Por que diz isso?

– Vocês não entenderam ainda? Nem que eles consigam água, nem que eles nos tragam um caminhão-pipa, o que vai nos matar será a fome... Um ano sem sol, vocês já pararam para pensar que planta, que lavoura, vai sobreviver a isso? Em um ano ou até menos já não haverá vegetais frescos em lugar nenhum, e lá se vai pelos ares qualquer tipo de cadeia alimentar... Com sorte, nós iremos nos manter por mais algum tempo com os enlatados que conseguirmos, mas também não me parece algo que vai durar muito – suspirou, sem em nenhum momento olhar no rosto de nenhum deles, e depois concluiu: – Um ano e tudo já não passará de ruína...

Pôs os fones de ouvido e se desligou da conversa.

Com faróis desligados os dois veículos adentraram na cidade há menos de trinta quilômetros por hora, era necessário cautela já que o asfalto estava cheio de entulhos e restos de pneus em chamas, além dos carros que foram abandonados por seus donos.

A cidade não estava deserta como aparentava, era só Adonias espreitar os olhos em direção a alguma das casas e ele podia ver que havia pessoas escondidas lá dentro, a maioria com olhos nas janelas procurando ver quem eram os loucos que dirigiam carros a céu aberto sabendo que podiam assim atrair as criaturas outra vez.

– Essa arma aqui é a mais simples que nós temos – Ezequiel explicou, sem tirar os olhos da pista, enquanto Victor entregava a metralhadora nas mãos do rapaz. – Você a destrava ali – apontou. – Atira aqui, e recarrega assim... Mas você só vai atirar em último caso, entendeu? Para todos os efeitos, se algum daqueles monstros aparecer você corre ou pede ajuda para um de nós.

– Certo.

O trajeto que eles seguiam já fora planejado quando ainda estavam no refúgio: seguiriam pela rua principal da cidade-forte até a zona noroeste, onde fica o reservatório de água, um imenso tanque coberto que sustentava tanto as residências quanto as indústrias.

Tudo corria bem, nenhum monstro ou grupo de sobreviventes desesperado havia tentado parar os carros. Aquele caos que Adonias vira poucos minutos depois da experiência não existia mais, fora trocado por esse silêncio suspeito, de onde eles tinham a impressão de que a qualquer momento brotaria um perigo eminente. Logo a frente, o carro de Rubem parou. Os três homens do segundo veículo desceram e foram lá ver o que havia acontecido.

– O que vocês acham que é isso? – perguntou Rubem, embora soubesse que nenhum dos três ousaria pensar numa resposta.

Eles estavam com os pés na beirada de um enorme buraco. Do ângulo em que estavam eles não sabiam, mas visto de cima aquilo era ainda mais assustador: se estivessem a alguns metros de altura, veriam que o buraco era perfeitamente circular, com um diâmetro de exatos cinco metros. E no fundo dele, podia-se ver uma forte luz alaranjada, como fogo, como se aquilo ali levasse até o centro da terra - seria assim que as criaturas chegaram à Terra? Até onde aquele buraco levava?

Rubem viu um ponto negro na frente do rosto e o abanou com a mão pensando se tratar de uma mosca. Segundos depois vieram outros e mais outros pontos, e foi então que ele, assim como os demais, olhou para cima, onde pôde ver os muitos outros pontos escuros caindo lentamente...

Quando os flocos negros começaram a cair sobre o refúgio, ninguém conseguiu conter a alegria sentida. O sorriso de Osmar tremia, de tão incrédulo que ele estava. Leila abriu os braços para receber mais daquela chuva escura só para ter certeza de que estava realmente acontecendo.

Era quase inacreditável! Os cientistas haviam avisado que quando a experiência estivesse acabando os microorganismos iriam cair do céu em colônias do tamanho de pequenas gotas, e estava mesmo acontecendo! Aquilo só podia ser um sinal de que todo aquele pesadelo estava acabando!

Marcel sentiu as pequenas massas leves caindo sobre seu braço e cabelo. Era aquilo o que ele mais esperava, era a cena que ele mais queria ver desde que começou a pensar no projeto, ainda na faculdade... seu corpo todo parecia se energizar com aquilo!

– Está... – a palavra titubeou para fora da boca, e todos olharam espantados para ele, que finalmente saía da letargia. – acontecendo! A experiência está acabando!

Depois dos minutos de calada alegria, o grupo de homens armados decidiu que mesmo que a neve negra estivesse caindo, valia a pena continuar o trajeto até o reservatório. Se o céu voltasse a clarear, ainda assim demoraria algum tempo até que as coisas voltassem ao normal, e eles precisariam de água da mesma forma. Rodearam o estranho buraco para o qual não acharam explicação e seguiram pela mesma estrada.

Adonias sentia uma pequena dormência no braço devido ao peso da arma. Nos filmes elas parecem bem mais fáceis de manejar, pensou. Acabou alguns poucos passos para trás de Rubem e Ezequiel.

Victor então cambaleou e se apoiou no seu ombro.

– O que foi?

Ele iria chamar pelos dois homens que seguiam a frente, mas o senhor de idade estendeu a mão, pedindo para que não o fizesse.

– Eu prefiro não incomodá-los – abriu um breve sorriso amargo e acrescentou: – Quem diria que no fim das contas eu é que seria um fardo a essa expedição, e não você.

Pra que não ficassem muito para trás, Adonias continuou andando e arfando, devido o peso de Victor que ainda se segurava nele.

– Você tem alguma idéia do que está te fazendo mal?

Ele não chegou a responder. Vomitou um pouco mais. Caiu de joelhos e começou a tossir. Rubem olhou para trás e encontrou o garoto tentando ajudá-lo, apenas Ezequiel seguiu até lá.

– O que ele tem?

– Eu não sei. Ele não diz. Parece intoxicação ou qualquer merda do tipo.

Precisou que os dois mais jovens se abaixassem e pegassem cada um num ombro de Victor para que conseguissem levanta-lo outra vez, porém na metade desse processo ouviram o som de uma trava de arma sendo desativada vinda da direção de Rubem.

A bile na garganta de Adonias involuntariamente subiu e desceu. Quando finalmente teve coragem de olhar, encontrou para seu alivio a arma apontada em outra direção, bem distante deles.

Mas o alivio não durou muito. Rubem estava apontando para um caminho estreito e escuro entre dois apartamentos daquela rua, e de lá surgiam pares de olhos amarelos e conjuntos de dentes brancos, afiados.

Ezequiel soltou Victor e se levantou na mesma hora em que os viu, mirando a arma naquela direção também. Ele reconhecia aqueles olhos, nunca os esqueceria.

Pedaços das sombras se desprenderam dela. Eram lobos tão escuros quanto o céu, que se aproximavam, sorrateiros, espreitando o que seria a próxima refeição.

Adonias se levantou, e Victor não agüentou o peso do próprio corpo, caindo outra vez com o peito no chão. Queixo no asfalto, ele olhou novamente na direção dos animais sombrios, e viu a forma com que eles o encaravam de volta. Salivando.

– Ô, garoto – Ezequiel disse a Adonias. – Ajude Victor a se levantar, nós cobrimos vocês.

Adonias voltou a prostrar-se, tentando segurar de forma consistente os ombros de Victor para poder puxá-lo, eles estavam ao centro da linha de fogo, de um lado do asfalto Ezequiel e Rubem, do outro, os lobos famintos. Ninguém fazia movimentos bruscos, esperando o adversário dar o primeiro passo, como num duelo de faroeste. E quando um dos lobos por fim avançou, o disparo se ouviu e a bala pareceu ter cortado o ar muito próximo da orelha de Adonias, que quase sentiu o vento sendo rasgado. Sorte sua Rubem ser um bom atirador e ter conseguido alojar a bala no dorso do lobo que grunhiu e caiu ao chão, tentando levantar-se logo depois, mas incapaz, estrebuchou-se e morreu.

– Levanta! – Adonias gritou, impaciente, querendo sair logo dali.

Victor fez um som estranho com a garganta, numa espécie de tosse incompleta. E conseguiu ficar de joelhos. Mais lobos surgiam da mesma sombra enquanto aquele caído ao chão desfazia-se em bolhas pretas, como se estivesse derretendo.

E a chuva de tiros caiu, estraçalhando alguns deles. Ezequiel sentia uma especial satisfação ao atirar neles e ver suas cabeças se estourando, os lobos no estacionamento o fizeram voltar atrás quando devia ter ido buscar sua esposa. Ele queria culpar tudo e todos que pudessem ser culpados. Tanto os lobos, quanto as pequenas criaturas que encontrou em sua casa, a porta do estacionamento que custou abrir, o jipe que não ia mais rápido – e Leila. Um de seus disparos foi bem próximo dos dois amigos, causando uma faísca no asfalto perto deles, mas Ezequiel fez pouco do caso e continuou atirando, mesmo sabendo que ao seu lado Rubem olhava para ele.

Um lobo maior de tamanho e agilidade conseguiu desviar da bala que fora destinada a ele e saltou na direção de Adonias, alcançando-o com suas grandes patas nas costas e o derrubando outra vez ao chão, Adonias conseguiu se virar a tempo e segura-lo pelas orelhas para evitar que o bicho o mordesse, ainda assim as patas da fera lhe causavam arranhões por toda a pele do peito e a sua boca feroz estava a centímetros do rosto do garoto, que sentia o hálito de carne em decomposição.

Adonias gritou:

– Atira!

– Não tenho mira! – Rubem alertou, vendo o risco de atingir o garoto.

– Atira, porra!

Rubem ainda hesitou, e precisou que a bala viesse da arma de Ezequiel, e atingisse a parte de trás da nuca do animal, dilacerando-lhe o pescoço e espirrando sangue negro no rosto de Adonias.

Mesmo ferido, Adonias continuou tentando levantar o companheiro, o que não permitia que ele pegasse a arma posta de improviso no seu ombro.

– Me deixa aqui, cara. – Victor falou. – Vai embora, me deixa aqui.

– Levanta – insistia, negando-se a aceitar a saída proposta.

– Adonias, Adonias me escuta, me deixa aqui. Vocês tem que...

Tirando forças não sabia de onde, Adonias pegou-o pela parte da trás da gola do casaco e conseguiu num só solavanco ergue-lo quase que completamente.

– Ninguém vai ser deixado. Vê se fica em pé!

O filho de Osmar pode finalmente pegar a arma, e, protegendo Victor que caminhava lentamente na direção do carro, ele foi disparando nos lobos que se aproximavam, primeiro, sem muita técnica, não conseguia acertar em nenhum, mas logo os animais começaram a cair, um a um, e quando Victor entrou no jipe, Rubem gritou para que o garoto entrasse depressa e afundaram a sola do pé no acelerador, atropelando cadáveres que borbulhavam até se desmanchar no asfalto.

Adonias tirou a camisa para ver o estado dos arranhões. Profundos, espalhados por todas as direções, se eles não chegassem logo nos reservatórios de água, aquilo certamente iria infeccionar.

– Você sabe se falta muito para chegarmos? – ele perguntou a Victor, enquanto ao volante Ezequiel estava com os olhos fixos na pista.

Não obteve resposta, e quando olhou para o banco do carona, notou que os olhos de Victor estavam fechados.

FIM DO CAPÍTULO 5.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 23/04/2014
Reeditado em 23/04/2014
Código do texto: T4779599
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