OXIDRAGA 2ª PARTE - segundo instante

Nenhuma surpresa no trajeto desde a saída de Damasco, aquela estrada antiga nos levaria até os parentes da minha esposa. Nossa esperança era encontrar respostas para o que estava acontecendo em nossa casa, no Brasil. Respostas que, certamente, seriam dadas pelos antigos. Cheguei a pensar que estava a salvo.

A sensação de bem estar durou pouco. Durou o tempo que demorei em reorganizar a sequência das fotografias. Aconteceu duas semanas depois que adotamos o menino, sobrinho órfão da minha esposa. No quarto dele, a parede estava coberta de fotografias. Não sei como ele as colou ali, naquela altura, mas estavam lá surpreendentes.

A primeira foto foi feita no dia em que descobri o caso da minha mulher com o juiz. Jantávamos na pizzaria do Portuga, fui ao banheiro e ouvi os comentários de dois rapazes que estagiam no fórum, onde ela trabalha. Experimentei a impotência, calado. Naquela mesma noite encontrei um velho conhecido que me abordou no posto de gasolina, estava eufórico e quando perguntei, por educação, como ia sua vida, ele me sorriu e mostrou, entre os dentes, alguma coisa embrulhada em plástico. Disse que tinha descoberto o amor da vida dele e me ofereceu uma dose de oxidraga.

Na segunda fotografia, colada na parede, meu semblante já era de um dependente daquela substância. Olhos arregalados, sorriso eufórico e face sem carne. Ser doutorando em química não garantiu que o baque fosse menos perceptível. O prazer intenso que experimentei dispensou a falta do sexo, não importava mais ser traído. Dediquei-me em transformar a pasta original da droga em uma casca cristalina sólida. Misturada ao tabaco virava fumaça, inalada tinha o poder de levar-me ao pico do Everest em segundos. A queda, na volta dessa viagem insólita, era prazer redobrado porque lentamente meu corpo se aproximava do chão. A fotografia não traduzia o prazer, mas sim a fuga. Nos olhos era nítido o pavor e o medo.

A terceira imagem na parede era do velório. Os corpos do escritor e de sua mulher assassinada por ele. Também o corpo da irmã da minha mulher. Todos estavam dispostos na mesma sala. Ninguém na cidade entendeu aquela barbaridade. Tive pena do menino órfão, com o trauma ele ficara mudo, não dizia uma palavra. Não pensei em recebê-lo em casa, foi minha esposa quem teve a iniciativa. Sei que fez isso por que se sentia culpada pela minha drogadição. Ela terminara o caso com o Juiz, se dedicou a cuidar da casa e da família. Fingia que eu não sabia de nada. Fingimos.

Na quarta fotografia, minha filha brincava com o agregado. Tínhamos passado o domingo no sítio, estão de mãos dadas ao lado da cisterna aberta. Meu Deus, nos olhos do menino pude ver o horror que foi evitado!

Na quinta fotografia, nossos parentes reunidos nas ruinas de Abla. Posavam para o retrato, guardiões protetores da cultura antiga. Sinalizavam da Síria que a origem do mal estava ali, entre as rochas, na areia, no fundo do poço sobre o qual estavam sentados.

A sequência das fotos parecia uma indicação, origem e fim. Uma mensagem cifrada que fizera meu sobrinho calar de medo. Naquela noite decidi a viagem. Acho que foi a inocência no olhar da minha filha, estampado na fotografia para o estranho agregado, que pesou na minha decisão de tomar as rédeas da situação. Fazer alguma coisa.

Lembro perfeitamente a angústia que senti naquele momento. Depois de decidir que iríamos todos para Tell Mardikh pude descansar alguns minutos para, em seguida, preparar mais uma dose, uma dose. Preciso de uma dose... Foi um milagre chegarmos em Tell Mardikh.

***

Tinha nos braços, protegida no colo, minha filha de oito anos. Podia sentir o calor do seu corpo aquecendo todos no carro. E pensei mesmo que, por ela, daria minha vida. Impressionante são as voltas que o orgulho dá em nosso caráter. Erva daninha, não se mostra enquanto sugere, na aparência, a beleza da paternidade e outras frivolidades. Nada disso suporta a esmagadora força que tem o medo. O medo nos revela por inteiro, o medo despe a alma até o ponto em que nossas carnes fremem despregando dos ossos, o sangue apenas marca na terra a passagem dos fracos. Cristão de merda, o que sou eu afinal?

Os dois homens, que eu supunha serem soldados, estavam sem o uniforme que vestiam. Um deles, reconheci sem espanto, era primo da minha esposa. Estávamos mergulhados no silêncio. Foi o menino que avistou a mulher. Ele, que não falava uma palavra há dois meses, disse com a voz mais doce que um anjo pode ter.

- Ela está bem ali.

Reparamos, então, na silhueta esguia da mulher branca mais atraente que vi. Mergulhada no breu, estava sentada numa pedra grande e lisa. Ergueu-se como guerreira, lentamente pronta. Nada em seu movimento pareceu-me estranho e, no entanto, era uma visão única. Seus cabelos lisos, ondulados na altura da cintura, cobriam um cinturão onde descansava a munição. Contrariando as leis do corão, as pernas compridas eram duas colunas fortemente protegidas dentro de uma calça de couro de cabra, calçava botas. Tudo por aqui é anterior ao advento do Cristo. A cada passo na nossa direção oferecia os quadris num balanço ofensivo e agradável. Tinha uma arma presa na cocha direita e segurava outra na mão esquerda. Minha esposa desceu da caminhonete. Fiquei atônito, paralisado.

As duas mulheres se abraçaram. Iluminadas pelos faróis demoraram dois séculos para se afastarem uma da outra. Quando finalmente voltaram do abraço suas bocas colaram uma na outra num beijo que desfez qualquer esperança que eu pudesse guardar.

A estranha era Samira Qasim Quasin. Habitante defensora das ruínas de Ebla, prima da minha mulher.

Houve um breve cumprimento de cabeça quando nos ajeitamos apertados. Minha esposa não disse nada. E um diálogo cacofônico parecido com Stravinsky soou, em meus ouvidos, surreal. O pequeno agregado, que estivera mudo desde a morte da mãe naquele incidente horrível, tagarelava numa língua que não nunca conhecera. Identifiquei algumas palavras ditas em eblaíto. Língua semita hoje extinta, usada quando Tell Mardikh ainda era conhecida como a grande cidade-estado Ebla. Eu supunha que ninguém mais falasse essa língua, não apreendi o significado de nada. Ele estava curado ou enlouquecera de vez?

Tudo parecia matéria de sonho, aparições solenes de espectros guerreiros. O que teria dito o fantasma do pai de Hamlet se tivesse boca, ao invés de pensar que tinha? Apareceu, instigou a vingança e fez do filho seu instrumento para entronizar a ordem desfeita pela traição do irmão. É nas horas mortas que antecede a aurora que o abismo se abre para as almas perdidas. O mesmo abismo é oferecido como oportunidade de ascensão para as almas que desejam a perdição. Nesse entreato as escolhas são urdidas como feitiços. Só podemos esperar a catástrofe, o sangue, o ódio e a desventura travestida de esperança. “Tudo em família”- teria dito o fantasma cínico, pai morto do príncipe da Dinamarca, numa língua que só os demônios compreendem.

***

As colinas de Ebla, que estão a 70 km ao sul de Alepo, abriram-se para nossa passagem. Logo avistamos o vale. Nele, Ebla ainda mergulhada nas trevas da noite, recebeu-nos como prostituta barata, em festa comedida. O sol nascente deve revelar os mistérios desse lugar, pensei sem ânimo.

TERCEIRO INSTANTE

(...)

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 29/06/2014
Reeditado em 02/07/2014
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