Círculo de Sangue

Meu intento ao enviar-lhe esta carta é fazer saber ao senhor que meu dever foi cumprido. Devo dizer que nem mesmo eu acreditava poder arcar com a incumbência extraordinária que coube a mim. Devo agora informar-lhe do que se passou.

Cheguei a São Paulo, depois de ser informado a respeito das evidências. Instalei-me num local discreto, próximo aos locais onde os focos de ataque sucessivos estavam sendo registrados.

O primeiro dia foi dedicado a traçar uma estratégia de ação e examinar os indícios. Grosso modo, todas as evidências eram verdadeiras: as vítimas foram encontradas mortas, com ferimentos no pescoço, sempre perfurando a jugular (descritas pelos legistas como mordidas de cão, embora mais mortais). Os locais eram sempre escuros, becos desertos. Pelo mapa da cidade, os pontos ficavam próximos a lugares de grande movimento: o centro da cidade e – majoritariamente – bares e casas noturnas. Os intervalos entre os casos variavam de um a dois dias, no máximo.

Até aquele momento, tudo me levava a crer que havia realmente um vampiro rebelde vagando por entre a imensa cidade. Os corpos, encontrados a uma distância razoável do local de desaparecimento, as características dos ferimentos, etc. Tudo convergia para a constatação do fato.

Passei ao segundo passo: eliminar o vampiro que estava pondo em risco toda a Ordem. Esperei o cair da noite para investigar melhor os locais dos crimes, talvez houvesse mais pistas ocultas aos olhos humanos. A princípio, não havia nada de diferente, nada digno de maior atenção.

Mesmo assim, notei algo interessante ao observar mais profundamente os locais. Em todos eles havia um círculo, feito provavelmente com o sangue das próprias vítimas. Os sinais semelhantes aos dos antigos rituais medievais de evocação de força. Mas as características desses signos pareciam mais com uma espécie de assinatura do assassinato que, de fato, um ritual. Era algum desafio ao poder da Ordem.

Tudo foi bem mais rápido do que imaginei que seria, tenho que confessar. Em parte, tive sorte. Sabendo que havia um único lugar sem registro de ataques e seguindo uma forte intuição, fui até lá. Algo me dizia que as chances de encontrar o vampiro rebelde que desafiava a Ordem eram grandes.

Preparado para cumprir minha missão, saí para a noite. Meus trajes denunciavam que eu não era de lá, mas mesmo com o certo calor que fazia, era preciso esconder minhas armas. Andei pelas ruas e senti um pouco da liberdade da brisa fresca. Lamentei que as luzes da cidade ofuscassem a visão do céu e da lua.

Cheguei ao estabelecimento, semelhante a muitos outros que haviam naquela região, os jovens dançavam de um jeito estranho ao som de ma música repetitiva e entediante, muito alta. Era impossível ouvir qualquer coisa, ou mesmo conversar normalmente. Apesar de ter vivido tanto tempo, há coisas com as quais não consigo me acostumar. Há duzentos anos atrás era tudo tão diferente...

Ao passar pela porta, senti fortemente a presença de um outro vampiro ali. Redobrei minha atenção, indo em busca dele. Intui a iminência do ataque, era questão de tempo. Então aconteceu algo que baixou minha guarda por alguns segundos.

Lembranças, elas sempre surgem nos momentos mais inconvenientes. Era ela, e estava lá, vestida como as demais pessoas do lugar. Mas ainda eram os mesmos olhos castanhos que me fizeram amargar a dor de ter acabado com aquele amor pos todos esses longos anos. Não compreendo ainda por que instinto febril sorvi o sangue dela e quebrei a promessa que fiz a mim mesmo quando fui transformado num vampiro. Essa mesma dor, e a culpa, apunhalam minha consciência...

Voltei a mim, já não sentia mais a presença do meu alvo, com certeza ele havia fugido – com sua nova vítima. Agora era uma questão de honra: já que eu não poderia trazê-la de volta, não permitiria que mais uma vida fosse tirada desnecessariamente!

Saí, seguindo o rastro do rebelde pelas ruas. A cada quarteirão pelo qual eu passava, era menor o número de pessoas e as ruas iam ficando cada vez mais escuras. Era previsível o que viria depois, eu sabia perfeitamente o que deveria fazer.

Corri cada vez mais rápido e, ao virar uma rua, finalmente tive contato visual com eles. Dois vultos indo na direção de uma construção alta e inacabada, um prédio sem muita iluminação. Pude perceber claramente que um deles conduzia o outro à força, eu os sentia como se estivessem a meio metro de distância.

Quando entrei na constrição ouvi um grito, uma mulher pedindo socorro. Subi até o último patamar da construção rapidamente. Mas lá estava um homem, morto, no meio de um círculo de sangue. Por que então uma mulher gritou? Claro, ela queria que eu visse, estava me atraindo para lá, mas essa armadilha não iria dar certo, eu estava disposto a cumprir minha missão.

A rebelde ainda estava por perto. Resolvi fazer o jogo dela. Fui seguindo as pistas que deixava, sentindo sua presença, esperando o momento certo para eliminá-la. Lentamente, percorri a construção até o subsolo. Pelo visto, meu alvo estava querendo me levar a um lugar predeterminado... Atento ao menor ruído, caminhei cada vez mais devagar. Finalmente, senti que a rebelde se aproximava lentamente. Comecei a andar num lugar amplo, as luzes que o iluminavam eram poucas e tudo estava imerso em sombras.

O que significaria aquilo? De fato, não era apenas mais um vampiro rebelde disposto a revelar o segredo da Ordem. O silêncio me fez pressentir que algo o desfecho do caso estava próximo. Poderia ser que...

Esquivei-me rapidamente de um ataque pelas costas. Saltei uns dois metros à frente de onde estava e olhei para trás. Ela estava parada, em guarda. Notei que havia no chão um grande círculo de sangue, e eu estivera no centro dele há dois segundos atrás.

Não era, porém, uma desconhecida. Meus fantasmas estavam armando uma conspiração contra mim ressuscitado Emma. Como isso era possível?

- Olá, meu caro... – Disse ironicamente uma voz dolorosamente conhecida.

Respondi, escondendo minha surpresa ao vê-la novamente depois de tanto tempo. A vampira de olhos castanhos, parada indolentemente, em pé, segurando uma afiada espada numa das mãos. A outra, apoiada na cintura. O vento que soprava pelas portas, janelas e buracos da parede jogava seus cabelos castanhos e cumpridos por sobre o rosto, branco como mármore.

- Que frieza, Goran! Depois de tanto tempo, quase um século, é assim que você me recebe? – E fez um movimento, arrastando a ponta da lâmina pelo chão de concreto, contornando seu corpo, apoiando a espada a sua frente.

Sua voz, antes angelical, agora era fria e cortante. Falava com a mesma ironia do princípio. Dera alguns passos, mantendo distância. Suas roupas denunciavam que estava infiltrada entre os humanos para vitimá-los, e fazendo parte de um grupo rebelde. Enquanto andava, a fenda em sua saia evidenciava sua coxa torneada, calçava botas pretas de cano alto, estava mais alta devido ao salto. Ela movia a espada com leveza, e até certa graça.

- O que pretende com isso? – Perguntei a ela. – Por que esperou todo esse tempo para tentar me matar?

- Passei-o caçando você, planejando a noite na qual eu teria o prazer de matar aquele que um dia me matou! – Um riso gélido ecoou no vazio. Um brilho de raiva faiscava nos olhos dela.

Aquilo não poderia demorar mais. Mesmo sendo doloroso reencontrar tais recordações, eu tinha uma missão a cumprir. Se ela caçava humanos para rebeldes, era meu dever exterminá-la.

Esses pensamentos foram interrompidos pelo salto dela em minha direção, segurava firmemente a espada, com as duas mãos, visando atingir-me no coração. Dei um passo para trás e disparei um tiro contra a lâmina, atirando-a para longe de suas mãos. Ela caiu feito um gato, apoiada sobre a perna esquerda, que estava dobrada, a outra, estendida, estabilizando o equilíbrio. Com a mão livre, puxou também uma arma, ocultada pela saia, presa na coxa direita. Seus olhos, mais uma vez, brilhando de ódio.

Baixei minha arma e atirei-a ao chão, olhando firmemente dentro dos olhos de Emma. O desafio estava lançado. O nervosismo e a precipitação dela demonstraram o que sobrava de prepotência e faltava em experiência. Tirei o sobretudo, jogando-o a um canto e despojei-me das demais armas, conservando apenas dois punhais. Da mesma forma, ela se levantou, ainda apontando para o meu peito, mas soltou o pente do revólver e depois deixou-o cair no chão, ainda com o braço levantado e um ar de superioridade. Em seguida, alcançou sua espada e pôs-se em guarda. Agora sim seria uma luta justa.

Não descreverei a luta com detalhes, mas posso dizer que demorou mais do que imaginei. Pude constatar que foi feita uma lavagem cerebral, usando a raiva que ela tinha de mim, embora isso não mudasse o passado...

Eu a matei, atingindo seu coração quando ela saltava. Ainda no ar, escutei seu grito de dor e vi sua queda. Ferido, tendo me desfeito de outras armas para respeitar o Código, fiquei de mãos limpas ao largar a única arma usada na luta.

No chão, ela me deu seu último olhar, o mesmo de quando éramos humanos, mas além de amor, também havia dor...

Permaneci ainda muito tempo no meio do círculo, imóvel, no lugar onde ela morreu. Eu sentia ainda o corpo dela no meu, tomara-a nos braços, sentira seu último suspiro. Mas, antes que eu pudesse lhe dar um último beijo, o vento a levara de mim...

Acabou, minhas dívidas com o passado foram pagas com o perdão que Emma me deu naquele olhar. Por um breve momento, ela foi minha antiga amada. Aquela a qual não mereci. O anjo ao qual tirei a vida e mergulhei no inferno da minha condição.

Ana Pismel
Enviado por Ana Pismel em 10/05/2007
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