Lua Sombria - DTRL 17 (republicação)

Anoitecia, com o céu escurecendo para um azul mais profundo e lúgubre quando o carro parou à beira da estrada deserta. Tales Martini, 16 anos, olhou em volta com seus olhos ainda marejados pela janela do velho Landau 1983 que sua mãe herdara do pai. Seu cabelo longo e negro grudava com o suor na testa ardendo em febre, enquanto ele se perguntava o que levou sua mãe a parar naquela estrada desolada onde apenas se via a imensidão de campos se estendendo ao horizonte e a estrada cortando a paisagem como uma cicatriz.

- Por que paramos? – ele perguntou para sua mãe sentada no banco do motorista. Monique Martini segurava firmemente o volante com detalhes em couro e mantinha o olhar baixo e soturno. Ela era uma mulher jovem de longos cabelos negros e olhos azuis. E também uma mulher muito linda. Quando andava pela rua despertava comentários dos homens e desviava olhares, mas agora parecia exausta, com os cabelos desgrenhados jogados para trás, olheiras nos cantos dos olhos e fios grisalhos se destacando. Tales não sabia o que a tinha levado a esse estado deplorável, se era o tempo levando essa vida dura de uma corretora de imóveis que se esforçava para criar sozinha o filho, a longa viagem de carro ou a preocupação com a sua doença.

Tales vinha sofrendo de uma febre grave e inexplicável no último mês e que parecia que nenhum tratamento ou remédio era capaz de curar. Tinha começado apenas como um mal estar, mas ficava pior conforme os dias se passavam, especialmente à noite, em que ele acordava de sonhos inquietos, cheios de abismos infindáveis e coisas obscuras que o espreitavam, e ele se sentava na cama repleto de suor e sem poder dormir novamente. Sua mãe se ausentava do trabalho para cuidar dele e acompanhar horrorizada seus delírios de febre em que balbuciava sobre presas de prata e rosnados ecoando distantes, como que vindos de eras passadas. Os dias foram se fundindo em semanas e a febre só piorava. Durante as últimas noites, Monique se sentava na poltrona que pusera no quarto do filho e o observava deitado, um pano molhado sobre a testa para amenizar as temperaturas alarmantes, vendo ele se agarrar à colcha quase a rasgando com a força que adquiria subitamente, e ela apoiava o rosto nas mãos abafando o choro por começar a entender o que estava acontecendo, antes de adormecer e ser encontrada na manhã seguinte por um Tales confuso. Até que há dois dias Monique arrumou algumas malas, onde colocou roupas e alguns pertences de que eles pudessem precisar, trancou a casa em que moravam e saiu com Tales para uma viagem de carro, sem explicar diretamente o motivo ou quando voltariam.

- Paramos aqui por quê? – perguntou Tales pela segunda vez, diante do silêncio de Monique que olhou para o céu.

- Não vai dar tempo – ela disse mais para si mesmo do que em resposta ao filho.

- Não vai dar tempo para o quê? – a voz de Tales saiu abafada e com mais dificuldade, como era comum acontecer à noite.

- A lua já vai aparecer. Vamos ter que esperar aqui mesmo.

- Do quê você está falando? – Tales se esforçou para falar. Sua garganta ardia como se ele tivesse engolido brasas incandescentes – O que tem a lua?

Monique se voltou para o filho no banco da frente e o observou em silêncio por alguns instantes, tentando encontrar as palavras certas para dizer o que ela mesma demorou em acreditar. Por fim, percebeu que não haveria uma maneira totalmente crível e lógica de lhe contar um segredo que guardou em todos esses anos e que não poderia esconder mais.

- Filho – ela começou cautelosa – Essa sua febre. Ela não é normal. No começo eu achei fosse só uma febre qualquer, mas depois, vendo como ela transcorria, com você delirando à noite... E quando nenhum tratamento funcionava, eu compreendia do que se tratava. Demorei em aceitar, mas vi que precisava te contar. Não poderia mais guardar isso dentro de mim, sabendo que você acabaria descobrindo. De uma forma ou de outra, acabaria descobrindo.

Tales tentou falar alguma coisa, perguntar o que aquilo significava, mas o que saiu de sua boca foi uma tosse ruidosa que quase tirou seu fôlego.

- Fique calmo. Vou encontrar um lugar para ficarmos.

- Por que você está falando isso? O que tem a minha doença?

- Seu pai falou que isso acontecia. Quando filhos de... Pessoas como ele nasciam, tudo começava com uma febre.

- O que tem meu pai? – falou Tales. Ele não sabia o que pensar ou sentir quando se falava do pai. Tudo o que ele sabia sobre ele é que ele foi embora quando sua mãe ainda estava grávida e nunca mais deu nenhuma notícia, presente ou cartão de natal. Muito cedo ele resolveu que não deveria se importar mais. Ele tinha Monique, era o que importava – Ele não tem nada a ver com isso. Nunca teve.

- Receio que tenha mais do que você imagina – falou Monique, tristemente – Demorei em constatar e temia que isso acontecesse. Vocês têm algo em comum. E pensei que talvez ele pudesse nos ajudar.

- É por isso que estamos viajando? Para nos encontrar com ele? Vai pedir ajuda por causa de uma febre? A gente não precisa dele, mãe. Passamos por coisas piores e nunca precisamos dele.

- Não fale assim. Você não sabe o que está acontecendo.

- Então me explica – o tom de Tales aumentou o quanto foi possível – Desde que saímos você não me fala nada.

O coração de Tales batia pesado e uma dor explodiu em seu peito, fazendo-o se curvar. Ele tateou a porta do carro, tentando abrir a janela. Ele precisa sair e pegar um ar. De um segundo para o outro se sentia sufocar ali dentro.

- Você está bem? – perguntou Monique.

Tales fez um gesto para dizer que estava bem.

Monique deu a partida e depois de uma distância virou à direita, entrando em uma trilha que partia da estrada principal e para perto de um monte de árvores, ilhadas no campo como um fragmento de mata.

- Você quer sair um pouco? – Monique abriu a porta, deu a volta no carro e ajudou Tales a sair. Ele se apoiou no carro tomando fôlego.

- Por que você quer o meu pai? – ele perguntou. Cada palavra dita com dificuldade.

- Pensei que ele poderia te ajudar. Tinha certeza de que ele não negaria ajuda. Ele tinha os seus problemas, mas era um homem bom.

- Era? – disse Tales, e viu que estava enganado ao pensar que sua mãe não poderia ficar mais triste e abatida do que estava.

- Sim. Na cidade anterior falei com alguns conhecidos perguntando por seu pai e descobri que ele foi morto há quase um ano, por tiros durante uma caçada.

O mundo parecia girar para Tales e não era apenas por causa da febre.

- Quando você planejava me contar, se é que iria me contar?

- Claro que eu ia te contar. Estava esperando chegarmos a um lugar seguro. Não sei onde, mas talvez houvesse um lugar.

- Por que um lugar seguro? Do quê estamos fugindo?

- Não estamos fugindo de nada. O problema está... – ela parou um pouco – Está dentro de você. E está prestes a sair com a lua. Seu pai foi morto durante uma caçada. Ele não estava caçando. Estava sendo caçado, durante uma de suas transformações em uma noite de lua cheia – e diante da expressão de incredulidade de Tales apoiando seu braço no carro, ela acrescentou – Sim, seu pai era um lobisomem. E você herdou a maldição, filho. Ao que tudo indica você está se tornando um.

Tales balançou a cabeça, não querendo ouvir mais nada.

- Não. Por que... Por que você está me dizendo isso? Isso não tem graça. Pare de mentir.

- Não é mentira, filho – Monique se aproximou dele, mas Tales se afastou – Descobri que seu pai era um lobisomem depois que começamos a namorar. Foi um choque para mim. Chegamos a conversar sobre a condição dele, mas vi que aquilo não era o que eu queria para minha vida. Pedi que ele fosse embora sem contar que estava grávida. Pensei que poderia criar o meu filho sem ter um... Uma pessoa assim por perto. Eu queria te proteger. Agora vejo que não posso te proteger de tudo, afinal.

Tales caiu ajoelhado na terra, curvado até quase encostar a cabeça ao chão. Seus braços em torno do peito, sentindo uma dor horrível que jamais ele pensou que poderia sentir. Era uma dor de raiva e instintos selvagens que afloravam sem que ele tivesse qualquer controle.

- Tales? Você está bem? – Monique se aproximou e se curvou sobre o filho passando suas mãos em suas costas, sobre o tecido macio do casaco cinza. Tales se levantou de repente e a empurrou com uma força desmedida, fazendo-a cair sobre a estrada de terra batida, metros de distância. Ele solta sobre um arbusto de uma maneira impressionante na orla do pequeno bosque e corre por entre as árvores. Monique se levanta não totalmente recuperada da queda e ignorando a escuridão que se formava com o fim do dia ela vai atrás do filho na mata perto da estrada.

- Tales! – ela gritava tropeçando em raízes e pedras fincadas ao chão e se apoiando nos troncos – Tales, por favor, fala comigo.

Ela o encontrou deitado no chão, encolhido em posição fetal, tremendo. Ele levantou um olhar cintilando de lágrimas através das sombras do crepúsculo.

- Mãe... Mãe...

- Tudo bem. Está tudo bem – Monique se agachou ao seu lado – Não se preocupe. Vai ficar tudo bem.

- Mãe – disse Tales. Algo transpareceu em seu rosto. Estava tomando consciência da verdade. A verdade do que ele era. E em que estava se tornando – Saia daqui, por favor. Não é seguro.

- Não vou sair e te deixar sozinho. – Monique falou.

- Não. Não é seguro. Você está... – Outra rajada de dor se espelhou por seu corpo e ele rolou para o outro lado, batendo com um estrondo suas mãos fechadas em um tronco quando se levantou com um salto. Ele se virou para olhar para sua mãe. Nos seus olhos havia um brilho amarelado fora do comum. As mangas de seu casaco estavam estranhamente apertadas, como se seus músculos tivesse se avolumado de repente.

- Saia daqui – ele falou com uma voz grave, sua boca se movendo como se os dentes estivessem crescidos, incomodando. Ele parou um pouco, suspirou fundo e falou, agora soando completamente normal – Vá ao carro e pegue alguma coisa para me amarrar. Não quero ficar me debatendo ou sair para te atacar. Depressa, a lua está prestes a aparecer.

Monique foi se afastando devagar sem desviar o olhar do filho e correu até o carro. Ela abriu o porta-malas com suas mãos trêmulas e suadas e tirou de lá uma corda, aliviado por tê-la trazido. Tinha considerando essa possibilidade de precisar conter Tales durante a transformação. Ela voltou e o encontrou ainda apoiado no tronco da árvore, seus dedos cravados na casca. Ele juntou as mãos para que Monique as envolvesse com a corda e enrolou o resto nele e na árvore, prendendo-o, dando um nó forte e apertado.

- Tem certeza de que não quer que eu fique?

- Tenho. Fique dentro do carro e não saia de lá... – Tales começou a se contorcer – Vá... Por favor... – falou e o brilho amarelado retornou a seus olhos. Ele se debatia mais forte, os dentes parecendo mais pontudos, seus músculos crescendo. E Monique parou atônita, contemplando seu único filho se metamorfosear em algo irreconhecível. Ela foi dando passos para trás, enquanto as lágrimas percorriam seu rosto e Tales rosnava um rosnado alto e monstruoso que saía de suas mandíbulas. Ela se virou e correu sem olhar para trás. Não adiantava. Não era mais Tales que estava ali, mas uma criatura hedionda. “A primeira transformação sempre é a pior. Seja para os recém-mordidos ou que são filhos de lobisomens e herdam a maldição, tudo começa com uma forte febre. Não sei descrever a dor que se sente na primeira lua”. Correndo por entre as árvores até o carro, Monique se lembrou das palavras do pai de Tales depois que ela descobriu sobre ele. Na estrada, ela avistou a lua se levantando no horizonte como o nascer de um sol gelado.

Ela entrou no Landau e apoiou a cabeça no volante, chorando. Era possível ouvir ao longe os urros de Tales e o barulho dos galhos da árvore em que estava amarrado se chocando com os outros, mexendo com a força descomunal de um ser que tentava se libertar. Entre os gritos animalescos, ela quase podia distinguir a voz humana de Tales e lutou contra o desejo de ir para ele, ajudá-lo. Não é mais o Tales, ela lembrou a si mesma, não até o amanhecer. E os rosnados continuaram. Ela ligou o rádio do carro. Estava sintonizado em uma estação que tocava uma música de Rock. Ela aumentou o volume ao máximo e como não estava adiantando para abafar os urros e o farfalhar das folhas das árvores sendo sacolejadas, ela colocou as mãos nos ouvidos e começou a cantar junto com a música, verso após verso, deixando que a melodia afastasse para fora as imagens aterradoras de Estevão, o pai de Tales, como uma criatura monstruosa de pelagem castanha que uma vez ela tinha visto. A visão de garras e dentes afiados voltava junto com os urros e sons de galhos de rompendo que ela ainda era capaz de ouvir, apesar da música no último volume e o som de seu próprio choro. Monique se sentia tão só. Ela não tinha se sentido assim desde a morte de seus pais. O sentimento de abandono e a horrível sensação de não poder proteger quem ela mais amava a envolviam. “Agora vejo que não posso te proteger de tudo, afinal”. As palavras que tinha dito ao filho ecoavam amargamente em seu coração.

A música parou e um locutor começa a falar alguns agradecimentos. Monique tira as mãos dos ouvidos. Estava tudo completamente calmo. Ela abaixa o volume do rádio e o desliga. Só o que restava era o silêncio. O ar estava parado, sem nenhum vento, e não se ouvia um pio de uma coruja sequer. Somente o que se via era a paisagem desolada e fria, iluminada na noite plena pela lua cheia que brilhava feito uma imensa jóia celeste. Por um momento, Monique pensou que Tales provavelmente tenha adormecido ou desmaiado, o que era uma possibilidade remota ao se tratar de um lobisomem. Era esperou alguns instantes por algum barulho ou manifestação, mas a calmaria continuou. Monique estava prestes a abrir a porta em uma atitude imprudente e desesperada, cogitando em ir ver o que tinha acontecido, quando uma enorme sombra de desprendeu da pequena mata ao lado e pousou em frente ao carro com um baque surdo de imensas patas caindo sobre a terra. Sob o luar prata Monique o viu. O lobo preto gigantesco estava olhando para ela com seus olhos cor de âmbar. Um rosnado baixo escapava de sua boca, entre os dentes afiados como uma navalha. O lobo que Monique nunca tinha visto, mas que ela conhecia. Antes ele atendia por um nome que ela escolheu.

Tales.

Monique soltou um grito que por pouco não veio como acontecia nos pesadelos. Ela ligou o carro e os faróis até então desligados, o que irritou o lobo. Ele recua ofuscado com o feixe de luz e depois avança sobre o carro, socando o capô com uma de suas patas dianteiras, deixando um amasso para trás. Monique sentiu como se uma rocha tivesse atingido o Landau por cima. Ela avança com ele para frente, engatando a marcha e acaba atropelando o lobo até o arrastar um pouco, o que quebrou um de seus faróis esquerdos. Com a criatura caída, tentando se levantar, ela dá a marcha ré pela trilha até a estrada principal e em um cavalo-de-pau rangendo os pneus faz uma volta e avança pisando fundo no acelerador. Houve um uivo ensurdecedor e o lobo seguiu o carro, galopando com uma velocidade assombrosa pela pista. Pelo retrovisor, Monique viu o lobo se aproximando. Ela acelerou o máximo da potência do Landau, o que infelizmente não era muito mais rápido que o lobo que corria o suficiente para fazer um jaguar parecer lento.

Monique não podia continuar com aquela corrida a noite inteira. A possibilidade da falta de gasolina, de o motor pifar com o esforço e outras variáveis estavam jogadas contra ela. Entrar pela campina estava fora de cogitação. Não se sabia se era possível despistar um lobisomem, isso se o carro não atolar ou bater em uma pedra ou árvore. E Monique não via nenhuma estrada sinuosa que ela poderia usar como desvio, entrando para sair de vista do lobo. Dois faróis vinham ao longe. Monique viu o caminhão se aproximando rapidamente. Era uma esperança. Se ela tivesse sorte, o caminhão distrairia o lobo e o atrasaria. Monique desacelerou o Landau, deixando o lobo correr quase ao seu lado, na mesma mão em que vinha o caminhão. Quando ele chegou, a mulher acelerou pensando ter deixando o lobo para trás, porém, o lobo pulou na capota do caminhão, correu por cima dele e pulou ao final para continuar perseguindo sua presa. O caminhoneiro piscou aturdido. Não sabia o que era aquele ponto negro acompanhando o carro até ver o bicho grande pulando. Seria mais uma de suas histórias de caminhoneiro em que ninguém acreditaria.

O lobo vinha correndo logo atrás do Landau. Parecia vir com mais fúria e disposição. Monique chegou a ver o brilho âmbar nos olhos dele pelo retrovisor dentro do carro.

- Perdão, Tales – ela disse e parou abruptamente, fazendo o lobo se chocar contra a traseira do veículo, pego de surpresa. Com o impacto o carro foi empurrado para frente, mesmo com os freios e o lobo rolou por cima, parando sobre o capô. Vendo o lombo do animal em frente ao pára-brisa, Monique girou o volante e acelerou novamente o carro que girou em uma meia volta. O lobo caiu na pista e Monique deu a ré, girou novamente com outro rangido de pneu e prosseguiu. O lobo se levantou e correu em seu encalço. Era um lobisomem. Além de prata pouca coisa o machucava.

Ele alcançou o carro que não chegava a sua velocidade máxima dentro de tão pouco tempo e investiu empurrando ele para a beira da estrada. Monique girou o volante para o lado, empurrando-o em contrapartida, mantendo o pé firme no acelerador. Surpreendentemente o lobo foi se afastando para a outra margem da pista, correndo paralelo ao carro. Monique foi dando espaço para um alívio significativo, pensando que ele tinha desistido e ido procurar outra presa, quando ele voltou e jogou seu lombo contra o carro. O Landau 1983 derrapou na pista e caiu ribanceira abaixo, capotando violentamente e explodindo por fim. O lobo, então, ficou parado, observando o espetáculo de chamas dominando a carcaça do veículo. Ele uivou um uivo desesperado e cheio de amargura que veio do fundo do seu ser e correu pela campina, deixando para trás sua antiga presa abatida, após descer a ribanceira. Correu com fúria e avidamente como se a ira incomensurável que sentia o movesse.

* * *

O extenso jardim da casa de campo de Ângelo Faustino estava ricamente decorado e iluminado com uma rede de pequenas luzes distribuídas nos arbustos que estavam podados de modo a formar paredes e arcos ao redor do espaço gramado cheio de mesas e cadeiras, onde pessoas elegantemente vestidas estavam sentadas, degustando de champanhe, vinho e outras bebidas que os garçons o serviam andando por eles, enquanto o jantar não era servido. Os que não estavam conversando, apreciavam a música ao vivo que a orquestra em um canto do jardim tocava. Um homem de terno e gravata borboleta se levanta, faz um gesto para a orquestra interromper a música e toca com um garfo em uma taça para chamar a atenção dos convidados dispersos.

- Atenção, por favor – ele fala, depois de pigarrear. Os convidados se voltam para ele, interessados. – Antes de qualquer coisa gostaria de agradecer a presença de todos nessa ocasião tão especial. Gostaria de dar um agradecimento especial ao Sr. Richard Vilar que tanto nos honrou com sua presença antes de sua viagem a Portugal. Que ele tenha uma boa viagem – ele disse olhando para outro homem de bigodes sentado quase sob um arco formado de galhos e folhas. Ele acenou educadamente em resposta. O primeiro, de nome Ângelo, faz uma pausa e olha em volta. As pessoas estavam olhando fixamente para ele, atentos ao que falava. Ele admirou pela enésima vez a beleza de seu jardim, se congratulando em silêncio por sua idéia brilhante de dar aquela festa ao ar livre, na sua chácara. E a escolha do dia não poderia ser mais perfeita. Estava uma noite clara, com um céu fervilhando de estrelas e uma esplêndida lua cheia coroando tudo. Ele continuou a falar – Como sabem vos convidei para esta singela festa entre amigos que organizei em minha casa para darmos boas vindas ao ilustre Dr. Ferraz que acabou de retornar ao país depois de uma estadia nos Estados Unidos. Dr. Ferraz, em nome de todos aqui gostaria de lhe felicitar por suas conquistas no exterior e que você e sua família tenham um excelente retorno.

Dr. Ferraz se levanta e acena para todos em volta que começam a aplaudi-lo. Quando se senta deixa escapar um suspiro de exasperação e por muito pouco não revira os olhos. Detestava gente falsa e bajuladora e Ângelo era o da pior estirpe. Ele não tinha dúvidas de que sua volta ao país natal depois de anos no exterior cuidando de seus negócios era algo a se celebrar, mas só tinha aceitado o pedido de Ângelo de fazer a festa para ele depois de dias de sua insistência e de sua esposa que achava que essa seria uma boa ocasião para rever antigos amigos e manter os velhos contatos, embora Ferraz não se sentisse nenhum pouco inclinado a falar com a maioria daquelas pessoas. Se com esse exibicionismo, Ângelo quisesse estreitar os laços entre ele e Ferraz favorecendo os seus negócios como obter uma maior compra dos produtos dos seus campos pela empresa de Ferraz, ele não conseguiria isso tão fácil.

- Então, espero que todos gostem – disse Ângelo ao final de seu discurso. Ele faz um sinal para a orquestra continuar a tocar e se senta. Tão logo a música começa a soar junto com um burburinho das conversas dos convidados, esperando o jantar, Ângelo ouviu um som ao longe, não baixo e distante o bastante para ele não ouvir com a música da orquestra. O som se repete um minuto depois, mais claro e alto. Parecia um uivo de um lobo ou coiote, o que Ângelo não entendia. Pelo que ele sabia, não havia desses animais pela região.

Uma voz masculina grita além dos jardins, provavelmente pedindo ajuda ou chamando por alguém, e em seguida houve o que parecia ser um tiro. Ângelo olhou em volta. Os convidados estavam distraídos conversando. Homens e mulheres de negócios, falando de suas últimas férias, das dificuldades do mercado ou da carga tributária alta. Parecia que ninguém tinha percebido o barulho, o que era muito bom. Essa festa era muito importante para Ângelo e nada poderia dar errado. Sua ascensão social estada dependendo disso. Ele gastou suas últimas economias para realizar essa festa com alguns dos maiores empresários da região que ele conhecia e para garantir que tudo ocorresse bem ele contratou meia dúzia de seguranças para ficarem alguns na entrada da chácara e outros circulando pelo perímetro da propriedade para evitar penetras e outras coisas indesejadas – apesar de a chácara ficar a milhas de distância da cidade mais próxima, longe de qualquer perturbação. Se os seguranças tiveram um problema, eles é que cuidassem disso.

- Algum problema, querido? – perguntou a esposa de Ângelo pondo sua mão sobre a dele ao perceber a tensão do marido.

- Não. Não é nada – ele disse e quando se vira, vê um segurança caminhando pelo jardim em sua direção. Ele mantinha o passo rápido e estava suado e um pouco despenteado. Estava claro que fosse o que fosse que ele queria, era de extrema importância, e andava tentando parecer calmo para não despertar pânico entre os convidados.

- Sr. Ângelo – ele disse quando chegou, falando ao pé do ouvido de Ângelo – Tire todos daqui, agora.

- O quê?!

- Por favor, senhor. Peça que todos entrem e com calma – a voz dele era fria e urgente – Temos um problema.

Ângelo estava prestes a falar irritado para ele cuidar disso sem incomodar a ele e ao outros da festa quando ele chegou. O imenso lobo pulou a grande cerca viva feita de arbustos nos fundos do jardim e correu para as mesas. Os gritos cortaram o ar e Ângelo viu, petrificado pela perplexidade, o lobo derrubar as mesas e cadeiras e atacar as pessoas que começaram a correr a esmo desesperadamente pelo jardim. Ângelo voltou a si com os gritos do segurança.

- Corram para a casa! Para dentro! – Ele sacou o revolver e hesitou tentando apontá-lo para a fera que se movia rapidamente pelo jardim. No caos que se seguiu ele poderia acertar o tiro nas pessoas que corriam em sua frente – Corram para casa!

O lobo pegou a perna de Dr. Ferraz e o jogou com força, fazendo-o cair morto atrás dos arbustos. O lobo deu outro salto e caiu sobre outro convidado, ele desceu seus dentes na garganta dele e o sangue jorrou pela grama aparada. Os que não estavam muito feridos, mortos ou em estado de choque corriam para a porta da casa de campo de Ângelo. Alguns tentam inutilmente passar pelas pelos muros de arbustos até serem alcançados pelo lobo que caia sobre cada um, feroz e impiedoso como um tornado.

Mesas, cadeiras, plantas, nada era obstáculo para ele, nem mesmo os tiros do segurança que atirava agora que a maioria dos vivos estava atrás dele, correndo para a porta. Porém, ele não tinha certeza se o estava atingindo. O lobo se movia agilmente pelo jardim devastado e escuro. Fios tinham se rompido e luzes tinham sido quebradas, somente a lua cheia era o que permitia maior visibilidade. O segurança fecha as portas da casa, trancando-as e se afasta, mandando que todos os que estavam em sua volta fizessem o mesmo. Eles correram pela casa de Ângelo se afastando da porta, de onde veio o barulho de instrumentos musicais abandonados pela orquestra sendo quebrados e um golpe forte que estremeceu a parede. Ângelo, o segurança e o resto dos convidados e empregados caminham até encontrar dois seguranças que vinham da outra direção.

- Todas as portas já estão fechadas. Ele não vai entrar – disse o primeiro, suspirando de cansaço.

- Onde estão os outros seguranças? – perguntou Ângelo.

Eles se entreolham.

- Estão mortos. Aquilo pegou todos – disse o outro – E os convidados? Estão todos aqui?

Mas não houve tempo para resposta. Sem qualquer sinal ou aviso, as portas duplas que dava para os jardins se rompem abertas em um último estrondo e o lobo entra.

* * *

Foi como emergir de um pântano profundo, vendo o mundo tomar forma ao poucos, conforme seus sentidos retornavam. Primeiro, ele sentiu a superfície fria e dura sobre a qual estava deitado. Quando o torpor do sono passa o bastante para sentir seus membros doloridos, ele tenta mover um braço ou uma perna, o que exigiu um esforço incomum como se seus músculos tivessem se convertido em pedras. Ele abre os olhos e a luminosidade o ofusca, fazendo-o instintivamente se virar de bruços para esconder seu rosto. Com dificuldade, ele tenta se levantar, se apoiando em seus braços. Sua cabeça estava a centímetros do chão quando ele tenta abrir os olhos novamente e na medida em que sua visão se acostumava com a luz, ele ia distinguindo os detalhes do piso.

Uma sensação viscose cobria sua pele e ao reunir suas forças para ficar de joelhos, ele percebeu que estava completamente nu, todo coberto de sangue no chão do que parecia ser um quarto ou uma sala devastada. Rastros de sangue salpicavam as paredes e o piso, pedaços de madeira estavam espalhados e uma fria brisa matutina adentrava pela janela de vidros quebrados, esvoaçando os restos pendurados de uma cortina. Ele como que se arrasta até uma cômoda quebrada e se apoiando nela, Tales se põe de pé. Ele se cobriu com a outra parte da cortina que estava caída e se aproxima de uma abertura na parede onde estava a porta antes de ser arrancada. Ele saiu para um corredor no mesmo estado de destruição em que estava o quarto onde ele acordou.

Mais sangue estava espalhado e Tales viu, horrorizado, membros decepados de pessoas jogados por todos os lados. Aquilo teria feito outra pessoa vomitar, mas Tales já estava demasiadamente nauseado para sentir mais alguma coisa. Com uma mão se apoiando na parede e com a outra segurando a cortina ao redor da cintura, ele caminha divagar, um passo após o outro, se desviando dos destroços e corpos ensangüentados. Trechos da noite passada voltaram como lembranças de um sonho antigo. Ele não conseguia se recordar do que se passou depois que sua mãe o deixou amarrado em uma árvore, a não ser de um carro explodindo em chamas e gritos. Tales percorreu a casa mais um pouco, não encontrando um lugar que estivesse intacto até encontrar uma suíte, cuja porta estava aberta e com marcas de garras de cima a baixo. Ele se limpa do sangue rapidamente no banheiro da suíte – constatando que todo aquele sangue não era dele, já que não tinha nenhum ferimento grave – e consegui resgatar algumas peças de roupa no guarda-roupa caído para vestir.

As roupas eram de alguém mais velho e um pouco mais gordo que ele, mas ele não se importava, nem mesmo a idéia de está roubando o incomodava. Tudo parecia estranha e distante, como um pesadelo do qual ele não sabia se acordaria. Tales saiu da suíte, seguindo na direção em que sentia uma leve brisa soprando e encontra as portas arrebentadas do jardim, que antes deveria ter sido até bonito. Havia uma cadeia de arbustos altos formando cercas-vivas, delimitando um grande espaço em formato retangular e dentro tinha outras árvores formando arcos e colunas, cheios de pequenas lâmpadas. Mas agora estava transformado em um cenário de calamidade e carnificina, assim como o interior da casa. Mesas e cadeiras aos pedaços se espalhavam junto com os corpos pelo ambiente. Os cacos de taças e garrafas de champanhe estalavam sob os sapatos que Tales tinha pegado da suíte, enquanto ele caminhava até os fundos do jardim. Ele escala a cerca com dificuldade e desde pelo outro lado, quase caindo quando um dos galhos em que segurava quebra.

Atrás do muro de galhos e folhas, Tales se sentou no chão, um pouco melhor por não ter que olhar mais para aquela paisagem macabra de destruição e cadáveres. Mas ele estava longe do que seria estar bem. Estava em um lugar estranho, usando roupas que não eram dele, e no meio de pessoas que ele matou, em uma casa destroçada. Ele nem conseguia se lembrar de como tudo aconteceu durante a noite. Somente a fúria incontrolável e de borrões de imagens indistintas. Ele ficou se perguntando o que aquelas pessoas estavam fazendo. O que estariam festejando nesse jardim ao serem mortas pelo monstro em que ele havia se transformado. O monstro que tinha matado sua mãe. Apesar de ele não se lembrar nitidamente, ele sentia isso. Ele tinha matado a única família que ele possuía. A única pessoa que se importava com ele. Ela e várias outras pessoas que não mereciam o destino que tiveram. Mortos pelo monstro que estava dentro dele, esperando pela próxima lua para se libertar.

Ele olhou para as próprias mãos, se sentindo estranho. Ele não era o mesmo. Não era sequer um ser humano. Tales sentia como se sua vida tivesse sido uma mentira. Tivesse sido um erro que traria conseqüências letais para todos os que estiverem por perto. Como ele poderia viver daquela forma? Quantos mais poderiam morrer? Talvez viver fosse um direito caro demais para ele reivindicar para si. Tales se levantou, uma decisão difícil pairando sobre ele, e cominha pela planície. O sol ainda estava baixo no céu e sua luz era suave. Devia está no início da manhã. O dia estava só começando, quando Tales foi embora, as escolhas de vida e morte à sua frente.

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Tema: Licantropia.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 30/07/2014
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