Um doce envelhecer

Dizem que envelhecer com dignidade é o sonho de qualquer ser humano. Sabemos que as limitações do corpo e da mente acabam por condicionar nossos pobres corpos a camas quentes. A dependência de outros também é importante, não somente pelos cuidados mas também pelo amor que nos é ofertado. Quando jovens imaginamos que tudo parece ser eterno, não atentamos ao fato de que um dia também iremos envelhecer.

Que seja eterno enquanto jovens, somos capazes de proezas inimagináveis, o mundo é nosso. Ou na melhor das hipóteses, o mundo pertence a bem sucedida e extraordinária advogada Emily Hoffman. Mas havia um pequeno problema, aliás um problema de aproximadamente oitenta anos, ancorada em uma cama macia em sua casa. Sob os seus cuidados, a coisinha murcha e enrugada, assim como ela mesma dizia, estava a usar 10 fraldas por dia, o cheiro de urina fazia suas narinas arderem, e ela pensou que já estivesse impregnado pela casa toda, misturado ao odor de talco e remédios.

As vezes ela a observava dormir, a boca sem dentes de onde a pele dos lábios seca, afundava como em um tomate cozido, ouvia sua respiração profunda e alguns pequenos acessos de roncos, seus intermináveis monólogos a deixavam irritada. Quando desperta dizia coisas sem nexo, das quais Emily pouca importância dava. Era interessante observar como aquela mulher enfraquecida, cadavérica e senil um dia fora uma mulher forte e influente na cidade de Gatlin, e as vezes um pouco cruel, mas de uma inteligência pouco comum. Pensou em como a velhice nos consome.

Foi até o centro da cidade, no café Avalon, o lugar mais calmo que poderia estar. Tomava seu capuccino costumeiro e observa o movimento lento da cidadezinha. Pensou em várias maneiras de solucionar o seu problema. Um amigo de longa data, Harry Goldwyn, um outro advogado não tão influente assim, a não ser pela fama de ser considerado ´´O homem mais filho-da-puta e corrupto de Gatlin`` estava ao seu lado, observando algumas notícias do jornal: um avião abatido com 298 mortos, conflitos em Gaza, nada demais, tudo normal, o caos que deveria ser, assim pensou.

- O que te incomoda Emily, parece tão absorta nos seus pensamentos...- observou Harry, sem tirar os olhos do computador.

- Tenho um problema, de oitenta anos e 50kg – bebericou mais um pouco do café fumegante.

- Oh, não seja tão cruel com a sua vó, ela está no fim da linha – disse Harry, queria parecer delicado e até mesmo compreensivo, mas não estava.

- Ela já está fazendo hora extra, tem que bater o ponto, desde que minha mãe morreu ela ficou sobre meus cuidados, não é fácil...- pensou novamente no cheiro de urina e isso a fez enjoar.

- Mande-a para um asilo então, tire essa responsabilidade dos seus ombros, ou então a mate...- ele notou que os olhos dela ficaram muito arregalados e atentos – não me diga que não pensou nisso, se não, é mentira – ele a conhecia bem, sabia que a mulher de olhos claros e cabelos castanhos encaracolados e expressão quase angelical, poderia ser o próprio demônio, quando queria.

- Como? – sussurrou ela – não posso ser acusada de assassinato, Harry!

- É claro que você perderia sua posição de boa samaritana e a netinha mais linda do mundo, mas pense bem, não está na hora da velha dormir de vez?

Emily retornou para casa com um gosto amargo na boca, e não era o adoçante do café.

Mais uma noite sem sono, ouvindo a lamurias da pequena senhora. Seus sonhos, sempre muitos confusos a aprisionavam em seu passado, nomes que agora ela desconhecia. Todos os rostos em seus sonhos eram meras lembranças. Emily ficava por horas na pequena poltrona a observar o resquício de mulher, uma vaga lembrança de algo, que agora movia o tórax em movimentos lentos de sua respiração. Os cabelos muitos ralos e brancos, deixavam o couro cabeludo rosado a mostra, parecia-lhe mais um filhote feio de passarinho. Os olhos fundos, covas rasas que abrigavam olhos sem cor. Haviam ramificações de veias azuladas em seus braços muito finos. Pensou em sua mãe, ela morreu antes do que sua própria avó, contrariando as leis naturais que regem a própria existência humana. Aproximou-se do leito da avó, beijou a testa da senhora adormecida ´´ você precisa descansar vovó``, disse ela com uma voz quase infantil. Perecia cruel colocar o travesseiro em sua face, sufocar seus velhos e cansados pulmões, lutou pouco, os braços se agitaram no ar sem muita força, e assim ela morreu asfixiada em seu próprio sonho.

Era para o bem dela, dizia a si mesma. Mas era para o seu próprio bem, ela sabia, apenas tentava ocultar os sentimentos mais egoístas. Durante o enterro, pessoas de toda a cidade desejaram os mais sinceros sentimentos a querida Emma Hoffman. Alguns poucos derramaram lágrimas duvidosas, mas Emily, continuava impassível, tudo para esconder um meio sorriso em seus lábios.

O dia amanheceu lindo, com tons claros de purpura que explodiam no horizonte, a lua muito pálida podia ser vista em um ponto no céu. Despertou em meio aos seus lençóis de ceda, esticou os braços preguiçosamente, sentindo o prazer que isso lhe proporcionava. Aspirou o ar fresco da casa, rosa e sândalo. Agora nada mais fedia a urina e velhice, tudo o que fora dela, impregnado com aquele cheiro rançoso fora imediatamente queimado. E ainda a boa notícia viria pela manhã, finalmente saberia o valor da tal herança que lhe era de direito.

Levantou ainda nua, sentindo uma dor estranha mas passageira na coluna, ouviu o estralar de ossos e foi até o banheiro. Ao focar seu belíssimo rosto no espelho, notou algumas pequenas machas circulares, pequenos pontos que pareciam sardas desiguais. Intrusas perversas em seu rosto perfeito, tratou de esconde-las com maquiagem e pó, afinal, talvez seria apenas um probleminha dermatológico passageiro, assim pensou.

Ouvindo as ladainhas do seu advogado, apreciando seu pedantismo gramatical exacerbado, ela concluiu que sua querida avó havia lhe deixado uma boa quantia em dinheiro. O suficiente para abrir seu próprio escritório no centro da cidade, ou então, deixar de vez Gatlin. Ponderou as decisões, ansiosa pelo que viria logo mais. Súbito sentiu algo revirar no seu estômago, como um gato a arranhar as paredes de um saco preto, o vômito subiu a garganta, ela correu em direção ao banheiro, e um jato de vômito misturado a sangue fora expelido violentamente.

- bem, a senhora está...

- senhorita, por favor – interviu um pouco irritada.

- Pois bem, a senhorita está com úlceras gástricas... – disse o doutor observando-a por cima dos óculos.

- Como? – interrompendo-o bruscamente – eu levo uma vida saudável, faço exercícios, mantenho uma ótima alimentação, e estou com úlceras...

- Veja, bem. Na sua idade, isso é muito comum...

- O que?! – os olhos dela se encheram de ódio, pagará um preço razoável por aquele convênio médico – eu tenho apenas vinte e sete anos, e estou me sentindo péssima...

- Senhora Hoffman, diz em sua ficha que a senhora tem aproximadamente quarenta anos – já havia presenciado crises de meia idade de muitos dos seus pacientes, mas aquilo era totalmente novo, observou intrigado e um pouco apreensivo o horror na face da mulher.

- Isso é algum tipo de brincadeira – o sangue tornará seu rosto muito vermelho de raiva, seria capaz de cravar as unhas nos olhos daquele desgraçado – eu não pago por brincadeiras!!! Eu sou uma advogada, você sabe com quem está falando?! Eu posso ferrar com essa sua clínica de merda, me ouviu!

Os guardas a arrastaram aos berros para o lado de fora do consultório.

- Sugiro que a senhora consulte um psicólogo e um psiquiatra urgentemente... – esse fora o último conselho sábio para uma senhora destemperada.

Chegou em casa um pouco cansada demais, ao subir as escadas sentiu os ossos doloridos. Olhou-se no espelho, permanecendo paralisada, com os olhos muito arregalados observando com um estranho horror sua própria face distorcida. A pele dos olhos murcha e caída, cobria os cílios escassos. Marcas de expressão muito profundas começaram a surgir, os lábios descoloridos contraiam-se trêmulos, a pele do rosto parecia inchada. Observou suas mãos, os rios sanguíneos que formavam um relevo em sua pele pontilhada por manchas desiguais.

- Isso é loucura – pegou a base e começou a esfregar na face de um jeito brutal - não está acontecendo, não está acontecendo, é coisa da minha cabeça, só isso!

Os dias prosseguiram, regados a infelizes acontecimentos, resumidos a incontáveis crises de asma, elevações da pressão arterial que a deixavam confusa, sangue na urina, perdas repentinas de audição, osteoartrose, bronquite.

Arrastou-se com dificuldades pela casa, os espelhos cobertos por grossos tecidos pretos deixavam a casa com uma atmosfera soturna, pouco acolhedora. Sentia o cheiro fétido em si agora, de urina e velhice. Foi até o banheiro para observar seu aspecto uma última vez. Parecia pior. Agora sua pele curtida apenas cobria os ossos sem músculos nenhum, pendendo sobre seus braços uma pele macilenta, similar a roupa velha e molhada no varal. Os seios que antes tão belos e redondos, foram reduzidos a dois sacos de pão murchos com os bicos longos encostados na barriga inchada. Observou o azul dos seus olhos, tornarem-se duas esferas pálidas com círculos brancos ao redor de sua íris, podiam ver pouco agora. Os dentes haviam caído um a um, como pedaços de milho soltos na própria boca, estavam dispostos em um vidro ao lado da cabeceira.

Sentia-se solitária, confusa. Não havia ninguém em sua companhia e mesmo que houvesse estaria sempre sozinha. Isolou-se de todos, chamadas ao telefone foram rejeitadas, tudo parecia surreal demais para ser verdade, era apenas um pesadelo.

Ela queria despertar. Mas todas as manhãs, a frente do mesmo espelho, sua imagem desaparecia para dar lugar a uma velha esquálida e demente.

Despertou subitamente de um sono pesado. Sentiu os braços arderem como se pequenas cobras de fogo estivessem se esgueirando por entre suas veias. Abriu os olhos com cuidado, era tudo muito branco, muito claro, seus olhos estavam sendo feridos. Haveria morrido, talvez, imaginou?

Vozes, e mais vozes murmuravam em algum lugar. Máquinas conectadas emitiam sons repetitivos e distantes. Agora reconhecendo o lugar, notou o movimento da enfermeira que lhe sorria amigavelmente. Tentou mover seus braços e pernas, mas pareciam pesados demais, exigiam uma força que ela não possuía mais.

- Deixe-nos a sós, por favor – uma voz doce e feminina inundou o quarto.

A figura aproximou seu rosto bem perto do seu, podia ver bem os olhos claros e belos da mulher de cabelos encaracolados, o cheiro forte de perfume agredia seu olfato.

- Oi vovó, como está se sentindo hoje?... – era uma pergunta desprovida de emoção ou qualquer importância.

- Eu...não tenho...neta! – as palavras rolavam soltas na própria boca, pequenos vermes incontroláveis em sua língua.

- Ora vovó, está tão senil que não se lembra de mim...- parecia magoada, mas ela sentiu a ironia pairar sobre ela como um pesado escárnio.

- Sua...louca...eu não tenho...neta! – cuspiu algumas palavras, odiando a si mesma por estar naquela condição.

- Vovó, já está fazendo hora extra, vamos bater o ponto? – segurava uma pequena almofada nas mãos. Tudo transformou-se em uma escuridão abafada, os gritos ficaram presos na garganta seca. Os braços agitaram-se timidamente, as últimas palavras ficaram presas em algum lugar.

- É para o seu bem vovó, é para o seu bem...

Ela apenas sorriu.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 24/07/2014
Código do texto: T4895370
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