Tênue. - DTRL17

I –

Quem sou eu? Sempre quis saber quem sou. Nunca obtive resposta satisfatória. Será que um dia irei saber? Provavelmente, não. Olho-me no espelho. Vejo meus olhos, totalmente brancos. Meu rosto, ossudo, rígido, tenso. Quem sou eu? Repeti, frente ao espelho... e nada. Fechei os olhos e os abri novamente... nada.

II –

Ranzinza, o homem virou-se e olhou em volta. Tudo estava escuro, tudo frio. Estrelas longínquas. Era apenas um espectro, vagando pelo mundo, abandonado. Se alimentando de cada centelha de calor que encontrasse pelo caminho. Era um espectro, e não era mau. Apenas era. Por bares e breus, caminhava. Onde quer que encontrasse um lar, ali estava. Se tivesse que descrever-se em uma palavra, escolheria adaptável. Em toda sua história, nunca havia partido de fato. Esteve lá, em Hiroshima.

Esteve nos guetos, em navios que carregavam escravos, em funerais...

Sempre esteve junto da humanidade. Agora ranzinza, velho e gasto, estava lá. E pensava que nunca iria abandoná-los, ora, precisavam dele. Sem ele, o mundo iria sucumbir. O fim não teria propósito.

III –

“Deus, por favor, me salve...”

Foram as últimas palavras daquela mulher. Foi para a sala de emergências, a família ficou do lado de fora. Horas depois, veio a notícia. O corte havia sido demasiado profundo, e ela lutou bravamente durante o processo, mas, naquela idade, o coração já não era o mesmo. O mesmo coração apaixonado, que levou-a a dirigir por duas horas durante a madrugada, findou-a na mesa de operações. O espectro acompanhou tudo... era esta sua sina. Sua maldição. E, talvez por deboche do destino, era também a bênção de muitos.

“Tudo vai ficar bem. Disse, com a intenção de confortar. Tudo vai melhorar. Tudo passa...”

Disso sabia. Aprendeu a carregar este fato para onde quer que fosse.

A família desatou em lágrimas, apesar das tentativas de consolo. Naquela recepção fria, para aquelas pessoas, tudo havia perdido o sentido. O silêncio caiu ali, o pesar, a impotência perante àquilo era mais pesada que valor de uma vida. O receio, talvez, de no passado não ter tido outra conduta sempre deixava cicatrizes.

IV –

Mais tarde, naquele mesmo dia, um garoto subia no telhado de sua casa. A personalidade aventureira o guiava, confiante, correndo livremente ao ar puro. O sol resplandecia, vento soprava do sul. Era o primeiro dia de férias: havia sido aprovado em todas as disciplinas, sem precisar fazer recuperações, e estava livre para explorar o mundo. Era ainda criança, e seu mundo estendia-se até os limites do quintal da antiga casa onde morava, mas já havia decidido cursar arqueologia, tal como aquele tal de homem que usava chapéu e chicote, cujo nome não se lembrava agora.

Feliz e empolgado com o vento agitando seus cabelos, não percebeu que seu fim chegava em passos largos, trajando gélido caminho. Livre como um pássaro, livre pra voar. Fechou os olhos, abriu os braços, e abraçou o frio.

V –

O espectro acordou do outro lado. Não conseguia chorar, por mais que tentasse. Em seus pensamentos agitados, a lembrança do mundo de outrora destilava nostalgia e trazia-lhe lembranças amargas. As emoções todas aprisionadas nele atuavam como âncoras, puxando para baixo, para o fundo do poço... sempre acompanhava situações onde a vida se mostrava tão frágil quanto um floco de neve, e tão fina... Tão curta...

De sua eterna morada, olhou para o mundo. Viu a humanidade: a cobra que devora o próprio rabo, mas não sentiu o chamado. Ficou confuso, afinal, sempre estava lá quando mortes ocorriam, quando era essencial para manter a ordem... Olhou no espelho. Um minúsculo sol estava ali, quase não brilhava. Encolhia, congelava, convertia-se lentamente num buraco negro no céu... Virou-se novamente àquele pequeno planeta, aquele pálido ponto azul.

Não foi convocado, não dessa vez, mas conseguia sentir aquela Criação se extinguir. Sentia sua essência se queimando, junta daquele pequeno sol que colapsava.

Ele nunca havia sequer cogitado abandonar a Criação, mas agora o contrário acontecia, ele era quem estava sendo esquecido. Deixado de lado.

Ouviu gritos, sentiu dor. E ainda assim, estava ali, parado. Esse era, então, o fim... deitou-se no chão, como uma criança que mal conheceu a vida ainda. Mas não era este o caso, era o exato oposto. Era um velho, no fim da vida, que aceita seu destino. Já havia guiado aquelas crianças tantas vezes...

VI -

- Quem sou eu...? Indagou-se o homem, em frente ao espelho. Não esperou resposta, mas a obteve...

- Agora, já não és mais nada... Um dia, foi.

O reflexo que estava dentro do espelho saiu dali e juntou-se ao seu dono. As palavras não chegaram a sair, ficaram trancadas, na garganta daquele velho e ranzinza espectro.

VII –

Enquanto desfazia-se em partículas menores que átomos, e ainda assim maiores que alguns universos, compreendeu – ou pensou compreender – o motivo de seu fim. Em sua existência, havia guiado o rebanho: espantado os lobos, indo sempre pelas passagens mais seguras. Mas ele havia aprendido vivendo.

A humanidade, nem tão evoluída o quanto pensa ser, agora haveria de crescer... agora, iriam brincar. E para brincar, seria preciso abdicar a proteção da Mãe, ou do Pai... ou do Espectro. Enfrentariam esta fase por si só, fosse qual fosse o resultado. E em seu ímpeto, ele sabia que seria uma batalha difícil e que, talvez, não chegasse em seu final.

Os últimos feixes de partículas se esvaíram. Abriu os braços, como o menino que sonhava em ser pássaro, em ser livre. Pela primeira vez desde que as pedras foram colocadas, uma sobre as outras, lágrimas escorreram de seus olhos. De braços abertos, aceitou seu destino.

De braços abertos, a Esperança se foi.

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Tema: Anjos Caídos.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 17/07/2014
Reeditado em 26/08/2014
Código do texto: T4884931
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