O monstro dentro do armário

Encolheu-se na cama a roer os dedos, com aqueles grandes olhos negros lacrimosos atentos ao perigo. Cobriu-se com um cobertor desbotado e respirou baixinho. Ele poderia vir. Mas se não estivesse dormindo, iria embora, com certeza. Queria acreditar que sim...

O bicho papão... o terror de todas as noites...

Ouviu a porta do armário se abrir e ranger agonizante, podia sentir o cheiro da madeira podre e o mofo pestilento em suas narinas. Rangeu os dentes, com os olhinhos fechados.

A espera. A espera.

Toda a noite ela dizia a mãe. ´´ toda a noite ele vem, rosna em meus ouvidos, deixando a saliva escorrer entre os dentes amarelados, entre as minhas costas... ``. Mas a mãe, revirava os olhos, e julgava-a tola demais. Afinal, quem iria crer em uma criança diminuta, que possui a imaginação fértil demais?

Ao ouvir os estalos de passos pesados, estremeceu. Mordeu os dedos com força, na tentativa de que a dor fizesse o medo ir embora. Mas lá estava ele, em estilhaços cortantes de pavor, explodindo em cada pequena fibra de seu corpo.

Isso a fez chorar baixinho...

A respiração do monstro parecia-lhe instável, furiosa, ainda podia ouvir o peito chiar e a língua agressora estalar como um chicote. Podia sentir os olhos devorando-a, descascando-a como uma cebola velha e murcha. O coração em pânico queria escalar o peito, arranhando a garganta em um grito de horror. Mas ela não podia gritar. Ele não deixaria.

Em um ato de violência abrupta, lhe arrancou as cobertas, deixando as perninhas finas muito brancas, retraídas, arrepiadas, trêmulas. Ela forçou-se a encará-lo, como atraída pelo olhar selvagem de um caçador. Aqueles olhos injetados de sangue, a face pálida e os lábios eram como vermes cintilantes.

Aquele sorriso...

Aquele odioso sorriso, gravado a fogo em suas pequenas memórias. E ninguém, mais uma vez, mais uma noite, iria acreditar em sonhos de anjo, imaginações, indagações e lembranças de uma criança.

-

Todas as noites Alice olhava para o armário, a esperando o girar da maçaneta e o ranger da madeira velha. Percorria os olhos nos diminutos detalhes da escuridão que abraçava o quarto como uma água enegrecida que recobre a luz. Sentia o medo crescer no ventre, e o azedume nos lábios toda vez que o sentia. Cresceu, tornando-se uma mulher de beleza simplória, seus olhos muito azuis viviam assustados. Os cabelos muito negros, foram cortados a altura dos ombros, muito magros que deixavam suas saliências ósseas marcarem a pele muito branca.

Ela observava o luar, não conseguiria dormir por mais uma noite, dentre tantas outras. Ela sabia que ele viria, que caçava-a percorrendo a escuridão da noite, e que ao fechar os olhos, ele estaria lá, respirando sob seus ouvidos e salivando em sua pele. Os remédios que lhe davam para dormir, eram regularmente regurgitados, pois ela poderia dormir somente a luz do dia, longe das sombras noturnas. ´´ você precisa dormir, olhe essas olheiras gigantescas`` dizia a si mesma. Aguardaria o sol nascer. O céu tornara-se púrpura lentamente, de um negro a um azul brilhante, o sol começou a despontar seus raios no horizonte, e assim ela agradecia a cada manhã em que ele nascia. E assim finalmente poderia dormir.

Mas os sonhos, eles também a perseguiam.

-

Ouvia-se os sons de passos, e uma figura esguia movia-se rapidamente por entre as sombras das árvores. Podia sentir o seu cheiro doce, e ouvir seu lamento ecoando por entre os espectros da noite. Ele a caçava. Esperava, como um lobo à espreita, atraiu sua caça até suas garras. Era assim que sempre agia, era o seu método. Ele as preenchia de medo, e depois quando o medo transbordava, as atacava, consumindo-as com seus mais terríveis desejos.

Sua caça avistou um único ponto de luz, um pequeno casebre oculto na floresta. Correu o máximo que seus pés permitiam, antes que o predador a alcança-se. Havia uma única fonte de luz, uma vela que tremulava junto a sua respiração. Os olhos dela eram como os de um cão assustado, com o branco reluzindo em meio a escuridão. Ouviu-se um estrondo, a porta rompeu-se escancarando, e enchendo o ar de pequenos pontos de pó e madeira velha. E a sombra surgiu, as mãos em forma de garras, viu-se uma nuvem de vapor de rodopiava ao redor do corpo do homem, fornecendo um aspecto quase sobrenatural.

Ela pode sentir o cheiro de álcool vaporizando de suas narinas. Avançou com um animal sobre ela, puxando seus cabelos enquanto a pobre apenas gritava. Com os dedos nodosos percorreu o corpo a procura do laço que atava o vestido, puxando-os violentamente. Circulou os pequenos mamilos com os dedos ásperos e sujos, depois tomou um dos seios com as mãos, cravando as unhas na pele alva, o sangue escorreu. Levou os dedos sujos de terra e sangue a boca, salivou fascinado como rubro quente do sangue virginal. Sugou o líquido adocicado como uma criança que come o último pedaço de torta de cerejas. A menina tentou livrar-se do abraço mortal, mas ele era forte, com braços que mais lembravam pedaços de presunto. Ela sentiu algo crescer por entre suas pernas. Os olhos dela assustados como uma corça ao abate, encontraram os dele, muito dilatados e perdidos em algum lugar. Virou-a bruscamente, rasgando o restante de suas roupas, deixando-a completamente nua.

Ouviu o tilintar da fivela, e o som de tecido caindo aos pés.

Os gritos ainda mais cortantes, tornaram-se engasgados enquanto ele pressionava sua traqueia. Os olhos assustados agora rolavam nas órbitas, e os gritos tornaram-se sons gorgolejantes.

Súbito um som de tiro perpassou suas orelhas, deixando um rastro de fumaça e pólvora, ficou surdo e tonto por um momento, demorando para compreender o que havia acontecido. Um homem alto e corpulento segurava um rifle com o cano apontando direto para entre seus olhos.

- O próximo tiro eu não erro, prometo – disse-lhe com um olhar determinado, sentiu um gosto de bile na boca quando viu o predador com sangue nos lábios.

Estático diante da arma que ainda cheirava a pólvora, sentia o calor exalando de sua ponta entre seus olhos. Uma mulher surgiu por entre as sombras, com um cobertor para aquecer a menina nua que havia se esgueirado até a parede, soluçando e tremendo freneticamente.

- Ela foi uma garotinha levada, tinha de ser punida... – ouviu-se pela primeira vez aquela voz rouca e um sorriso louco rasgando a cara do homem, tornando-o ainda mais peculiar.

- Você é um monstro, merece morrer... – disse a mulher, jovem com os cabelos muito negros e compridos, com uma expressão indignada.

- Sua mãe não reclamou, aquela carola safada, quando a peguei no meio da cozinha, eu juro – viu os olhos dela brilharem de ódio, e gostou disso – você seria a próxima, sua bruxa vagabunda, e iria gostar... – o sorriso dele se estirou na boca como uma face grotesca, cacos de dentes podres pareciam pontas quebradiças de azulejos sujos, a língua viscosa riscou os lábios, deixando-os úmidos e ainda mais grotescos, como vermes pálidos que se movem desvairadamente.

Abruptamente ela tomou o rifle do homem, mirando em seus joelhos, um estalo seco preencheu o ar unindo o cheiro de sangue e pólvora. O corpo do grotesco homem desabou pesadamente, apoiando sobre o joelho bom, levantou os olhos para encará-la mais uma vez, desafiando como um demônio que custa a retornar para o inferno.

Ele sorriu.

E novamente mais uma pequena explosão, o cartucho caiu aos seus pés, o corpo desabou mais uma vez, o joelho bom agora era apenas uma massa disforme vermelha. Seu dedo apertou o gatilho mais duas vezes, agora nos braços, entre as juntas, ouviu-se o som de ossos partidos. O corpo desabou, deixando-o estirado no chão nadando no seu próprio sangue. A dor o fez rir, gargalhar até o ar lhe sair dos pulmões.

Mirou o último tiro, iria terminar com aquilo.

- Vamos acabe com isso, sua vagabunda! – a face horrenda sorria.

Os braços tremiam devido ao recuo do rifle, agradeceu ao falecido pai pelas aulas em latinhas de cerveja. O homem que a acompanhava apenas a observava com um olhar assustado, pensando de onde raios saiu aquela mulher. Logo, a bruxa pensou em como a morte poderia ser algo bom, mas seria incapaz de tirar a vida de alguém, afinal seria como ele, um assassino. Teria algo melhor em mente.

Iria enterrá-lo vivo, assim a própria terra haveria de findar com aquele monstruoso ser.

Olhou ao redor da casa, um armário muito velho jazia na lateral, intacto em relação as outras mobílias. Arrastou o homem para fora, puxando-o pelas pernas dolorosamente destroçadas, ignorando as ofensas e urros do monstro. Pediu ao seu companheiro que lhe trouxe-se o armário. Juntos rolaram o corpo para dentro do armário e com uma pá velha abriram a terra para recebê-lo. Depositaram na terra o conteúdo infame. Ele a olhou com puro terror, parecia que finalmente o monstro demonstrara medo.

- Eu não irei matar você, seu desgraçado, a própria morte virá buscá-lo no tempo certo. Eu amaldiçoo-o você a passar a eternidade em agonia, alimentando-se do mesmo medo que suas vítimas sentiram ao serem mortas por suas mãos.

- Eu irei voltar, irei pegar todos aqueles que você ama, irei beber o sangue de cada um deles... – ele sussurrou, suas palavras saíram como uma promessa futura.

- Eu não tenho medo de você! – mas suas palavras firmes escondiam um pequeno medo brotar nas entranhas, arder e contorcer-se com um prenuncio futuro, algo incompreensível.

As portas foram lacradas com pedras e madeiras, o buraco fora cavado profundamente, impossibilitando uma possível fuga, e assim a escuridão engoliu o homem, sentiu o cheiro de terra fresca em suas narinas, enquanto a pá cobria pontos de luz. Gritou, arfou, e em urros guturais amaldiçoou a bruxa. E assim antes do amanhecer, o monstro estaria morto.

-

Alice, Alice, não adianta fugir, você foi uma garotinha muito levada...

O som de sua voz parecia estar próximo de seus ouvidos, quando despertou, pensou ter sentido o cheiro de álcool, mas era apenas a enfermeira no leito ao lado a desinfetar utensílios da última paciente, que finalmente depois de seis meses, fora enviada para casa. Menina pálida e magricela, que riscava os punhos e braços com laminas cortantes, mutilando-se diariamente às escondidas.

Levantou-se ainda com o torpor dos medicamentos, eles a forçaram a dormir de novo, nada como uma intravenosa para evitar desperdício de remédios. Ela lutava debilmente contra a força de duas enfermeiras, mas sempre sucumbia a agulhada dolorosa, e no fim tinha a consciência arrastada para o reino dos sonhos.

Olhou através da janela e as grades que a protegiam, pacientes andavam pelo jardim apreciando o sol matinal. Homens e mulheres em rostos pálidos e cadavéricos, faces inexpressivas e doentias, buscando uma cura para livrar-se de seus próprios demônios. Alguém adentrou o quarto, batendo com as mãos na porta.

- Srta. Alice, precisamos conversar... – era a doutora encarregada de seu tratamento, uma senhora corpulenta de cabelos encaracolados, olhos tristes enfeitados com profundas olheiras.

Alice virou-se vagarosamente, sob o efeito de medicamentos o tempo e as ações lhe pareciam mais lentas.

- Tenho algo pouco agradável para lhe contar – pensou em como dizer de forma branda – sua mãe, faleceu ontem durante a madrugada, recebemos a notícia pela manhã, iremos acompanhar você ao enterro, é o mínimo que podemos fazer...

- É o mínimo que podem fazer, depois dos milhões que minha caridosa mãe investiu em minha recuperação... – observou a mulher torcer as mãos nervosamente.

- Irá voltar para casa Alice, talvez isso lhe faça bem – esfregou as mãos nervosas até ficarem avermelhadas, pois acabara de perder a mais rentável paciente da clínica Winchester.

- Casa... – ela repetiu a si mesma.

Vestiu-se como de costume, preto, afinal o luto era constante. Sua mãe jazia em um caixão ricamente trabalhado, com as mãos sobre o peito a segurar um pequeno terço feito de prata. Os olhos cansados mostravam os vincos profundos feitos na pele devido à idade, os cabelos antes muito escuros estavam desbotados como em uma foto envelhecida. Teve a impressão de que ela poderia abrir os olhos subitamente e tomar seus braços dizendo ´´ Pare de chorar, é apenas um sonho´´. Mas não era, parecia bem real, real demais, enterrou as unhas nos braços, sentindo a dor aguda irradiar em si, não era um sonho. Ela estava morta.

Observou o terço nas mãos com mais atenção, e lembrou-se como era religiosa, santos e anjos enfeitavam a casa, como vigias divinos a zelar nas sombras. Rezava por horas na capela que ficava no jardim do casarão, podia ouvir seus sussurros ecoando na noite. Evitando lugares escuros e sombrios, dormindo poucas horas e sempre durante o dia, agora fazia sentido, ela também estava fugindo, mas não admitia o seu próprio medo. ´´ quando você acredita, quando você teme, o medo vem``, assim dizia.

- Ela tinha um coração frágil – uma senhora aproximou-se, usava um chapéu negro com rendas que cobriam os olhos maquiados. Segurava um lenço branco para secar as lágrimas falsas – encontraram o corpo no seu antigo quarto de dormir, sentada na cadeira de balanço, disseram que o coração explodiu.

Qualquer ser que tivesse sensibilidade, diria apenas ´´meus sentimentos`` mas ela gostava dos detalhes mais mórbidos. Como a posição do corpo, ou como seus olhos pareciam estar olhando fixamente para o armário.

- Ah, isso é seu – entregou-lhe as chaves do casarão – meus sentimentos menina.

Duas horas depois de enterrar sua amada mãe, estaria defronte ao grande casarão. Dois andares com torres laterais pontudas, uma sacada ampla e as grandiosas janelas obscuras, ao lado um pequeno jardim morto, ao centro uma fonte com um sombrio querubim coberto por musgo. A casa parecia respirar, como se um profundo sussurro percorresse seus corredores, poderia ser o vento vibrando por entre seus pulmões de cimento.

Ao abrir a porta todas a lembranças passaram pela mente, como se estivessem enterradas em algum lugar no seu subconsciente. A mãe passando entre as salas com o avental bordado, a oração em agradecimento. As noites em claro a espera do sol, a preces noturnas contra um mal invisível.

Subiu as escadas em direção ao quarto da mãe. Seus pertences estavam intactos, camisolas negras sobre a cama, os terços e santos ao lado, e remédios para inibir o sono e muita cafeína.

O diário estava ao lado da cama, um pouco amarrotado, as últimas páginas foram escritas ás pressas visto a caligrafia pouco apurada.

Já são meses, não posso dormir, nem durante o dia, ele persegue os sonhos, transformando em pesadelos. Tenho alucinações, penso estar dormindo com os olhos abertos. Estou confusa, como se a camada da realidade pudesse se romper a qualquer momento, revelando um mundo de horrores. Tenho medo. Minha mãe dizia que o medo o alimenta, assim como o meu sangue o alimentará. Preciso resistir. Espero que Alice fique bem...somos os últimos...

Sentiu a madeira ranger e gemer sob seus pés, novamente o ar pesado e soturno percorria a casa, os móveis ressonavam e rangiam, as janelas vibravam, um nevoeiro espesso cobria todo o horizonte, abraçando preguiçosamente toda a propriedade, como a fumaça de um cigarro aceso. Sentiu um frio de arrepiar os ossos. Súbito uma sombra parecia deslizar no nevoeiro espesso em direção a capelinha que ficava no jardim, o rosto coberto por um véu negro. Alice Desceu as escadas rapidamente para perseguir a figura invasora. Algumas velas acesas lhe chamaram a atenção, mas não havia mais ninguém além delas, os rosários e santos repousavam em agonia divina, entre olhares aflitos e penitentes. No altar uma bíblia aberta em uma passagem marcada a sangue, assim diz o Salmo 17: "pó e cinza são todos os homens".

A voz da mãe lhe veio aos ouvidos como uma brisa.

Ele se alimenta do medo. Não temas.eu não pude...

Logo próximo ao altar, um pequeno baú, estremeceu e abriu em um ranger de madeira. Alice foi tomada por um medo, como se varetas finas cutucassem suas entranhas. Pegou e abriu uma caixa de ossos, amarelados dos quais alguns pontos a carne enegrecida ainda jaziam coladas. Sentiu um choque percorrer seu corpo, os ossos pareciam conter uma energia deturpada e imoral. Tombou sobre o peso do corpo, arquejando, os olhos perderam-se na escuridão rolando nas órbitas.

-

Estava sentada a mesa de jantar, a mãe a sua frente, olhando atentamente. Levou aos lábios um pedaço de carne suculento. Seus olhos sonolentos viam apenas as velas acesas e a escuridão que engolia a tudo, uma moldura em um quadro obscuro. Apenas sua mãe existia em seu centro da visão, desviando o olhar para escuridão a cada vez que ouvia um sussurro vindo dela.

- Ele está aqui... – sussurrou.

- Quem?

- O bicho papão – falou quase em um tom infantil – não se lembra, ele tem muitos nomes...não pode fugir pra sempre, acredite eu tentei.

Olhos surgiram da escuridão muito claros como faróis na estrada, milhares a observaram, a luz da vela iluminou as faces cadavéricas e pálidas, eram faces infantis que a observavam sem expressão.

- Todos eles...foram mortos, durante o sono, muitos de nossa linhagem maldita, outros sabe-se lá de que almas desafortunadas. Mas ele sempre vem...

- Como posso pará-lo?

- Das cinzas as cinzas, do pó ao pó... – levou a boca mais uma porção de carne, agora coberta de vermes.

- Eu não entendo, mãe...

- Enfrente seus medos, menina, e sobreviverá...eu tentei lhe proteger.. eu..- sentiu algo revirar nas entranhas, ele não permitiria mais palavras.

A mulher arfou, e milhões de verme surgiram de sua boca, em um vomito que cobriu a mesa de jantar. As figuras fantasmagóricas agora gritavam em coro, e os gritos preencheram a escuridão com o terror de morte. Alice tapou os ouvidos mas ainda podia ouvi-los, podia ver o inferno em seus olhos. Arrastou a consciência com esforço, e despertou.

Levou a caixa consigo. A casa parecia protestar a presença do entranho objeto, móveis foram lançados no ar, armários que antes estavam trancados explodiram arremessando pratos e pratarias da família. Portas e janelas pareciam estar possuídas por uma força entranha. Correu até a cozinha pegou o acendedor de lareiras, vasculhando encontrou o isqueiro do pai, do qual sempre acendia seus cachimbos fedorentos em vida. Cruzou o casarão com destino até o seu antigo quarto de dormir, lugar onde o medo nascerá em sua infância, com as ameaças constantes da figura de olhos ardentes surgir em meio à noite. Fugia de encontro aos pais, a partir disto, decidiu que não dormiria mais, jamais. O armário de roupas estava trancado com um cadeado de ferro e grossas toras de madeira. Mas algo rugia dentro dele, como um animal furioso que chacoalha a gaiola onde está. Algumas toras cederam, caindo ruidosamente ao chão. O cadeado rangeu e torceu mais uma vez, descolando da madeira da porta.

Ela colocou a caixa aos seus pés, puxou uma cadeira e esperou mais um movimento ou surpresa mortal vinda das sombras. Mas um silêncio pavoroso dominou a casa, como se a entidade estivesse apenas a espera. Colocou o fluído sobre os ossos, e esperou.

O sono e o cansaço a dominava, eram horas sem dormir, e os remédios ainda estavam em seu sangue. Os olhos ardiam, mas não poderia dormir, seria presa fácil para aquela estranha entidade. Repetia sempre a mesma frase mentalmente.

Eu não tenho medo. Eu não tenho medo. Eu não tenho medo.

A porta escancarou-se, quase arqueando sobre o batente, tamanha a força vinda da escuridão. O armário parecia negro e profundo em seu interior, e o vento trazia o cheiro podre dos corpos em decomposição, soprando folhas secas e pedaços de tecidos sujos de sangue. Ouvia-se muito longe o apelo de milhões de almas, agonizantes e choros tímidos infantis.

Algo surgiu, as sombras o cobriram como um manto negro, era grandioso, os olhos ardiam como brasas quentes e a boca era uma fornalha, as mãos em forma de garras riscavam o chão de madeira, criando sucos profundos.

Os olhos dela estavam muito arregalados, com o branco reluzente exposto expressando o mais puro terror. Era o algoz do próprio inferno que farejava o seu medo, e quando sentiu, sua boca rasgou-se num sorriso demoníaco.

- Você foi uma garotinha muito levada... – a voz inumana e gutural, era como de mil voz vindas do inferno, ou alguém com gosmas na boca, era grave e gorgolejante.

Com um click, a chama do isqueiro encontrou o seu destino, os ossos podres do assassino. Labaredas subiram até o teto, marcando um ponto negro de fumaça. A seguir o cheiro de enxofre invadiu suas narinas, e o que aconteceu foi uma sucessão de acontecimentos dos quais Alice se lembra vagamente. Uma explosão, a entidade corpórea urrando em uma face crispada de ódio e dor, enquanto sua imagem se fragmentava como pedaços de papel queimado. Um vórtice negro começou a sugar tudo para dentro do armário, móveis, quadros, livros e qualquer coisa que estivesse em seu caminho. Sentiu mãos gélidas segurarem seu corpo, de modo que o vórtice não a arrastou para dentro da escuridão. Algo passou veloz pela sua visão, provavelmente um livro acertando-a na cabeça. Tudo era uma confusão de sons, gritos e urros, coisas se quebrando contra a parede. Antes do fim, ouviu uma voz doce e reconhecível em seus ouvidos.

Não tenha medo menina, eu estou aqui, durma, não há nada no quarto, durma.

E assim, tudo fora tomado pelo sono, sem sonhos.

Quando despertou, sentiu os braços atados a grossas tiras de couro. A cabeça estava enfaixada e a dor latejante ainda a incomodava.

As imagens eram turvas como em um sonho.

Ao lado, uma figura negra, apenas a observava. Esperando e farejando.

Era o medo.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 09/07/2014
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