Às sete horas e quinze minutos da manhã recebi um envelope, entregue pessoalmente pelo meu superior. Li o cabeçalho do mesmo e me surpreendi com a grandeza do caso. Olhei de volta para ele e balancei positivamente a cabeça, aceitando aquela tarefa tão especial, enquanto em resposta o mesmo pousou as mãos sobre meu ombro, e disse em tom firme e usual.

  - Não me decepcione garoto, faça como seu pai. – E então me deu as costas, deixando-me absorver o peso daquela responsabilidade.
 

Relatório do desaparecimento de Joyce Silveira:
 
 “Joyce Silveira, garota de 17 anos está desaparecida há treze dias. Pai relatou o desaparecimento pela madrugada da quarta feira de cinzas.

  No quarto da desaparecida foi encontrado apenas um pé direito de seu chinelo, sendo que havia muita terra solta sob o solado do calçado.

   Também foi relatado o desaparecimento de uma garrafa de vinho, o que leva a crer que ela poderia estar bêbada, ou com algum homem, ou parceiro (a). Ou, na pior das hipóteses um seqüestrador ou estuprador seria o responsável pelo sumiço.”
 

  Li aquele relatório sem pé nem cabeça, e muito menos com alguma ótica nítida o suficiente para que pudesse concluir algo, ou encontrar algum resquício sequer que me levasse a alguma pista concreta. E era por isso que eles precisavam de mim. Finalmente essa era minha deixa, e tinha certeza que seria capaz, e não precisava de ajuda alguma para solucionar aquele caso.
 
  Pouco conhecia dessa cidade quando cheguei ao local, que mais se assemelhava a um humilde vilarejo. Assustei-me com tamanha discrepância.

  Havia sido criado em uma cidade grande por toda minha vida, cercado pelo tráfego intenso e o cheiro forte da fumaça. Adorava o horário de pico, o reboliço, os jornais circulando de mão em mão. Eu amava as páginas policiais e os homicídios, e principalmente o som austero e a vida intensa que a cidade nos reservava. Porém, agora estava em um ambiente hostil, totalmente adverso ao que sempre estive habituado.

 
 Quando recebi as ordens para ir àquela tacanha cidade, enxerguei uma oportunidade única de receber minha tão sonhada promoção, e de enfim chegar a ser algo maior que um simples assistente, um soldadinho de chumbo (como todos me chamavam).
 
 Queria provar aquela corja inteira que poderia ser tão bom quanto meu pai (o melhor detetive que aquela unidade já havia conhecido). E isso o que me tornava? Nada mais, nada menos que o filho dele.
 
  A pacata cidade de São João do Paraíso havia virado notícia nos últimos dias. Foram dias turbulentos. São João do Paraíso era uma cidadezinha de cerca de seis mil habitantes, isolada de tudo e de todos. Era um ambiente rural, pacato e cercado pelo misticismo e suas lendas, estórias macabras e imbecis as quais qualquer criança tola e desprovida de uma educação no mínimo desejável recusaria em acreditar. Isso era no que acreditava.
 
 Nunca sequer havia ouvido falar o nome da tal cidade, seja em radio, televisão, jornal, na boca do povo ou em qualquer outro meio de comunicação, até que o misterioso desaparecimento de uma jovem de dezessete anos veio à tona.
 
 Cheguei à cidade quinze dias após o ocorrido. Dirigia meu Opala vermelho, quatro portas, de cambio colado ao volante, três marchas, banco inteiriço, quatro cilindros, cromagens de época e pneus convencionais com tarjas brancas. Aquele carro era a segunda mais bela herança que meu pai havia me deixado.

  Havia muito daquela cidade que me injuriava, e a poeira desagradável foi a primeira delas a me aborrecer. Parei o carro em frente à medíocre delegacia e me deparei com um senhor de bigode vasto, os quais mais pareciam ser bigodes postiços. Ele olhava para mim, e o engraçado é que ele possuía uma enorme barriga, que parecia apontar para minha pessoa.
 
  Desci do carro e caminhei até a figura que se intitulava o delegado da cidade. Ele mascava fumo trevo e sorria para mim com dentes castigadamente amarelados pela nicotina. A julgar aquela cidade de casas quase medievais, aquele homem me pareceu ser não mais que um exemplo, um modelo perfeito de cada morador daquele lugar que eu pré-julgara como uma cidadezinha insignificante.
 
  - Seja bem vindo! – Disse estendendo-me a mão, e então pareceu se engasgar com o fumo que ruminava. Abruptamente escarrou por sobre o chão e a gosma perdeu-se na poeira solta. E o imbecil ainda me olhou sorrindo. 
 
 Olhei para ele e ainda vi um pouco de sua baba presa ao seu lábio inferior. O homem recolheu a mão rapidamente e secou a boca com os punhos. Algo típico de um homem das cavernas.
 
 - O senhor quer ir para casa dos Silveira agora, ou prefere descansar? – Ele desconversou, enquanto eu ainda estava absorto em meus próprios pensamentos, tentando entender como poderia ainda haver uma cidade como aquela em pleno século XXI.
 
 - Sim, quero terminar isso o mais breve possível. – Eu o respondi apanhando minha maleta e observando meu terno visivelmente empoeirado. Retirei os óculos e senti minha visão embaçada, já que sem eles era literalmente um cego. Assoprei as lentes quadradas que tanto me auxiliavam em meu trabalho, e meu hálito quente embaçou-as. A poeira havia baixado. Limpei-os, e o segui. O delegado, que bisonhamente lembrava-me o personagem Sancho Pança de Don Quixote, entrou em sua viatura e eu ouvi o som oscilante do motor arranhar, como se a bateria do carro estivesse arreada. Na quarta tentativa, por fim, o veiculo saiu á minha frente, enquanto a maldita poeira seguia seu rastro.
 
  Era um velho Veraneio, o carro estava acabado. Se eu quisesse poderia tê-lo deixado ir à frente uns quatro á cinco quilômetros adiante de mim, e o seguiria pelo som dos estouros repentinos do motor, aquilo parecia ser um maldito carro de arena, daqueles que os palhaços usam. Aquela cidade, os moradores e os trapos que trajavam. Tudo aquilo era como um verdadeiro circo clandestino que acabara de acampar em minha vida.
 
  Chegando à casa dos pais da moça, fomos recebidos por um senhor magro, de aparência amigável, e sua esposa, uma mulher bonita a julgar pela idade, e pelas poucas rugas que eram vistas em seu rosto.
 
 - Tarde – O pai cumprimentou-me puxando o “r” com um sotaque regional, olhando-me curioso, e ao mesmo tempo deixando transparecer a felicidade com minha chegada.
 
 - Boa tarde, podemos entrar? – Perguntei antecipando-me ao delegado, que sorriu de boca fechada, sem graça e sentindo o gosto frio de sua autoridade sendo molestada.
 
 - Sim, entrem – A mulher respondeu com voz suave.
 
 Naquele momento entendi o porquê de sua filha ser tão linda como na foto. Entramos e nos sentamos. Depois de um curto papo, solicitei que pudesse ver o quarto da jovem. Prontamente eles me atenderam.
 
 Andamos pela casa, olhava para o telhado de telhas francesas, a madeira parecia ruir por sobre nossas cabeças enquanto podia ver que a serragem estava pelo chão. Teias de aranhas, mofo, uma casa grande, mas rústica. Os marcos, as portas de madeira, feitas com eucalipto cerrado e tratado, tudo muito modesto e ao mesmo tempo forte como se eles temessem algo, ou alguma criatura. Imaginei se não tinham medo da tal lenda do homem lobo, da lua cheia.
 
  Chegando ao quarto, pouco vi que me alarmasse. O cômodo era decorado sutilmente, como seria o de uma garota normal. Normal para aquela cidade, é claro. Entretanto as paredes tinham cores mórbidas, foscas. Abri o guarda roupas, olhei para o teto, vi o travesseiro rasgado, mas a cama estava arrumada. Tudo parecia estar perfeito.
 
 Andei de um lado para o outro, analisando cada detalhe daquele mausoléu, até que abaixei, sentindo o piso de madeira ranger. Colei meus ouvidos nele e olhei para debaixo da cama à procura de alguma pista. Apanhei o objeto que avistei. Era uma pena caída sob a cama. Uma pena de galo, colorida e comum.
 
 - O que é isso? – Perguntei como se não soubesse.
 
 - É uma pena de galinha, ora! – Respondeu o delegado subitamente, sem nem mesmo perceber a real intenção de minha pergunta.
 
 - Aqui no quarto? – Eu continuei e o pai dela olhou para mim estranhamente, apanhou o travesseiro e entregou-me. Tendo-o nas mãos pude sentir, ele era cheio de penas.
 
 - Ela estava namorando, tinha algum inimigo ou usava drogas? O que podem me falar de Joyce? – Perguntei, continuando a analisar e observar cada detalhe atenciosamente.
 
 - Não. Nossa Joyce era um anjo. Uma moça séria, e muito comportada, por sinal. – A mãe disse enquanto o pai havia se calado.
 
  Ouvi um estranho barulho e olhei na direção da janela. Eram gritos assustadores, berros que quebraram o silêncio de uma forma estranha. Olhei na direção da janela e pelo vidro transparente e quadriculado pude ver a imagem bizarra que me assustou.
 
 Era um rosto horripilante, um lobisomem, seu nariz enorme, e chapéu pontudo com uma maldita berruga no queixo. Tive um sobressalto enquanto ouvia risos chegando aos meus ouvidos. O rapaz tirou a mascara e lambeu o vidro da janela, sadicamente. 
 
  Seus olhos parados me assustaram, eram psicóticos, absurdamente compenetrados e arregalados. O rapaz sorriu e saiu correndo dali. Jovens...
 
 - Quem era? – Eu perguntei ainda sem entender o que se passava.
 
 - Aquele é o Roberto. O meio irmão de Joyce, de um casamento anterior, do Zé Fernando. Tem vinte anos. – Respondeu o delegado.
 
 - Hum, sei. – Eu disse o observando pela janela enquanto ele continuava correndo manco pelo quintal. Ele não era gordo, mas era forte, esbelto e parecia ter certa deficiência na perna esquerda. Arrastava a lateral do pé ao invés de andar normalmente. 
 
  Interroguei os pais de Joyce e depois dei algumas voltas ao redor da casa. Vi os animais, cavalos, porcos, patos, galinhas, vi até um coelho pulando não tão longe da casa, enquanto um gato de orelhas erguidas o observava, obviamente analisando se aquele corpo caberia em seu estômago. O gato logo desistiu e saiu correndo, brincando pelo terreiro, seguindo outra pena que voava sendo levada pelo vento. Acompanhando a pena dançando no ar, meus olhos vislumbraram um pouco além da parede exterior do quarto da garota.
 
  Havia uma janela de um metro e vinte por um metro, caminhei até lá contando os passos, parei à centímetros dela, enquanto o delegado me observava tentando entender o que eu ainda fazia ali. 
 
 - Eu já te disse rapaz, não há nada aqui. Já faz dias que ela sumiu. Com certeza deve ter fugido com um namorado. Garotas nessa idade fazem isso. Essa cidade é calma demais, não há assassinos ou estupradores por aqui. Conheço meu povo! – Ele disse ainda mascando e cuspindo aquele maldito fumo.
 
 Ignorei-o enquanto que meus dedos escorregavam pela parede áspera de cor neutra. Era de um esverdeado quase apagado, de uma tonalidade sem vida. Mas o que mais me intrigava eram as marcas de pés abaixo da janela. Olhei aquilo minuciosamente, enquanto o delegado se esgueirava ao meu lado, abaixado, de cócoras, com as mãos no chão.
 
 - Hum... Garoto maluco. Fica chutando a parede. Isso não é nada comparado com as crises que ele tem. Já o peguei destruindo minha viatura com uma picareta, ele é mesmo doido. Porém quanto toma seu remédio fica bem – O delegado contou, enquanto exalava aquele mau hálito incrivelmente insuportável que o tabaco o atribuía.
 
  Durante o restante do dia não fiz muitos progressos, nem durante a semana. Conheci um pouco dos habitantes que mesmo sendo de certa forma, arcaicos, acabavam por se mostrar pessoas de boa índole. Era até divertido ouvi-los falando de suas crendices, dos costumes, medos, e inclusive receber as receitas de simpatias. Eles pareciam ter solução para tudo, menos para aquele misterioso desaparecimento. Viviam com suas superstições estranhas, mas eram bem receptivos. 
 
 No primeiro domingo que se passou, Judith esposa do delegado havia preparado uma ceia à noite para me receber em sua casa. Relutante acabei indo até lá, já que por ali não havia muita coisa enlatada ou congelada que pudesse comprar, e eu era um péssimo cozinheiro, diga-se de passagem.
 
  Não consegui sequer encontrar uma pizzaria ou um local que se vendesse um hambúrguer decente. Não havia internet e o telefone celular pegava em poucos pontos da cidade, apenas nas proximidades da casa dos moradores com maior poder aquisitivo que optavam por comprar antenas receptoras de sinal de celular. Aquela cidadezinha parecia não existir. Eu parecia ter conhecido um novo e estranho mundo, como se tivesse viajado de alguma forma aos primórdios da criação.
 
  Sentei-me à mesa e comemos à vontade, eu, o delegado, a esposa dele “que devia ser cerca de quinze anos mais nova que ele” fato que me estranhou. Seus dois filhos também estavam lá, frutos de um casamento anterior. Sua primeira mulher já havia morrido.
 
 Estranhamente Judith me fitava com os olhos, volta e meia. Eu já estava confuso com aquilo. Podia ver que ela não usava sutiã, e a cada investida que fazia com o garfo e a faca talhando a enorme coxa de frango que comia, olhava ressabiado para os enormes e apetitosos seios que ela exibia, enquanto os mamilos rígidos apontavam em minha direção.
 
 - Está apreciando a ceia, detetive? – Perguntou o delegado enquanto segurava um enorme pé do galo que comia. Chupava os ossos, enquanto fazia movimentos horríveis com a boca. Suas mãos estavam repletas de gordura. Recolocou o que sobrou do pé novamente no prato e começou a lamber os dedos e chupá-los um à um. Aquilo me enojou.
 
 - Está realmente muito bom. – Respondi olhando na direção dos dois filhos que comiam calados, os dois rapazes não haviam se manifestado hora alguma durante a refeição. Sentaram como dois andróides e ali ficaram, estáticos.
 
 Ao terminar da refeição eles resolveram conversar, sugerindo uma fogueira. Tamanha foi minha estranheza ao ouvir aquilo e quando percebi, já havíamos juntado alguns galhos e acendido o fogo. Sentamo-nos à beira, enquanto a lua cheia se destacava em meio ao negrume daquele céu abandonado pelas estrelas. 
 
  Ficamos ali até duas da manhã, ouvindo estórias macabras, enquanto a fumaça subia anunciando a morte da madeira. Os dois rapazes brincavam que espíritos dançavam ao nosso redor, e eu desacostumado com tudo aquilo sorria entediado, disfarçando minha insatisfação. Contudo devo admitir que aquilo era melhor que nada, já que meu notebook de pouco adiantaria ali, pois estava afastado de tudo e de todos que conhecia.
 
 O que poderia fazer para lutar contra minha insônia a não ser ficar ouvindo as estórias daquele povo maluco? Mundo estranho, aquele. 
 
  Por fim me despedi deles, vi que era uma família comum e também notei que aquela mulher era uma verdadeira vadia. Sai andando rumo a pensão, onde havia alugado um quarto. 
 
  O sereno me tocava, enquanto o silencio da noite era quebrado pelo som das crianças brincando pela rua. Parecia estar em outra galáxia, e eles deveriam ser um bando de alienígenas. Na cidade, nem à tarde era possível se ver tantas crianças reunidas em um parque, já ali, aquele lugar parecia não dormir.
 
 Durante o percurso brinquei de contar os passos, e no 156º avistei a terceira fogueira, via as pessoas contando suas estórias assombradas. Lendas urbanas, e ouvi alguns nomes; a missa dos mortos, mulher da meia noite, entre outras que não deu para ouvir tão bem. Lembrei-me das estórias de H. P. Lovecraft. Era tudo tão fantástico.
 
  Continuei a caminhar e vi um garoto e uma garota, estavam com uma garrafa em mãos num canto escuro. Era uma garrafa preta, supostamente com alguma bebida. 
 
 - Caramba, ele vai pirar na hora que souber que pegamos isso dele – O garoto disse enquanto eles olhavam para a garrafa, pareciam estar em transe. Na certa estavam bêbados. Continuei andando e então cheguei á casa, e depois de quarenta minutos de intensa batalha com minha insônia consegui dormir.
 
  Acordei na manhã seguinte, e fui andar pela cidade, sob aquele sol escaldante. Caminhei já familiarizado com aquele povo. Era uma gente simples, sem muitos recursos, mas não pareciam precisar de muito.

 Andava pela cidade fazendo perguntas, procurei os Silveira mais algumas vezes, sempre atento ao irmão de Joyce, que me parecia um tanto suspeito ao mesmo tempo em que era só um garoto com problemas. O tempo ia passando e eu não conseguia progressos. Todos já me olhavam desconfiados e certos de que a garota estava morta.
 
  Fui até a escola de Joyce e conversei com alguns professores, colegas de classe, o diretor, a faxineira... E no entanto ninguém tinha queixas dela, tampouco sabiam de algum suposto envolvimento com drogas ou garotos, era apenas uma garota tímida e estudiosa que faria de tudo para agradar seus pais.
 
  Não havia suspeitos, não até ali, nem provas ou pistas suficientes que me levassem até alguém. Roberto estava cada vez mais sentindo a falta dela, e isso fazia com que ele ficasse ainda mais agitado. Sua mãe e seu pai estavam realmente preocupados com a situação e era visível o abatimento de ambos.
 
  O tempo foi passando e na tarde de meu vigésimo dia resolvi visitá-los novamente. Roberto estava à porta, sentado, brincando de escrever algo no chão, rabiscando sobre a terra com um pedaço de galho fino e seco. Arrastava o pé, como sempre.

 
 Aproximei-me dele, que mal percebeu minha presença, e então vi o desenho macabro que ele havia feito no chão. Era uma garotinha, que eu supus ser Joyce, e ao lado dela uma, espécie de demônio, de orelhas pontiagudas, e olhos raivosos. Estava montado em um boi com enormes chifres. Gelei ao ver aquilo sair da imaginação daquele jovem rapaz que assim que me viu, riu ingenuamente.
 
 - Amuleto! Sorte! Maldição! – Ele disse olhando-me nos olhos com a voz arrastada e grossa, enquanto a baba escorria no canto da boca. Olhei para ele, estranhamente pude sentir a inocência daquele rapaz, os olhos confusos e em contrapartida tão certos do que tentava afirmar com aquele desenho. “Mas o que era aquilo, afinal?” Pensei naquele momento
 
 - Pra dentro, Beto! – Disse o pai quando me viu. O garoto obedeceu e o homem veio até mim.
 
 - Tarde – Ele cumprimentou com seu sotaque e a mesma voz humilde que me recebera quando estive lá pela primeira vez – Novidades, moço? – Me perguntou.
 
 - Nada, ainda. – Respondi com a voz entalada, imerso em minha própria decepção.
 
 - Ela não vai voltar. Acho que perdi minha filha – uma leve pausa e um suspiro – e não quero nem pensar em como aconteceu. Mas é que minha mente não para de matutar nisso – Ele me disse, enquanto as lágrimas se perdiam de seus olhos.
 
  Não sabia o que fazer. Aquela gente... Aquele povo... Eles tinham algo mais que os da cidade. Eram astutos e vulgares, simples e pretensiosos, eram comuns e tão incomuns. Afinal, não eram tão medíocres como eu havia pensado.
 
 - Tente-se lembrar de algo, senhor. Não se recorda de nada. Te peço mais uma vez que tente lembrar-se de qualquer coisa – Pedi, já sem esperança que qualquer coisa que ele dissesse me ajudaria com o caso.
 
 - Ela não devia ter saído sozinha, eu queria ter levado ela pro médico olhar, mas ela não queria. Estava ardendo em febre quando minha esposa a viu no quarto. Suava e tremia, mas quando dissemos que íamos levá-la pro médico, ela suplicou que não fizéssemos isso. Disse que não queria ir à aula durante toda quaresma e que ficaria lá, e que ficaria bem – Ele não havia contado aquilo, e não havia isso em relatório algum. Continuei a ouvi-lo, atentamente – Mas eu disse que ia levá-la, e pronto! – Saí do quarto furioso e fui trocar-me rapidamente para pegá-la, enquanto minha esposa preparava as compressas, mas quando chegamos lá nos deparamos com a janela aberta e ela não estava mais lá. Procurei a noite inteirinha, mas não encontrei minha filha. Eu a quero de volta, senhor! Ajude-me, por favor – Ele suplicava num estado deplorável. Desde o ocorrido o homem já devia ter perdido cerca de sete quilos, segundo relatos do delegado. Mas era nítido, estava acabado, os ossos há qualquer momento poderiam rasgar a pele dele, pareciam querer saltar para fora de sua carne.

- O que quer dizer esse desenho? – Eu perguntei para ele que mal havia o visto. O Homem arregalou seus olhos e então se benzeu. Olhei-o assustado, mas não tanto quanto ele, que deu dois passos para trás chamando a esposa.
 
 - O que foi Zé? – Ela perguntou, ainda enxugando as mãos repletas de sabão no pano do vestido florido e velho que trajava. Ele apontou para o desenho e mulher parou num sobressalto. – Virgem Maria Santíssima! – Ela disse levando a mão à boca.
 
 - Afinal o que é isso que o Roberto desenhou? – Perguntei confuso enquanto ambos estavam surpresos com o desenho.
 
 - É o diabo! – A mãe disse de olhos arregalados. 
 
 - E por que ele desenhou isso? – Perguntei tentando obter alguma informação relevante, já que aquela situação intrigante não me esclarecia nada.
 
 - Saia daqui! – A mulher disse, entrando para casa assustada. Pobre Joyce, minha filha fez um pacto com o diabo! Não pode ser! – A mãe continuava gritando e orando ao mesmo tempo em que chorava e se benzia assustada.
 
 - Senhor José, preciso que me explique – Pedia quando o homem me olhou rispidamente. 
 
 - Pra fora da minha casa, senhor. Fora do meu terreno. Não precisamos mais de você. Minha filha está morta! – Ele disse enxugando as lágrimas e batendo a porta de madeira na minha cara. Olhei ao meu redor, estava tudo ainda mais confuso. O desenho ainda estava ali, voltei os olhos para aquilo, peguei meu celular que ali não serviria para quase nada e tirei uma foto. Entrei em meu carro e saí, enquanto a poeira me seguia por onde passava. 
 
  No caminho prestava atenção nas propriedades, na enorme quantidade e qualidade de gado que havia na região, olhava as cercas velhas e a vegetação típica da do cerrado, o mato rasteiro, as cercas antigas, os Anus que voavam por ali e os trilhos que se estendiam pela mata. A casa ficava perto de uma encruzilhada, à trezentos metros dela.
 
 Parei e com as mãos ao volante apoiei minha cabeça em minhas mãos, o queixo escorado ao arco do volante. Lembrei-me de meu pai, e tive a certeza que se fosse ele já teria encontrado Joyce, ou ao menos o corpo dela, ou na pior das alternativas já haveria desvendado aquele mistério.
 
  Com minha face esquerda colada ao volante, senti um estranho calafrio e então olhei para uma moita próxima à cerca. Recordei-me então da foto de Joyce, a mesma que estava espalhada pelas cidades vizinhas e que também estava no relatório que recebi de meu superior e lembrei-me da roupa que ela usava.
 
 Era uma jaqueta irreconhecível, rosa, e de capuz. Desci do carro deixando-o bem no meio da encruzilhada, andei ressabiado olhando para aquilo. Era a jaqueta embolada, estava escondida no meio do mato. Peguei uma luva e a coloquei em um saco. Olhei ao redor. No chão havia um maldito formigueiro, e um pé de havaianas aterrado nele. Peguei um galho e o tirei de lá, o chinelo feminino já estava castigado pelo sol e perdera quase toda a cor. Juntei as provas me lembrando do relatório que dizia que a menina havia deixado apenas um chinelo para trás. Corri para o carro e rumei para casa do delegado.
 
  O sol escaldante ainda me perturbava. Sentia uma estranha sensação de desconforto. A camisa social me abafando enquanto o suor escorria por minhas costas, criando caminhos molhados por onde passava. Cheguei até a casa do delegado, e buzinei.
 
 A porta se abriu e Judith estava lá com uma roupa maravilhosa, linda. Era um atrativo para os olhos. A mulher me lançou um sorriso sedutor e então entrou deixando a porta aberta. Olhei para os lados, não havia ninguém na rua, onde estariam todos afinal? Desci e entrei portão adentro, atravessando uma das poucas casas que possuíam muro naquela cidade, já que a maioria era cercada com arame farpado, tela ou madeira.
 
 - Eu preciso falar com o seu marido, Jud... – Eu ia dizendo enquanto colocava os pés para dentro da casa, mas ela me recebeu com um maldito beijo, puxando-me pelo colarinho, e fechando a porta, numa trama incrivelmente sexy.
 
 Anestesiado com aquele misto de selvageria e sensualidade, me vi envolto num clímax tenso, mas, sobretudo, instigante. Beijei-a cheio de desejo e senti os mamilos delas contra meu peito, enquanto que aquelas mãos depravadas e macias percorriam meu corpo, ouriçando cada fio de cabelo ou pêlo que eu pudesse possuir. A boca macia abandonou a minha, e os lábios carnudos e ousados se arrastaram por minha pele, descendo desinibida, entre mordidas e um carinho promiscuo. Sua língua encontrava meu corpo num desejo avassalador. Queria pedir que ela parasse, queria... Entretanto estava entorpecido pelo êxtase que me possuía naquele momento. 
 
 Num sopro de lucidez tive certeza que deveria deixá-la ali, e sair correndo para fora daquela casa, mas bons ventos passam rápido demais. Em meio ao frenesi que me encontrava puxei-a ainda mais forte contra mim, naquilo a surpreendi, e ao invés de assustá-la, provoquei-lhe um sorriso matreiro, sedutor e devasso. Despimo-nos como se o mundo estivesse acabando num calor infernal, mas a verdade é que nossos corpos ardiam. Vislumbrei cada curva e senti o perfume de sua pele, um bálsamo fascinante, que me atraía, me excitava e tornava-me escravo de meus instintos mais insanos. Ali, entorpecido, penetrei com todo meu furor no desejo molhado que tanto pedia por mim.
 
 Entre sussurros e gemidos um libido irrefreável nos dominava, nos instigava a continuar ainda mais. Era a sensação do proibido, a probabilidade de que um de seus enteados ou o próprio delegado abrisse de repente a porta e nos encontrasse embriagados um do outro. Era um querer incontrolável, um momento digno de eternidade. Sugávamos as forças um do outro, sentíamos o hálito quente que escapava pela respiração ofegante, o cheiro de sexo que vinha com o suor que banhava e untava nossos corpos. Ficamos ali por não mais que quarenta minutos, mas aquilo poderia ter durado uma vida inteira.
 
  Despedi-me ainda sentindo o gosto de uma boa transa e nada mais, nem um beijo de despedida, ou um fique para tomar um café, muito menos um “jante comigo”. Era apenas o saciar de dois corpos famintos. Foi tão somente o sexo sem compromisso. Entrei no carro, e quando me preparei para sair vi o Veraneio chegando. Era o delegado. 
 
 - Detetive? – Ele se surpreendeu após descer do carro olhando-me diretamente nos olhos. Eu o olhei ainda sem graça, retirei a chave de ignição e dei um leve sorriso.
 
 - Estou te procurando à cerca de uma hora, delegado. Tenho que te perguntar algo. Que bom que te encontrei aqui – Disse em tom de satisfação.
 
 - Acabou de chegar? – Indagou.
 
 - Sim – Respondi.
 
 - Bem, do que se trata detetive? – Ele me perguntou aparentemente interessado. Peguei meu celular, procurei a foto que havia tirado do desenho feito por Roberto e mostrei-lhe.
 
 - Então é isso? – Ele me perguntou enquanto que seu semblante havia ficado estranho.
 
 - O que é esse desenho? – Indaguei.
 
 - Roberto tem problemas, detetive. É um garoto especial, como você bem sabe – Ele me disse pausadamente – mas nem sempre foi assim – E então o delegado contou toda a estória que irei lhes contar com minhas palavras:
  Havia chovido certa manhã, uma chuva melancólica, como se lágrimas surgissem ao nascer do sol. Poças de água se formaram pela estrada velha que dava a antiga fazenda onde eles moravam. Ele foi vitima de um estouro de bois, tudo, para salvar sua irmã que estava bem lá no meio da estrada. Eles adoravam ficar ali, em uma casinha na árvore no meio da mata, Roberto mesmo a havia construído. Estavam voltando para casa quando de repente ele ouviu um barulho, olhou para trás e sentiu que a terra estava desmoronando. Logo que percebeu o perigo, gritou:
 
 - Corre Joyce, corre!! – Trinta bois vinham de encontro à ele e sua irmã. Ela tentou correr e caiu no chão. Os pés dela afundaram em uma poça d’água e ele correu para salvá-la. Jogou-se sobre ela e a protegeu com o próprio corpo. Os bois passaram sobre ele, o pisotearam, enquanto a dor chegou nociva e ininterrupta, descomunal. Ele gritou, enquanto a irmã havia desmaiado, pois havia perdido o ar sendo abafada por ele. Roberto e Joyce foram encontrados horas depois pela mãe, que se ajoelhou perante eles, e chamou José. Ele não parou de andar por um milagre, mas a cabeça nunca mais seria a mesma, seqüelas irreversíveis. A fala havia sido afetada, sua perna esquerda perdera a coordenação motora. Joyce ficou um dia de observação e nada mais, porém nunca se perdoou por isso.
 
 - Mas o que isso tem a ver com o desenho? – Perguntei assim que o delegado acabou de contar a estória. Estava confuso e chocado, pois até aquele momento pensei que Roberto tinha nascido com aquelas deficiências. 
 
 - Não sei te falar muito sobre essa lenda, mas procure um velho no final da rua. O nome dele é Baltazar. Ele pode te falar sobre esse desenho.
 
 - Afinal o que todos vocês tanto temem? – Perguntei curioso e exausto por toda a embromação.
 
 - O diabo, detetive, tememos o diabo – Respondeu, entrando em sua casa. 
 
  Virei o carro e segui até a casa que ele havia me informado. Bati na porta e ouvi uma voz rouca, fraca e seguida de uma tosse intensa. O homem raquítico, e sem dentes me atendeu. Percebi o cheiro da cachaça escapando por sua boca e senti náuseas ao perceber o mau hálito que degradava meu olfato.
 
 - O que deseja? – Ele me perguntou enquanto eu percebia que o homem era cego. 
 
 - Eu gostaria de falar com o senhor – naquele momento engasguei, pois ele não poderia ver aquele desenho. – é uma foto que tirei de um desenho que um garoto fez. O desenho de um demônio e uma garotinha – O homem gargalhou, e logo em seguida ficou mais sério.
 
 - Não olhe nos olhos dele meu rapaz, seus desejos o levarão para o inferno – Ele me disse enquanto eu olhava pela fresta, para o interior da casa. Havia uma mesa de madeira e só o que eu podia ver era uma garrafa preta sobre a mesa. Era a maldita garrafa de cachaça que ele tanto tomava. Olhei para ela e parecia poder reconhecê-la, mas não sabia de onde.
 
 - Olhar nos olhos dele? Dele quem? – Perguntei.
 
 - Os olhos são a janela da alma, e é isso que o diabo quer. Você não pode salvá-la mais – Disse enquanto a boca parecia se mover lenta e melancólica. Tinha os olhos completamente brancos e assombrados. Perguntei-me naquele momento, como os olhos dele haviam ficado assim. 
 
 - Não entendo senhor? Do que se trata tudo isso? Por que esse medo que todos vocês tem? É apenas uma lenda, como as que contam ao redor da fogueira? – Argumentei, certo de que estavam assombrados pelas fantasias, pelas estórias ridículas em que acreditavam.
 
 - Lenda? Ah rapaz, eu descobri muito tarde que o diabo não é uma lenda e que de boas intenções o inferno está cheio. Agora, saia logo daqui antes que as lendas deixem de ser apenas lendas para você – Eu escutei um barulho estranho, parecia uma risada assombrada, abafada, aprisionada naquela casa, uma risada quase imperceptível. Mas naquele momento pensei ter apenas imaginado coisas...
 
 O homem entrou e antes que fechasse a porta o ouvi dizer algo. 
 
 - Fique calmo! Ninguém vai te tirar de mim – E a porta se fechou Antes de entrar no carro vi o garoto e a garota que havia visto na noite que fizemos a fogueira, naquele dia eles estavam com uma garrafa preta em mãos. Uma garrafa como a que o homem cego tinha sobre a mesa. Os observei, e então:
 
 - Ei crianças! – Chamei-os. Eles pararam assustados. Sorri para eles e fiz gesto com os dedos, pedindo para que se aproximassem – Querem ganhar uns trocados? – Os dois entreolharam-se e sorriram. Balançaram positivamente a cabeça e a garota me perguntou.
 
 - O que você quer? – parecia desconfiada, seu olhar malicioso revelava que mesmo sendo uma garota, e tendo entre treze e quinze anos de idade parecia ser bem ousada e experiente.
 
 - Quero saber o que havia na garrafa que vocês seguravam dias atrás no beco? – Respondi, intrépido.
 
 - Não sei do que está falando, agora vamos sair daqui Luiza – Disse o menino que não tinha mais que quinze anos.
 
 - Pois bem, acho que o velho Baltazar gostará de saber que surrupiaram algo dele. – Respondi fazendo que fosse descer do carro e contar para o velho. Os dois pararam abruptamente e então pareciam mais assustados – naquele momento tive certeza que era a mesma garrafa.
 
 - Não faça isso! – O garoto disse e olhou ao seu redor investigando se havia mais alguém por ali.
 
 - Ele pode nos fazer desaparecer! – Luiza falou.
 
 - Desaparecer? Como assim? – Perguntei.
 
 - Como ele fez com a Joyce. Ela veio aqui certo dia, querendo saber sobre o diabo e então no outro dia, ela desapareceu. Ouvimos tudo pela janela. – O garoto relatou.
 
 - Por favor, se ele nos pegar vai nos matar. Ele é um bruxo! – Disse Luiza, enquanto eu tentava entender tudo aquilo. 
 
 - O que ela queria aqui? – Indaguei.
 
 - A gente não ouviu direito, mas ele disse que no primeiro dia da quaresma, tinha que ir para uma encruzilhada meia noite. – Contou, o menino.
 
 - Eu me lembro dele dizer que ela teria febre, muita febre, mas que não podia ir pra escola, tinha que ficar quieta – Disse, Luiza.
 
 - O que mais? Ouviram algo mais? – insisti. 
 
 - Disse que ele tinha um ovo, e que para ele dar a ela, teria que pagá-lo, e que o preço era muito alto para ela, entende? – Respondeu o garoto.
 
 - E então ela o tocou naquele lugar. Como o velho era nojento. Eles ficaram lá por um tempo, não fizeram nada mais que isso, até que ele entregou pra ela um ovo bem pequeno enrolado em um pano. Ela o agradeceu, e saiu sorrindo. Foi só isso – A garota contou.
 
 - E o que havia na garrafa? – Perguntei.
 
  - Demônios! O que estão fazendo aqui! – Gritou Baltazar da janela – Saiam de perto da minha casa, posso sentir o cheiro de vocês, nunca mais venham aqui. Sei o que fizeram, profanaram meu oratório, um grande mal cairá sobre vocês!! – Os garotos saíram correndo assustados me deixando ali sozinho. O velho sumiu assim que eles partiram, rindo desgraçadamente dos dois.
 
  Girei a ignição e absorto em meus pensamentos tentava encontrar uma resposta racional para aquilo tudo que eu havia escutado. Que cidade era aquela? O que eles escondiam de mim? O que afinal havia acontecido com a Joyce? 
 
  – Cidade, maluca! – Pensei. Girei a ignição e saí dali de volta para a pensão. Desci do carro, caminhei até a porta de meu quarto, abri e entrei. O cheiro do mofo me adentrava as narinas, quando de repente ouvi o barulho de algo cortando o vento, como asas batendo, mas milhares delas batendo em uníssono. Olhei para o alto e vi que o ventilador girava sob o teto, com certeza o havia esquecido ligado. Tirei minha camisa, joguei-a sobre o sofá e segui até a cozinha conjugada com a sala. Era um quarto pequeno, com uma cama de solteiro, uma pequena cozinha e uma minúscula copa, além de um banheiro.
 
  Abri a geladeira, peguei uma cerveja em lata que havia comprado, abri-a levando imediatamente até a boca e deixando que o líquido descesse deliciosamente álgido pela minha garganta. Sentia a tensão de meus músculos, o odor do cansaço, físico e mental. Estava entediado, e meus pensamentos embaralhados. Eu procurava unir as pistas. A marca de pés na janela, a blusa de Joyce, o rabisco no chão, o chinelo enterrado no formigueiro, a pena encontrada debaixo da cama, e a nova descoberta sobre a visita que Joyce fizera a casa do velho Baltazar. Seria possível que o que Joyce realmente havia feito um pacto com o diabo? As perguntas eram tantas, e as respostas pareciam surreais.
 
 Sentei-me no sofá e imerso em dilemas obscuros, comecei a pensar se realmente seria capaz de resolver aquele caso. E pior, seria esse desaparecimento fruto de alguma lenda maldita? Eu devia estar ficando louco, pois essa duvida estava plantada em minha mente. 
 
  Despi-me e caminhei nu pela casa, dei uma ultima golada no restante da cerveja e joguei a lata dentro da lixeira. Apanhei a toalha seca que estava dobrada sobre a taboa de passar, e entrei no banheiro. Posicionei-me sob o chuveiro e abri o registro d’água no máximo. A água fria tocou minha pele, evasiva, lavando minhas frustrações. Senti-me revigorado e lembranças libertinas visitavam minha imaginação, fantasias moldadas por desejos vespertinos que me incitavam. Parecia que aquela fascinante mulher havia lançado um maldito feitiço em mim. Senti meu corpo acender, e abruptamente ouvi o barulho oco das batidas a despertar-me daquele estimulante transe.
 
 - Senhor detetive, abra a porta. Rápido! – Soou a voz sussurrada enquanto as batidas continuavam intermitentes. Apenas com a toalha a cobrir-me, e as gotejas d’água ainda sobre meu corpo caminhei até a porta e recebi a inesperada visita que entrou como um raio vigiando atentamente se alguém o notara à minha porta.
 
 - Feche logo! – Ele disse correndo para as janelas e fechando as cortinas. Fechei a porta e ainda surpreso olhei-o atentamente. Era Joaquim, o filho mais velho do delegado. Ainda amedrontado ele me olhou com os dois olhos acesos, e então tirou um livro de receitas de dentro da blusa. 
 
 - O que é isso, garoto? – Perguntei ainda aturdido, sem entender o que ele temia e principalmente o que havia naquele livro de receitas. Era um livro fino quase no tamanho de uma agenda, mas na capa do livro estava escrito; “Receita de familiá”. Não acreditava que um idiota havia escrito família com acento no “a”. Coisa de cidade pequena – Pensei.
 
 - Por favor, ninguém sabia de nós dois. E eu, bem, depois do sumiço dela não tive coragem de dizer que éramos namorados. Era um segredo. E não pensava que ela teria coragem de fazer isso, mas o que você precisa saber está aqui. – Ele me dizia assustado, em seus olhos transparecia a paixão que sentia por Joyce a cada vez que ele falava sobre os dois. Ele me implorou que não revelasse para ninguém sobre eles. Pensei um pouco sobre aquilo, mas não prometi nada. – Ela estava obcecada, detetive. Se puder, salve-a, por favor! – Ele me pediu e então foi embora sem me revelar nada mais que aquilo.
 
  Após ouvir o ranger da porta, e ver que ela se fechara atrás dele, a ansiedade me tomou. Segurei o livro nas mãos e abri. Estava escrito a caneta e muito rasurado, a letra era quase ilegível, uma caligrafia terrível e repleta de erros clássicos na gramática, alguns estapafúrdios.
  Li cada letra, cada linha durante á noite, nunca quis tanto que minha insônia não acabasse. Li e reli, até que juntasse todos os fatos e percebesse do que realmente se tratava tudo aquilo, mas, contudo relutava em acreditar em tantas asneiras.
 
  Na manhã seguinte acordei com o livro aberto sobre o peito. Eu precisava achá-la, mas as pistas não me indicavam onde ela poderia estar. Por que ela estava fazendo isso afinal? 
 
 Levantei-me, fui ao banheiro e joguei água no rosto espantando a sonolência atrevida que me anestesiava. Calcei meus sapatos sociais e vesti-me, como de praxe. Apanhei a mais bela herança que meu pai havia me deixado, minha 357 Magnum e coloquei-a no coldre. Eu temia estar chegando perto demais, e pressentia que havia algo maior do que eu poderia imaginar nesse enigma.
 
  Ao abrir a porta me deparei com o carro do delegado, ele estava me esperando, mascando seu fumo e cuspindo-o pelo chão á frente do conjunto de quartos que formavam uma pensão. A dona do local de certo havia comprado vários lotes na mesma rua, as casas eram de laje maciça, uma construção grande, que se estendia, de cumprido ao longo da rua. Em sua maioria eram moradores mais antigos que as habitavam. A proprietária vivia daquele aluguel, mal a vi, mas do pouco que vi não tive saudade alguma. Era uma velha, gorda, que usava trajes coloridos, se portava como uma cigana ou algo do tipo.
 
 - Ei detetive, péssimas notícias. A cidade está um caos! Dois garotos foram encontrados mortos ontem à noite. Dois irmãos, um garoto e uma garota – Ele disse, desapontado. Provavelmente conhecia a família e os garotos. Afinal ali todos se conheciam, como em toda cidade pequena, se amavam e se detestavam.
 
 - Meu Deus! – O que aconteceu? – Perguntei triste, mas já pensava se aquilo teria alguma ligação com o desaparecimento de Joyce. 
 
 - Eram dois garotos, o menino se chamava Anderson e sua irmã Luiza – Assim que ele falou os nomes cai em mim. Lembrei-me dos dois saírem correndo pela rua, sendo amaldiçoados pelo velho cego, e tive a certeza que ele teria algo a ver com isso.
 
 - Eu vi esses garotos ontem. Não pode ser! – Comentei melancolicamente, enquanto meus olhos pareciam se tornar uma represa pronta para estourar. Relutante, me continha, já que odiava me entregar a esse tipo de emoção, afinal, era um profissional e isso não podia me abalar, não agora. 
 
 - É uma pena detetive, mas é verdade. Os dois corriam desenfreados pela rua, e acredite, nunca houve tamanha fatalidade por aqui. – O homem mascou um pouco de fumo e então me olhou nos olhos. – Foi o pai de Joyce, ele vinha desembestado para avisar que tinha uma pista sobre sua filha. Dirigia a camionete em alta velocidade e então na curva antes de entrar para a rua eles se chocaram. Foi terrível! José está péssimo, mas ele quer te ver. – Disse o delegado.
 
 - Onde ele está? – Perguntei empolgado com a notícia de uma nova pista, quase me esquecendo que duas crianças haviam morrido.
 
 - Ele está na cadeia. Está preso. Não pude fazer nada. – Disse o delegado, enquanto recebi o som de sua voz chegando pesarosa aos meus ouvidos. O segui e fomos para a delegacia.

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Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 15/05/2014
Reeditado em 23/05/2014
Código do texto: T4807808
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