NOTAS PÓSTUMAS DE ANA ARIEL

Alta madrugada na pequena cidade de São Roque da Serra. O silêncio é quebrado pelo pio de uma coruja, ao longe. No escritório do doutor Hiparco Refeira, o tique-taque insistente do grande relógio de parede contrapõe-se ao farfalhar aleatório do passar de páginas. Sentado à sua escrivaninha de trabalho, o leitor atento está há horas imerso no estudo de um alentado volume de capa preta. O livro repousa sobre a mesa e o homem o manuseia com o cuidado que merecem os objetos desgastados pelo tempo. Seu olhar percorre as páginas encardidas com a avidez de quem procura mais do que informação. Denota uma obsessão por saber o que deixou de ser escrito mas que está contido nas entrelinhas, do real significado das anotações da autora, que as escrevera há mais de cem anos.

A pequena lâmpada sobre a escrivaninha ilumina o livro num pequeno círculo de luz. Nada mais. Não revela sequer as feições do estudioso leitor. Apenas suas mãos magras aparecem quando passa uma página à frente ou quando volta algumas páginas atrás. O resto do escritório está escondido pelas sombras e não são visíveis o mobiliário clássico nem as paredes forradas de estantes repletas de livros sobre os mais variados assuntos. Tampouco deixa ver a enorme janela envidraçada, protegida por cortinas grossas e escuras.

A sobriedade do escritório expressa de forma absolutamente correta a personalidade do seu usuário. Eminente advogado e estudioso da história da cidade, dos costumes da região e da genealogia das famílias locais, já não mais se dedica às lides forenses. Escritor de vastos recursos, autor de diversos livros sobre assuntos variados, pertence a diversas associações culturais da localidade, da região e até da Capital do Estado. Seu maior orgulho é ser membro do Instituto Histórico e Geográfico do Sul de Minas, ao qual aplica muito de seu tempo, em estudos e pesquisas sobre a região.

Homem metódico, de horários e costumes rígidos, recolhe-se cedo ao leito e acorda aos primeiros albores da manhã, para sua caminhada diária. O inusitado de sua vigília sobre o volume só se explica pela verdadeira obsessão da qual se tornou refém, quebrando a rotina de seus dias e de suas noites. À sua frente está um dos oitos volumes, causadores dessa alteração total dos costumes diários do esforçado estudioso. Os livros constituem uma fantástica coleção de anotações, feitas há mais de um século, por uma mulher atormentada e perseguida. Foram encontrados na cripta do marco memorial do Jardim Novo.

A reforma do Jardim Novo, empreendida pelo dinâmico prefeito Abílio Maruvique, implicou na modificação total das aléias, na alteração dos canteiros e no corte de muitas palmeiras centenárias. Praticamente cada metro quadrado da enorme praça foi alterado. Não ficou intocado sequer o monumento em homenagem ao prefeito que, em 1895, havia transformado o antigo cemitério no amplo Jardim Novo. O simples monólito, uma agulha de mármore, dez metros de altura, enegrecido pela pátina do tempo, foi removido. Em seu lugar, outro monumento, modernoso, seria colocado.

Qual não foi a surpresa dos trabalhadores quando, ao cavoucarem a base do obelisco, encontraram uma cripta de pedra. Picaretas e marretas foram usadas para arrebentar a parte superior da resistente construção. No seu interior estavam diversas arcas e baús de metal. Ao serem abertos, revelaram uma grande quantidade de documentos, livros de capas escuras, escrituras e papéis diversos. Uma comissão de notáveis da cidade foi logo constituída para a guarda e o estudo de tão precioso achado. E o presidente da comissão foi eleito por consenso: o doutor Hiparco Refeira.

— Ninguém mais acertado para decifrar estes documentos. Com ele chefiando a comissão, tenho certeza de que irão recuperar e estudar estes documentos tão importantes para nossa cidade. — Com essas palavras solenes o prefeito entregou o achado ao eminente serrano.

Um dos baús logo chamou a atenção: uma caixa de metal, reforçada, com um fecho sem chave.

— Trata-se de um fecho secreto. É como um segredo de cofre. — A explicação foi dada pelo Dr. Refeira, adepto de leituras de histórias de mistério e com algumas tintas de criptologia. — Vejam esta cavilha de metal inserida na roseta central.

Movimentando a cavilha com cuidado, não demorou muito a encontrar o encaixe, e através de diversos outros movimentos da roseta, abriu, enfim, a arca misteriosa. O conteúdo era aparentemente simples: uma coleção de oito volumes encadernados, gastos pelo manuseio constante e semi-destruídos pelo tempo. As capas em couro não foram bastante fortes para proteger as folhas da umidade subterrânea.

— Vamos devagar. Todo cuidado é pouco. — As mãos magras retiraram solenemente os volumes. Um por um. Os livros superiores, aparentemente os mais antigos, estavam em precárias condições. As lombadas carcomidas, as páginas corroídas e amarelecidas e a escrita desbotando-se.

Após alguns meses de dedicação, o grande pesquisador pôde revelar o resultado de seu trabalho. Eram, na verdade, registros, anotações, poesias, escritos em delicada caligrafia feminina. A surpresa maior foi descobrir que a autora era Ana Ariel, uma misteriosa personagem cuja história confundia-se com a da própria cidade e já se tornara mitológica.

Os registros mais antigos não são datados com exatidão. As referências às perseguições aos judeus remetem o estudioso a séculos anteriores, em terras da Europa. Mais precisamente, à região da Península Ibérica, ao tempo da dominação moura de grande parte da Espanha. Reinos estavam se formando, impérios cresciam e dominações eram derrubadas. Tempos difíceis de lutas e perseguições.

A família de Isaac Ben-Ariel fora arrastada pelo vórtice da história. Ben-Ariel, o chefe da clã, tinha sido comerciante e proprietário de terras no sul da península, até que as forças catalãs, vindas do norte, açoitaram e expulsaram os mouros, devastando a terra, destruindo monumentos e grandes obras erguidas pelos seguidores de Alá. Num momento, a estabilidade e a tranqüilidade foram varridas da vida familiar do quieto judeu. A filha, a suave Débora, dedicada às puras práticas da Cabala e da Alquimia, foi acusada de bruxaria. Por questão de dias, conseguiram escapar das hordas ditas cristãs. Fugiram para o oeste, para terras ainda pouco habitadas conhecidas como Porto Cale.

Por muito tempo, a colônia de judeus prosperou nas terras portucalenses. A descendência de Ben-Ariel foi numerosa. As posses cresceram novamente. O conhecimento e a sabedoria de Débora passaram, através das gerações, de mãe para filha, crescendo cada vez mais. Mas a indelével marca da Estrela de Davi marcava o destino da família através dos séculos e eis de novo o pavor instalado no seio da comunidade judaica. As autoridades do Porto foram, num determinado momento, as mais rigorosas no combate à heresia. A Inquisição atingia por todos os lados, torturando, queimando, matando todos os que não comungavam a Verdade Cristã. Eis de novo a família Ben-Ariel em fuga. Protegidos sob o manto de novos-cristãos, abandonam as terras do Velho Mundo, em direção de uma terra legendária, recém-descoberta.

Da epopéia da família Ben-Ariel ficaram poucos registros, anotados cuidadosamente pela descendente Ana. A mudança de nome do clã fora necessária, abandonando-se definitivamente o apelido Ben, substituído por Bento, como, aliás, era prática na adoção da nova fé. Eis que, nos primórdios da colonização da terra dos Brasis, a família Bento Ariel aportou nas plagas inóspitas do lugar onde, tal como a Fênix, se ergueria sobre as próprias cinzas.

Os tempos corriam no ritmo lento das colônias. A vila cresceu, virou cidade. Salvador foi por muito tempo o pólo de desenvolvimento da colônia. Mudanças ocorreram. Um dos patriarcas da família Bento Ariel viajou para o sul, em direção de um fabuloso eldorado, onde ouro e pedras preciosas afloravam por toda a parte. No interior das Minas Gerais, Joaquim Bento Ariel estabeleceu-se como comerciante de metais e pedras, fornecedor de material aos garimpeiros e financiador de empreitadas afins. Chegou a ser, no seu tempo, uma das grandes fortunas da rica província mineral. O ramo feminino da família continuou mantendo, secretamente, a tradição da alquimia e da cabala. A discrição das mulheres permitiu que os mistérios e as iniciações fossem transmitidas secretamente, de geração em geração.

A família cresce, acompanhando de perto o desenvolvimento da colônia, que vira, de repente, vice-reinado. Poucas notas inseridas nos livros dão notícia da evolução história. As informações se limitam à família, que aumenta em tamanho e importância. Jeremias, neto de Joaquim, decide-se a estabelecer mais ao sul. Viaja para o litoral, chega a São Paulo, que já se constituía importante núcleo urbano. Jeremias e família são acolhidos pelos irmãos de fé. Logo a grande família está completamente integrada, freqüentando as reuniões na pequena sinagoga. .

As anotações se transformam em um quase diário de Ana Ariel. Ao abrir o sétimo volume da coleção, o estudioso doutor Hiparco percebe a mudança. Trata-se de uma jovem de treze anos, que, recebendo da mãe a tarefa de prosseguir nas notas, faz da incumbência um fiel relato de sua própria vida, incorporada integralmente aos usos e costumes judeus. Iniciada, como a mãe, a avó e todas as mulheres da linhagem, nos mistérios da Cabala, suas informações são as mais precisas, em toda a coleção de livros.

Há poucas referências ao desaparecimento da mãe de Ana. Algumas linhas conduzem à impressão de que foi um acontecimento trágico. Notas confusas a respeito de seu exercício de profetisa, uma denúncia de autoridades católicas, prisão e tortura. Ações ligadas às últimas manifestações da Inquisição. A biografia da progenitora de Ana termina abruptamente.

Ana é cuidadosa na sua narrativa. Cheia de detalhes. Escreve sobre ela própria, seus gostos, suas idéias, a maneira de ver o mundo. Inclui preciosas informações sobre os ritos da Cabala, que se tornaram uma prática profundamente arraigada nos costumes da família. Todas as mulheres da família são iniciadas e assumem o compromisso de levar à frente, sempre dentro da família, os conhecimentos esotéricos. Somente a mais velha em cada geração assume a liderança das práticas. Assim, Ana foi iniciada e, com a morte da mãe, tornou-se a sacerdotisa do ritual, praticado como uma verdadeira religião. Além dos rituais, as experiências alquimísticas ocupam grande parte de seu tempo – e das anotações do sétimo volume.

Passa, através de suas notas, a impressão de ser uma bela mulher, cotejada por muitos. Por estranho que possa parecer, apaixona-se por Leônidas Junqueira “bonito rapaz, filho de fazendeiro na região da Mogiana”. O amor é recíproco, e, contrariando toda a tradição familiar, casam-se. Vão residir na grande fazenda, cujas terras estendem-se por milhares de alqueires, cobertos de matas, que são derrubadas para o plantio de café. As plantações já cobrem colinas e vales, como um exército infindável perfilado, aparentemente imóvel, produzindo safras abundantes do grão que constitui riqueza tão grande quanto a produzida pelas minas de ouro ou de diamantes. O “ouro verde” exige o trabalho de quase três centenas de escravos, movimenta centenas de animais, máquinas de limpar café, enfim, um mundo novo está surgindo na província.

A anotadora descreve o desenvolvimento da região tão bem quanto sua própria vida. Sua compaixão para com os escravos, sua benevolência para com todos, fazem dela uma pessoa amada e respeitada. Tenta penetrar nos mistérios das práticas religiosas dos negros, ao mesmo tempo em que continua procedendo a seus rituais cabalísticos e experiências de alquimia.

— Ana, vosmecê não carece de estar entrando na senzala, conversar com os negros doentes. Deixa isso por conta deles mesmos, eles têm seus curadores. Não fica se misturando. — O marido, preocupado com as visitas diárias aos escravos, adverte a mulher.

Freqüenta, com o marido, a igreja da Vila de São Tomaz de Aquino. Num dos sermões, Padre Sebastião Nogueira faz invectivas que lhe dizem respeito, do alto do púlpito.

— Que todos tenham consciência de seu papel dentro da sociedade. A caridade tem de ser dosada para que esforços não sejam mal direcionados. Cada um de nós é responsável pelo próximo imediato. De nada adianta ir em socorro de pessoas que estão fora de nosso âmbito. Deixemos que cada qual procure o seu caminho. Os escravos têm seus métodos, amuletos, suas crenças. Devemos deixar que eles mesmos se tratem. São rebeldes que não aceitam a Palavra, e, portanto, não merecem a nossa compaixão.

Ana fingia que não era com ela. Mas sabia bem a direção de tais palavras. Contudo, não se abalava. Continuava praticando a caridade a seu modo.

— Paciência, Jerônimo! Os pretos são uns pobres coitados. Se existem alguns revoltados, é natural. Quem de nós não ficaria revoltado ao ser preso em sua própria vila, mandado como escravo a trabalhar em um lugar completamente diferente de tudo o que estava acostumado?

— Cuidado, Ana! Se continuar agindo assim, logo teremos aborrecimentos por aqui.

Mas os tempos mudaram. Com a Lei da Abolição, os escravos foram libertados e passaram a uma condição pior ainda (se é que algo pudesse ser pior do que a escravidão). Sem capacidade de decisão, sem qualquer orientação, se viram, da noite para o dia, livres, sim, entretanto, sem a menor condição de usufruírem a liberdade que lhes fora concedida. Miséria, fome, preconceito, foi o que lhes sobrou, além da liberdade.

Ana Ariel compreendeu tudo isso, desde o primeiro momento. Mulher inteligente, culta, percebeu logo a grande ilusão da libertação dos escravos. Agravada pela chegada de grande número de imigrantes – italianos, principalmente – que ocuparam o lugar dos pretos nas fazendas. Tentou ajudar os libertos, sem resultado. Não havia como organizá-los, eram iguais a crianças, refratários a qualquer ordem e a qualquer organização.

Por noites e noites a fio, entrando pelas madrugadas, o ilustre estudioso vai decifrando e completando a narrativa, onde o papel apodrecido ou a tinta desbotada parecem querer sonegar informações.

— Os volumes mais antigos estão mais bem conservados, embora tenham menos informações.O volume sete, por exemplo, que data de apenas um século, está muito estragado. Quase podre. — Dr. Rafeira relatava aos colegas a quanto andava o trabalho de leitura e interpretação dos textos.

— É evidente que o material usado não tem a mesma qualidade dos volumes anteriores. — Regina Lima, diretora da Biblioteca Municipal, afeita a lidar com livros caindo aos pedaços, era responsável pela reconstituição dos volumes, da recuperação das folhas ilegíveis, antes de serem manuseados pelos demais membros.

— Confiamos no conhecimento do dr. Rafeira para que as lacunas sejam interpretadas com rigor. — O diretor da Faculdade de Letras, Dr. Maciel, era admirador inconteste do doutor. Sabia que ele conhecia a fundo a história da cidade e da região, e que seu conhecimento estaria sendo de imensa ajuda na decifração das anotações de Ana Ariel e suas predecessoras.

Da leitura do oitavo volume, cujo início coincidia com a proclamação da república no país, o doutor Rafeira foi notando que as anotações tornavam-se mais espaçadas e sucintas. Parece que ela escrevia apressadamente, ou — talvez — às escondidas. Extensos períodos intercalavam as anotações. Lacunas de semanas e até meses. O extraordinário conhecimento do doutor ia preenchendo essas lacunas, a fim de estabelecer uma seqüência e dar coerência às parcas informações do último volume da coleção.

Ana Ariel tentou ajudar os negros libertos. Duas ou três vezes por semana visitava os seus casebres, construídos às margens dos caminhos e nas proximidades da vila de São Tomaz. Alguns fazendeiros permitiam que eles erguessem suas tabocas de bambu e sapé nas fazendas, longe das vistas, mas perto o bastante para terem mão-de-obra disponível a qualquer tempo. Ana se fazia acompanhar de três ex-escravas, que permaneciam a seu serviço. Carregavam cestas de mantimentos, roupas, poções medicinais feitas por ela, conhecedora das qualidades dos vegetais e dos minerais. Reunia as mulheres às quais passava algumas noções básicas de higiene, melhor alimentação. A algumas ensinou costurar. Às mães com filhos pequenos dava instruções de como cuidar melhor das crianças, dentro das precárias condições em que viviam.

Leônidas, o marido, que desaprovava sua filantropia para com os escravos, passou a abominar as idas e vindas aos barracos dos pretos.

— Melhor deixar essa escória de lado. Estão falando na vila que você participa das bruxarias dos pretos. — Aconselhava à mulher com poucas palavras, como era do seu estilo.

Ana não lhe deu ouvidos. Na vila, a boataria corria célere, sem que ela se desse conta da gravidade do assunto. Entretanto, a par dos boatos, providências são tomadas pelas autoridades. Numa certa tarde fria e mergulhada na cerração daquelas altitudes, o Major Leônidas recebe, sem aviso, em sua residência na vila, a visita do Monsenhor Nogueira, acompanhado de outro sacerdote.

— Major, apresento-lhe o Padre Aristodemus Helicantti. Queremos falar com Dona Ana, sua esposa.

— Prazer, Padre Aristodemus. — Leônidas não sabia se apertava ou beijava a mão do homem à sua frente, alto, magro, de feições tristes e olhar arguto. — Dona Ana não está. Saiu. Chegará a qualquer hora.

— Enquanto esperamos, conversemos a propósito de minha visita. — O padre não tem meias palavras, vai direto ao assunto. — Estou aqui para investigar as atividades de Dona Ana. Consta que ela está praticando bruxaria com negros. A Igreja não pode permitir que essa ralé, agora livre das senzalas, seja induzida às práticas que estão em desacordo com a doutrina e os dogmas da Santa Sé.

O major percebeu de imediato, as reais implicações das denúncias: seu prestígio político incomodava os adversários, que, usando desta acusação, desejavam destruí-lo.

— Não sei do que Vossa Reverência está falando. Dona Ana visita, sim, os negros nas suas bibocas, mas apenas para levar-lhes mantimentos, roupas e remédios. Nada de extraordinário nessa obra de caridade.

— As denúncias são graves e temos que apurá-las. Não podemos deixar nossa querida Dona Ana ser vítimas de calúnias. — A intervenção do Monsenhor é simpática à acusada ausente. O Major, entretanto, só vê animosidade por parte daquelas duas figuras que vêm ameaçar a santidade de seu lar e o seu poder político.

— Não há por que temer, se ela não tiver culpa. E nisso eu acredito. — Prossegue o Monsenhor.

A visita se delonga pela tarde, com os homens de preto procurando saber, através do marido, os mistérios e segredos das atividades da mulher. Por fim, se cansam de esperar e despedem-se. À saída, o ultimato é feito pelo padre investigador:

— Convocamos Dona Ana a comparecer hoje à noite na casa paroquial, para ouvir o que tem a declarar. Acompanhado do major, naturalmente.

A chegada de Ana Ariel, bem à tardinha, é aguardada com ansiedade pelo Major.

— Eu sabia que isso não ia acabar bem. — Ele repreende a esposa, sem, contudo, desaprová-la. — Está claro que querem me derrubar, através de você. Mas este prazer eles não terão. Já providenciei a sua saída da vila.

— Você está dizendo que devo fugir?

— Claro, mulher! Se você comparecer à sessão para a qual nos convocaram, vai sair da casa paroquial diretamente para a cadeia. Sei bem como são os métodos desses inquisidores tardios.

— Mas, e você? Como ficará?

— Nada têm contra mim, diretamente. É através de você que procuram me atingir. Mas a fuga já está preparada. Mandei Elesbão preparar a tropa e o carroção de viagem. Junta suas roupas, faz as malas, que ele já está esperando.

Ana sabia da gravidade da situação. Não era à-toa que Monsenhor Nogueira a advertira diversas vezes. É claro que ele está por trás disso tudo. Tenho certeza! —

Naquela noite, o Major compareceu sozinho à casa paroquial.

— Minha mulher chegou febril em casa, logo depois que Vossas Reverências saíram. Está com arrepios de frio. Foi atendida pelo doutor Alfredo, que lhe recomendou repouso absoluto. Pode ser coisa grave. Só amanhã é que poderei trazê-la à vossa presença.

Monsenhor Nogueira permaneceu impávido. O Major não percebeu, contudo, o brilho luciferino do olhar do Padre Aristodemus. Prolongou sua visita com conversa sobre assuntos diversos. Procurando ganhar tempo. Acompanhava os ponteiros do relógio da sala, imaginando o progresso da caravana dirigida por Elesbão, seu homem de confiança. Só deixou a companhia dos prelados bem tarde da noite. Acho que dei tempo bastante para colocar Ana bem longe desses urubus. — Pensou ao descer a escadaria da magnífica casa paroquial.

Saindo em direção à sua casa, o major quebrou a esquina e subiu a ladeira da fábrica de farinha. Chegando ao topo, notou um clarão que vinha da praça do Rosário, defronte à Igreja de São Tomaz.

— Diacho, que será aquilo lá?

Intrigado, desceu de novo a ladeira, agora na direção da praça. O clarão tornando-se cada vez mais intenso. Antes de chegar à praça, já pôde ver que se tratava de uma enorme fogueira ao lado do grande cruzeiro de pedra, cujos braços brilhavam como se estivessem também incandescentes. Num átimo, teve uma visão de cenas da inquisição: o fogo subindo em labaredas no céu negro, a cruz como sustentáculo de um condenado...ou condenada!

Dispara numa carreira louca. A cena amplia-se. Vê pessoas ao redor da fogueira, no centro da qual um poste sustenta um condenado às chamas. Ao se aproximar, vê com nitidez, à luz do fogaréu, que é uma mulher. Sua mulher!

— ANA ! ANA ! NÃÃÃÃÃO!!!

Os gritos ecoam na noite lúgubre. Correndo, tropeçando pelas pedras roliças do calçamento irregular, chega até o povo. Abalroa uns e outros. Sem parar, na sua desabalada carreira, constata que a esposa está amarrada ao poste. Não titubeia. Num salto, atinge o centro da fogueira, derrubando, na queda o pesado madeiro, já incendiado. Abraça a esposa, enquanto cai no meio do fogaréu. Ninguém se move, enquanto os dois corpos se fundem em um só, as chamas se alastrando, queimando, destruindo.

Por toda a praça, um forte cheiro de carne carbonizada dá testemunho do final da saga de Ana Ariel.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

Belo Horizonte, 27 de setembro de 2002. —

Conto # 179 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/04/2014
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