O baile dos enforcados

‘’Na negra forca o bom maneta,

Dançam, dançam os paladinos,

Os paladinos do capeta

Esqueletos dos saladinos.

-Arthur Rimbaud-

O reinado de Enzo IV estava deixando a desejar no décimo primeiro ano após o fatídico suicídio de seu herói e pai Estevão II. Uma doença pestilenta provocada por miasmas diabólicos havia contaminado a população e devastando cerca de 20% da mesma, deixando os sádicos clericais hilariantes quanto aos pecados intermitentes que se abatiam no povoado. A fome era recorrente nas pobres e desbotadas mesas camponesas, ao tempo em que os luxuosos salões régios bordados em ouro e tecidos orientais do castelo real davam o contraste necessário ao conto desse inquietante e misterioso episódio que está registrado nos livros de registros de anais imemoriais obscuros medievais, que estão provavelmente enclausurados em algum inferno sombrio das herméticas bibliotecas cristãs. Devo lembrar aos caros leitores que não se trata de uma fábula onírica, pois esse FATO é lembrado durante as noites infinitas por caminhantes e peregrinos que deliram a encolerizam-se contando-a em meio às fogueiras acesas na inquisição para purificar as blasfêmias telúricas humanas.

Devido ao descontentamento da nobreza para com as atitudes nada convenientes do rei – vide ausência de promoção de grandes banquetes, bailes e distribuição de títulos – o volúvel e pálido Enzo resolveu dar um grandioso baile para a comemoração do nascimento de Jesus Cristo, que coincidia com a autonegação da continuidade do reinado de seu pai, quando foi encontrado enforcado em um tecido com inscrições indecifráveis que remetem aos antigos hieróglifos egípcios. Esse enigmático tecido foi motivo de muitas insinuações místicas e de maldições na época, culminando com a morte devido à heresia de um velho eremita que contou ter sonhado com as profanas inscrições e ter tido a visão de que a linhagem da família real seria assombrada em todas as suas gerações por horripilantes assaltos de perversão mental e loucuras mortais invisíveis.

Para almejar seu objetivo de reconquista de valorização, marcou um baile a fantasia, o qual prometia ser a maior e mais luxuosa festa de demonstração do grandioso reinado que ele, Enzo, era possível administrar de forma magistral. Foram convidadas as grandes famílias de todos Impérios e Reinos aliados, desde os mais distantes até os mais próximos. Os nobres convidados instalaram-se com antecedência nas dependências da Corte de Enzo para a animador festejo. O luxo era notável , e no dia anterior à grande noite a criadagem já preparava os pratos, assados e a esplendorosa decoração do salão real de festas. Tudo estava pronto; as fantasias mais grotescas e extravagantes forjadas, as quais davam um ar de selvageria e instigava os instintos mais primitivos em pessoas pudicas, que viviam sob um moralismo rígido, a ética cristã e a hipocrisia da sociedade estamentaria. Chegada a gélida noite esperada, a lua cheia revelou-se fulgurante no céu que Deus diz ser dono, como que a chamar os lobos a uivarem em seu louvor. O banquete ocorreu de forma magnífica; enquanto que as bebidas inebriantes embalavam a turba dos fantasiados. A mais chamativa era a do Rei Enzo, que consistia em um traje de feições faraônicas e que remontou a eras esquecidas, dando-lhe um quê de ocasião especial.

Findando a meia-noite, o rei foi chamado para uma espécie de púlpito do salão por uma figura de estranhas feições, fantasiada com uma mortalha de cor escarlate, de estilo pagã, usando uma máscara cornífera, semelhante ao Deus Pã. A aura já prenunciava a tragédia dos momentos subsequentes. O personagem sacou uma adaga com feições demoníacas e a apontou para a veia jugular do rei, causando histeria e insanidade coletiva entre os convidados. Nisso, deu início à recitação do que parecia ser ritos macabros de sangue e morte em latim vernáculo, dando a entender por vezes termos como ‘’a redenção de um rei vem através da servidão tanto em vida como em morte’’ e ‘’abra-te céu’’. Quando recitou essa última frase, o teto escancarou-se deixando a mostra um grande espaço sobressalente, e dele desceu o número exato de cordas conforme os convidados. O ambiente respirava morte, falava morte, e era a morte. Ela era a senhora e dona do céu e do inferno. Em uma atitude de total desvario dos sentidos, todos os 466 convidados subiram em suas cadeiras e penduraram a corda com as mesmas inscrições contidas no tecido de Estevão 11 anos antes em seus respectivos pescoços e enforcaram-se, eclodindo em um rugido grupal uníssono de ‘’Salve o Rei!’’. Tendo por fim essa cena incompreensível para as mentes sãs, a adaga penetrou a garganta de Enzo tão profundamente quanto as raízes das árvores milenares que estão afundadas no solo. Seu sangue real e divino esguichou na cruz, que possuía um homem crucificado e enforcado em espinhos. Era seu pai, o grandioso rei eterno Estevão II.