A improvável morte do mosquito - DTRL17

A improvável morte do mosquito

"No caos, a insanidade é um atalho para o paraíso."

Não se pode definir loucura sendo são a vida inteira. Tampouco é fácil dimensionar a dor, sem ter vivido sua agonia. Portanto, prestem atenção no relato. Talvez consigam ter a mínima noção da gravidade desses estados.

Nenhum relógio ousava badalar – pêndulos inertes – mas já eram quatro horas da manhã. O cérebro parecia inchado – incontrolável dentro da caixa craniana – irritadiço à menor provocação. Luzes fortes golpeavam o seu ego e ele contra-atacava com extremo fervor. Por essa razão, a penumbra estava instalada no apartamento. Um negror completo em todos os cômodos. Exceto na sala – onde eu estava – a pequena TV permanecia ligada.

Dizer que o aparelho ligado não incomodava, seria o mesmo que dizer que hoje estou soterrado de arrependimentos. Mas, o fato é que há 15 dias a agonia tomara de assalto conta do meu corpo e eu não sabia mais o que era viver. A televisão era o único contato que eu tinha com o mundo exterior, uma linha tênue – filigrana delicada – com a realidade. Dia e noite ela permanecia ligada, gerando o mínimo de combustível que eu precisava. Obviamente, meus caros, tive que fazer alguns ajustes; retirei as cores, diminui o contraste, suprimi o brilho e, principalmente, emudeci qualquer virgula audível – MUTE. Digo principalmente, pois se existia alguma coisa que perturbava a mente mais do que a luz era, justamente, o som – qualquer som!

O barulho do encanamento, uma brisa solta tocando levemente a cortina, ou, até mesmo, o chiado dos meus ossos quando me movimentava, agiam como o sino do Czar ligado em amplificadores e provocavam uma ira excruciante do gestor encefálico sobre todos os meus sentidos.

Não passei a me esgueirar pela minha casa com pantufas verdes e ridículas, sem motivo. A não dar descargas, nem tomar banho ou beber água vagarosamente por canudinho, por pura irracionalidade. Não, absolutamente. Fazia tudo isso por puro receio – medo mortal – da retaliação que poderia sofrer do meu comandante desalmado. A massa controladora e sem escrúpulos que habitava minha cabeça. INGRATO, logo comigo que lhe enchi a vida inteira de proteínas, obedeci sem reclamar as suas ordens e caprichos. Li sem parar tudo que me pedia. CRETINO!

Chega, não quero desviar o assunto, perder o elã divagando em busca de culpados... Voltemos.

Na noite anterior ao episódio fatídico que vos narro, sonhei com a surdez. Com a sublimidade do silêncio. Sim, senhores. Pois nunca fui homem de me entregar. Sangue ruidoso ainda corria em minhas veias. Corri – ou melhor, andei rápido arrastando os pés – até o meu estojo de costura e lentamente saquei uma enorme agulha de metal. Sem titubear, levei a avantajada peça prateada ao ouvido, disposto a assumir as rédeas da situação. Ainda que isso me custasse abdicar do prazer e escutar meus inestimáveis Lps do Mile Davis. Um preço caro há tempos, uma pechincha naquele dia.

Encontrava-me decidido, tal qual uma nariguda antes de uma rinoplastia. Non, je ne regrette rien. Porém, como nem tudo na vida são flores – nem espinhos de metal, pelo visto – a simples fricção do objeto pontiagudo com a pele no inicio do meu canal auditivo, soou como uma verdadeira britadeira – ineficaz, pois nunca chegaria a romper o meu tímpano. Minha ação foi repelida brutalmente, não por instinto, mas por ordem dele, meu carma cinzento. Fui violentamente jogado ao chão, caí sobre os joelhos. Nocauteado pela fraqueza diante do meu amo. Lágrimas escorreram do meu rosto e respingaram no piso frio. Poucas, mas ensurdecedoras. Eu era um maldito refém – com a maior Síndrome de Estocolmo que podia existir.

Peço perdão por não ser mais objetivo. Desculpas pelo introito prolongado. No entanto, só assim terão a dimensão do que senti quando vi um monstruoso mosquito pousado no meu braço às 4 da manhã daquele famigerado dia.

Gotas geladas de suor escorreram pela minha protuberante testa e, graças aos deuses, se detiveram em meu espesso bigode. Meus olhos – quase cegos de tão acostumados com a escuridão – projetavam em uma escala exagerada as patas esguias daquele maligno ser alado. O tronco negro pintalgado de repugnantes manchas brancas. Os olhos saltados como em um desenho animado. A vastíssima penugem que cobria o dorso. Praticamente um morcego... Sentado em meu braço!

Nunca tive asco deste tipo de inseto. Durante toda a vida achei aranhas engraçadas, besouros desengonçados e baratas muito mal interpretadas. Nunca fui um homem de frescuras e temores insensatos. Meu natural e razoável receio era de que aquela criatura maléfica levantasse voo, com o exclusivo intento de me causar loucura – farfalhando suas asas em uma melodia insuportável.

Como vocês podem concluir, é óbvio que eu precisava deter aquela ameaça fatal. Óbvio, também, que em repouso – enquanto sugava meu sangue quente – as minhas chances de sucesso eram muito maiores. Pois bem, acreditando na fortuna, na glória da vitória, agarrei com minha mão livre – a que não servia de hospedaria – o imenso peso de papel que estava sobre a mesa de centro. Sem demora, levantei o objeto acima da minha cabeça e, em seguida, desci vertiginosamente sobre o meu braço.

Lembrem-se, leitores, que o meu raciocínio a época era débil, completo oposto ao de hoje.

O objeto acertou meu braço esquerdo, fraturando-o na mesma hora. A dor lancinante refletida em cada fibra do meu corpo. Entretanto, nenhuma célula ousou tilintar. O sofrimento foi redondamente silencioso.

Apesar do desconforto, do osso quebrado e do grito abafado, sorri. Por uma falta de cuidado, um pequeno lapso de prazer, quase gargalhei. Contudo, aprendera da pior forma a ser um bom opressor dos meus sentimentos. Ergui, lentamente, o peso de papel tingido de escarlate – meu escarlate! – e vi o corpo de meu algoz junto ao meu braço deformado.

Meu coração disparou em felicidade – tão rara nas últimas semanas – ecos surdos de alegria que, de maneira insólita e piedosa, o cérebro resolvia ignorar.

Porém – sempre existe um “porém”, culpa da perversa efemeridade – tão veloz quanto o seu aparecimento foi o seu abandono: felicidade. Felicidade, felicidade, felici... Subitamente transformada em desespero, alegria em ansiedade. O inseto que jazia, já não jazia mais. Suas asas chacoalhavam como os pratos de uma banda marcial. O corpo, incólume, se agitava como um epilético no auge de uma crise – convulsões de puro deboche. O zumbido, oh dios mio! O zumbido ressoava em meus ouvidos como trombetas – desafinadas – do apocalipse. Meu apocalipse!

E, repentinamente, o mosquito levantou voo levando consigo o restante da minha sanidade. O cérebro, que estivera quieto como um mero espectador, começara a me açoitar com a crueldade de um sádico. Cada som que saia daquele animal era uma martelada que recebia na mente – uma lobotomia sem morfina. Por se tratar de um agente do mal, o mosquito logo percebeu minha agonia e, como se não bastasse, resolveu adaptar sua rota para mais próximo da minha cabeça. Minhas orelhas eram os pontos turísticos mais visitados do itinerário. Ele me desafiava com a confiança dos aviadores que sobrevoaram o King Kong. Tenho dúvidas, mas seus olhos puxados me diziam que ele era japonês, um mosquito kamikaze, provavelmente.

Tentava de todo modo acertá-lo, esquecendo-me, sobretudo, da precária condição do meu braço esquerdo. Contudo, o safado era um Ás difícil de ser tombado. Também, pudera, pilotara a vida inteira.

Aos poucos, minha casa foi transformando-se em um cenário de pós-guerra. Tateava no escuro em busca de qualquer coisa que me servisse de arma. E, quando esta não me servia mais, livrava-me dela com a rapidez e o descaso de quem se livra de um estagiário. No entanto, quando tudo parecia em vão – perdido – e o terror latente dominava a situação, uma voz suave soou em minha mente:

- Mate o mosquito!

Não compreendi a alucinação e continuei desferindo golpes a esmo. Não acertava nada, mas a voz me acertou mais uma vez.

- Mate o mosquito, é uma ordem!

Então tudo parou. E a sensação que tive foi de conforto, paz. Minha cabeça já não doía mais. A enxaqueca desaparecera. O cérebro parecia me dar uma salvo conduto, devolvendo a plenitude de meus sentidos. Uma trégua, pensei.

- Uma trégua, não. Mate o mosquito e terá paz.

O cérebro – soberbo? – estava obcecado. Repetindo a frase como um mantra idiota. Pouco importava, se isso significava a volta da normalidade, eu mataria a merda do mosquito. Nem que tivesse que morrer pra isso.

Como já disse anteriormente, meu raciocínio era deprimente.

Corri pela casa derrubando armários, estantes e livros. Acendi todas as luzes, coloquei meus óculos, capacete e peguei um pesado taco de polo. Não podia perdê-lo de vista. Meus golpes passavam a milímetros de seu corpo de fada, zunindo perto do zumbido.

Ele voava com seu brevê especial e eu dançava a sua volta com uma bailarina bêbada. Todavia, fruto de um movimento desengonçado, uma ideia caiu sobre minha cabeça. Ao invés da maça de Newton, o que me acertara fora a pesada biografia de Alexandre, o Grande. Peguei o livro e, de súbito, sabia o que fazer. Compreendi de imediato, afinal meu raciocino lógico havia iniciado seu retorno.

Comecei a aplicar golpes com o taco sem a intenção de acertá-lo. Fiz isso várias vezes, até que nos encontramos na porta do banheiro. Olhei o desgraçado nos olhos – sem licença poética – e fiz um ultimo arco com minha arma. Xeque-mate, refleti, antes de encurralá-lo no lavabo. Fechei a porta atrás de mim. Éramos só nós dois.

Vida ou morte, cavalheiros.

O mosquito havia aterrissado no espelho e eu não esperava nada diferente daquele narcisista miserável. Ao mesmo tempo em que eu o encarava, contemplava minha própria imagem no espelho. O espectro de um homem. Lastimável. Um retrato sórdido que em nada lembrava o que eu já fora um dia.

Mas basta de divagações, senhores.

Tomado de emoção e sem um pingo de razão, gritei com todo o ar que tinha nos pulmões e lancei o derradeiro golpe.

Com todo o respeito, gostaria que não me tirassem por mentiroso tendo por base o que estou prestes a lhes contar. Qualquer risada será tomada por insulto. Devidamente advertidos continuo:

No momento exato do golpe final, tudo ficou imenso e lento. Constatei com incredulidade nos olhos, que o desgraçado milésimos antes de ser acertado se abaixou sem qualquer pudor. Prova disso, foi que consegui arrancar sua asa esquerda – olho por olho, dente por dente. Para minha imensa surpresa e pavor, a entidade demoníaca travestida de mosquito voou, mesmo aleijado, para o duto de ar preso ao teto. Olhou para trás e sumiu no buraco fosco.

Atônito, estupefato, aturdido, zonzo, fique desprovido de reação. Fui assaltado por um suplício crescente.

Sensação sem precedentes, para vocês verem, companheiros.

Era o fim. Todavia, o cérebro repetia sem parar “mate o mosquito”. Cogitei entrar no duto e continuar minha odisseia, aproveitando a ausência de uma asa, mas meu corpo não atravessaria o vão em hipótese alguma.

Pois bem, nada disso é surpresa, se tivesse realmente aniquilado o inseto não estaria aqui hoje, nessa sala branca idiota. Vocês sabem muito bem disso. Sendo assim, continuemos.

Cansado, com o braço quebrado, dolorido ao extremo, envolto em uma rede de melancolia, me ocorreu uma saída. A massa encefálica desestruturada continuava a repetir seu lema, e eu não queria voltar ao inferno que ela me impusera. Por isso, corri até o meu celular. Abri minha agenda da época de colégio e disquei. No sexto toque meu amigo atendeu esbaforido. Sobressaltado, em plena madrugada. Com calma e frieza, que não me eram peculiar, disse que precisava de sua ajuda. Ele se espantou, tentando esquivar-se do pedido, mas insisti de modo veemente, alegando que era um caso de vida ou morte.

Esperei vinte minutos. O cérebro permanecia em transe, como se estivesse com defeito – “mate o mosquito!”, ele repetia. Para minha alegria ainda estava livre dos efeitos de seu mau-caratismo. Pretendia continuar assim. Nesse sentido, era imperioso cumprir o acordo – o pacto terrível.

Quando a campainha tocou, olhei pelo olho mágico e perguntei:

- Quem é?

- Rafael.

- Quem?

- Rafael Mosquito.

Agarrei o taco de polo com força e abri a porta.

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Tema: Paranoia. E, pra colocar uma pulga atrás da orelha, amigos imaginários e aconteceu comigo. rs