O CATAVENTO

O CATAVENTO

O Acácio era um homem nem novo nem velho. Tinha aquela idade em que já não apreciava aventuras inúteis, e a noite já não o encantava senão no recanto do lar com a lareira acesa e a cochilar no bom banco preguiceiro após duas conchas de caldo quente do pote, e de umas batatinhas com grelos estrugidos no belo azeite da almotelia, sempre cheia desse ouro líquido saido das suas próprias mãos no varejo da azeitona, na apanha, e de novo na azenha, a vigiar o peso dos cestos e o seu resultado em almudes brutos, e só líquidos após a maquia dos mestres azinheiros.

Nessa hora pensava nesse banco vazio, nessa lareira coração do lar, agora mortiça por sua falta, e que falta lhe fazia! Mas o doutor tinha destas coiosas. Numa noite assim, era de loucos, andar ao relento agreste por esses caminhos de Deus ou do Diabo. Claro que ia pregar-lhe um sermão, e já o tinha engatilhado para disparar no encontro, mas a fidelidade, e vá lá, o amor que lhe tinha porque o viu crescer, obrigavam-no a ir contra ele próprio e agir como "marionete" nas mãos do doutor novo. Arrepelava-se, praguejava, mas lá ia ao encontro das vontades de quem o sabia amigo, fiel e discrero.

Na Lapa do Cruzeiro, uma laje imensa abrigava o Faísca, cavalo nervoso, mas afeito ao dono e ao Acácio. Embora tivesse autmóvel o doutor gostava de montar. Aquele aparato da bota alta, esporas, boné inglês, pingalim, luvas, e um porte de garbo, dava-lhe uma especial atenção do olhar feminino. O masculino prendia-se mais ao cavalo, esbelto, nervoso e elegante. O resultado dos olhares era o de uma bela e fidalga figura animando as gentes destas ruas pobres de aldeias sujas e de casas sem reboco e telha vã, onde entrava como o vento; sem licença.

Entretanto na cidade invicta o doutor velho, como lhe chamavam na aldeia, tinha a sua vida clínica, social, política e mundana, plena de solicitações. Só lá pela vindima, na safra da azeitona, ou por cicunstâncias fortuitas deixava o Porto, os seus doentes, os amigos, a mulher, e a amiga se a tinha, para rumar ao Alto Douro por esse caminho de ferro e encanto traçado a braço, pá, picareta e dinamite. Na Régua o doutor júnior esperava-o no velho Ford V8.

Na aldeia o jovem médico exercia uma clínica missionária, pioneira, longe da abastada burguesia da cidade, dos barões e dos comendadores, embora bairros pobres fossem também clientes gratos ao velho doutor, criado nos ideais da cidadania republicana e da filantropia generosa. Um herdeiro e continuador do seu proselitismo seria a sua íntima vontade, mas outra vontade, outra geração movia o herdeiro.

Era aqui nestas serranias que uma nova ideia de liberdade e cruzada encantava o o jovem médico amante de outra paisagem, de outra natureza mais rural e humana. O mundano da cidade incomodava-o, irritava-o. A ciência médica parecia-lhe ter um lugar mais urgente junto desta gente pobre, na terra de seus avós maternos, onde por isso se erguia a sua Casa do Vale, coração de um dos mais abastados casais da terra, a par do casal do primo padre Afonso e do rival Taborda.

Rendia-se a estes horizontes largos, a estas montanhas com o céu mais perto, e a natureza aberta, calada, exposta ao silêncio mlancólico do entardecer, ou á doce melodia das manhãs deste Goudim, baptizado por celtas, ou godos e envolto por vezes na poesia imanente tanto da natureza como da sua própria de médico, poeta e curador de almas e de gentes. O seu espírito generoso e alegre entregava-se à vida, à família e á clínica dos pobres, que lhe não dava proventos, mas lhe fornecia matéria humana com que moldava a sua fé no Homem, feita de sonhos de coragem e amor, tudo servido pelo instrumento da ciência médica que jurou servir. Vivia intensamente a vida como se ela fosse um poema vivo, numa entrega permanente, numa aventura. Esse encanto mágico essa fé, essa força cativante rendia-lhe a simpatia e o agrado das gentes do povo, e certo orgulho até neste afinal de contas conterrâneo. Inimigos teria mas não eram do povo. O Taborda e o melífluo primo da Granja, rendian-lhe homenagem mas com reserva mental.

O Acácio esse era fiel, hoje nem ia cear. O doutor esperaria por ele como combinado junto às alminhas do cruzamento de Arcendo pelas onze desta noite prenunciada, e tremia antes da hora. Porque tinha de ser a essa hora? Este doutor é doido! Que idea! A noite estava uma ameaça, negra como tição, e ele não era um bom cristão. Pecados não tinha grandes, não senhor, mas alguns pequenos fossem eles podiam incomodar em noites propícias á sua flutuação na consciência. E é isto que o doutor gosta. Faz de propósito e depois brinca. Sabe como eu sou e explora-me, mas vai ver, vou-lhas cantar. Resmungando e insultando o burrito ensonado, colocava-lhe a albarda, apertava-lhe a cilha e dava-lhe umas palmadinhas na garupa para o animar e despertar, quando ele é quem precisava desses mimos. Tinha pena do burro,porque ele era o mais inocente destas andanças. Dalí teria ainda de ir até à Lapa do Cruzeiro, arrear o Faísca, cavalo fino, mas habituado a ser alertado a desoras. E lá foi inquieto a praguejar e a incitar o burro a caminho da Lapa, onde o Faísca ruminava a esta hora a cevada da sua manjedoura fidalga. Arrear o Faísca não seria tarefa difícil. Estava prático no animal e na função e era portador da lanterna envidraçada, de pavio de azeite, pendurada do burro e que só usou no escuro da Lapa do Cruzeiro, uma quase caverna, mas um lux+ cenário que via duas vezes por dia há já trinta anos bem medidos. Era quse íntimo com os pássaros, os coelhos, as raposas, e outra fauna já amiga, com quem cruzava diáriamente. E então as arvores! Os muros! Os arbustos! Tudo conhecia em pormenor, até sabia as horas em que nos regos a água corria, e quando secava, e ainda as horas em que as aves cantam e quem era o dono de cada melodia. Conhecia quem por ele passava há já muitos anos, homens e mulheres, e o nome dos filhos. Pisou cada palmo deste chão-caminho, aqui arenoso, ali pedregoso, além poeirento ou enlameado, e até calcetado, digo lageado pelos antigos romanos segundo o doutor. Conhecia-lhe o cheiro das manhãs de sol e das tardes de frio. Já lá entornara certa carga a mais tomada na tasca do Ananias, que é paredes meias com os CTT. Se o correio atrasa há um certo risco de tomar ao tempo mais dois ou três copos.

Entretanto ia já projectando e iluminando na memória o percurso até ás alminhas; mas alguns pontos surgiam-lhe escuros. O pinhal do corgo antes de Arcendo, denso e temeroso não o assustava, mas em caindo a noite já o respeitava. A quadrilha do Cavalaria, era já passado, mas deixara rasto de lenda por estes povoados e caminhos. Arcendo teve os seus partidários, hoje descendentes, e que se saiba são hoje gente chegada às autoridades. Lá os figados dessa gente serão os mesmos mas os tempos não. Ao lado da autoridade ainda mandam, mas dentro da lei e da ordem. O Acácio não era um grande adepto da lei e da ordem vigentes, nem da Igreija, melhor dizendo dos padres, mas tinha os seus temores e receios talvez por isso. Pensamentos da noite, não são os do dia. Preferia-os claros, límpidos, naturais, mais chegados à felicidade da luz diurna. Vinham-lhe á mente a mulher e os filhos. Já ia nos cinco, e não sei, não sei, mas todos se vão criando, melhor ou pior, na graça do Senhor. Meeiro do casal do doutor, e com o soldo dos CTT, a vida não era das piores. Assim, escrutinando a vida, chegou á Lapa do Cruzeiro. Ao entrar o faísca resfolegou, agitou-se e ergueu-se presto. Era vivo sereno, atento e dócil para o tratador, mas nervoso, dinâmico e de resposta fiel, rápida e segura ao cavaleiro, sendo ele o doutor.

O burrito de sua parte era humilde, pacato, temeroso, teimoso, prosaico e zeloso na sua natureza e missão de burro de carga, sem correrias, galopes e trotes mais próprios à nobreza do seu companheiro de outra estirpe e dono. Defeitos e qualidades até pareciam as do nosso Acácio. Talvez o Acácio fosse mais racional que o burro, mas não conhecemos exactamente a mente deste ser discreto. Ambos cumpriam com zelo, com a diferença de que o Acácio contestava o amo, e praguejava muito, mas o efeito final era semelhante; cumpria-se o tento ou a loucura de dos amos.

Faísca e Acácio partiram da Lapa já era a noite um breu, fendida ao longe por cordões de luz que uniam o céu e a terra e defeniam num piscar de olhos a linha do horizonte tranmontano. Soprava já um vento de ameaça que acordava os pinheiros da sua rigidez de "pinus erectos" para um leve balanço das copas, produzindo um som de fundo, cadente e ululante a envolver o trote e o passo deste vulto de cavalo e homem irmanados aqui, na História, e na arte, como figuras imortais. O Acácio era o mais mortal do seres, como seu burro, aliás, mas este com mais sorte esta noite: Quase o invejava pelo abrigo, e pela palha quente onde dormia a esta hora. A corajem não era uma virtude do Acácio, mas superava a sua falta com as pragas que ia rogando à sorte e ao doutor. O Faísca farejava a procela, mas era mais temerário que o tratador e não rejeitava missão; cumpria, não como o burro, capaz de especar as patas como estacas e recusar caminho. Teimosia de burro ou senso irracional?

Após atravessar a frescura de um souto, o caminho erguia-se em moderada subida entre terrenos mais humanizados pelo cultivo e as vinhas. A cabo do povo no seu alto bruxuleava mortiça a luz de umas alminhas, alumiando um santinho pasmado e sofredor, pintado toscamente em tábua de um azul esmaecido pela intempérie. Como uma mini capelinha estas alminhas eram obra em cantaria de um nicho, encimada por cruz de pedra, e fechada por grade de ferro pintada de cor que seria verde antes da ferugem. Um marco miliário na geografia das almas vivas nestes caminhos comuns às outras almas mortas, penantes e errantes em mundos paralelos, mas que em certas conjunções ou cruzamentos se encontram num só mundo e Deus nos livre de tais encontros. O Acácio já ouviu como todos nós o relato de fenómenos que arrepiam, mas diz que não acredita , proclama pelo menos uma convicção que é mais garganta do que coração. É um ateu crédulo.

Nestas alminhas de Arcendo velando a noite com a ténue luz de uma candeia de azeite, nunca extinta, como a fé de quem lá vive e a alimenta com a luz dos mortos, estará se Deus quiser o doutor para montar o Faíscxa e injectar no Acácio uma dose bastante de corajem para um regresso iluminado a relâmpagos, e corrido a ventos,rajadas, silvos e estrépitos. Arrepios percorriam a espinha deste Sancho Pança e contagiavam o Faísca, arrepiando-lhe a garupa, inquietando-lhe a atitude em menções de fuga, em trejeitos de medo. Quase um pânico apoderou-se do Acácio, quando uma súbita rajada esvoaçou uma mancha negra que apagou as alminha.

O doutor emvolto em largo capote alentejano surgira do nada e postava-se sereno junto a essa luz dos caminhos. Nada de sobrenatural a temer, apenas o doutor em carne e osso, que sibilou de forma indistinta dos som das aves nocturnas, sinal-senha que o Faísca bem distinguia, serenando de imediato, agora seguro da missão até aqui incerta. O Acácio como ser humano criador de imagens demorou um pouco mais a dissolver a esvoaçante sombra negra de alma penada ou diabólica e de terror tomado especou hirto até que a voz incisiva do amo desfez a petrificada figura deste pobre mortal. Desperto do transe do sobrenatural, ante o sorriso irónico e bem real do patrão, recuperou a sua atitude de resmungão, praguejante e crítico severo do doutor e suas temeridades. Soltou-se-lhe a língua travada de medo, e insultou-o naquele seu geito próprio, misto de ira e amizade que não feria o doutor, antes o delíciava.

- O Senhor é doido e quer me pôr a mim! Tenha juízo que já tem idade para isso. O filho da puta do Taborda, bem me enche os ouvidos.Eu é que sou um burro cego e e surdo. Isto é la noite para um cristão se aventurar!

-Temos é de caminhar e depressa, isto promete!

-Mas quem sabe o que nos sai ao caminho? Se o Senhor não tem medo devia pelo menos ter respeito. Olhe que eu já ouvi contar coisas de varar um homem.Sou eu que lho digo. Olhe o valentão do David,aqui em Arcendo, mal sai da venda do Tobias logo vê uma luz de fogo ao alto do caminho. Era valente, era! Não recuou, mas na cruz dos caminhos uma voz dos infernos pô-lo surdo, e um clarão com as cores do arco-íris fê-lo cego. Só sabe que acordou num silvado junto à Casa Preta.

- Acreditas? Não estaria antes a encobrir a bebedeira?

- Não acredita? Eu não sei, mas que nunca mais foi homem, não foi! Parece que nem vê a gente! Ficou assombrado. Deus nos livre! Até vai à missa, onde nunca o via! Coitado, quem o viu e quem o vê!

- Òh Acácio, mas não se dizia que o David tinha muito serviço na Igreja, nas capelas, e até na residência do prior de Arcendo? E não diziam ainda que a afilhada do prior até lhe dava mais serviço do que aquele que o prior encomendava?

- Lá está o Senhor, a botar pr`o mal. O que a Alzira lhe dava não sei. Sei que via o David neste caminho a cada passo; é verdade. Da fama não se livra. Por mim não ponho as mãos no fogo nem por ele nem pela- beata fingida.

- Ó Acácio, não terá o senhor prior feito aliança com certos poderes ocultos, para ti e para mim, com os quais comungava a vontade de afastar o David das obras nas casas pias.

- Mas que vem ao caso? O Senhor só acredita no que vê. E então não vê, o que era o David e o que é! O Senhor é mais hereje do que eu, a sua ciência de doutor pode servir ao corpo, mas a gente tem alma, e se morre o corpo ela há-de ficar por aí nalgum lugar. As almas penadas e as danadas andam por aí, têm muitas figuras, até santos parecem. Há horas boas e más, e sítios, mas o senhor não escolhe. Deus o acompanhe e a mim nesta hora.

O silêncio seguiu-se a estas palavras, e o pensamento embrenhou-se nelas e na mata, onde o vento uivava do tom cavo, aos agudos silvos sibilantes, cessando em súbitos silêncios, para ganhar de novo folgo e voltar numa crescente fúria. Nesses breves silêncios negros, ao guincho trémulo da coruja respondia o pio constante do mocho, perseguindo e inquietando o Acácio, e irritando o doutor. Grossos e espaçados pingos de chuva prenunciavam a vanguarda da borrasca. Logo se soltou um vento em torvelinho erguendo as bandas do capote alentejano do doutor, e contorcendo as varetas ao sombreiro do Acácio. Era um vento morno que soprava, portador de grossas bagas de água, que iniciavam um chuveiro crescente. De súbito o clarão intenso de um azul eléctrico e um tremendo estoiro de seguida, empinou o Faísca de susto quase derrubando o cavaleiro.

O Acácio ajoelhou-se, ergueu as mãos ao céu cruel, e evocou os poderes de Santa Bàrbara numa ladaínha murmurada com fé e medo:

Santa Bárbara bendita

Que no céu estais escrita

Com papel e água benta

Livrai-nos desta tormrenta

Mas a santa parecia indiferente ou impotente, e em resposta, clarões sucessivo tornaram a noite entrecortada em dia de luz azulada, espectral, emanada de ramalhetes eléctricos, fulgurantes, quebrados e fulminantes a fender o céu e a terra. A chuva rompia como o ímpeto de um mar que se abatesse em vagas furosas e impiedosas. Roncos de leão ribombavam em sucessivos ecos que se perdiam no vale do Douro e lá para os planaltos serranos das terras do Demo.

- Ai meus ricos filhos que não vos vejo mais! Valei-me minha Nossa Senhora!

O doutor acalmava o cavalo com palmadas e afagos na garupa, enquanto aos gritos para ser ouvido, incitava o Acácio a caminhar célere para acompanhar o trote mais lesto que imprimia ao passo do cavalo.

- Vamos Acácio, deixa-te de lamúrias e caminha.Isto não está para amainar e Gouvim é perto. Anima-te homem! Dos fracos não reza a história! Anda! Força nas pernas e mais nessa cabeça! Há que pensar que é melhor andar depressa do que esperar pela divina providência.

Se tem ficado lá em Vila Sâ, na casa da sua sogra é que tinha juízo! Não tem lá o Acácio pró o aturar, não é?

Falavam berrando entre o barulho da cachoada da chuva e o ribombar dos trovões assanhados.

- Nunca apanhaste uma destas trovoadas nas tuas rondas de carteiro?

- Já. Muitas, mas de dia, e nada disto, minha Nossa Senhora.

- Dos Aflitos, que é a que te servia agora.

Entretanto ultrapassada a mata mais fechada, e o corgo esconso e beceiro da Levada, o caminho suavizava e o horizonte alargava-se. Algum ânimo invadiu o Acácio e o doutor, que também ele escondia algum temor a fim de não alquebrar o ânimo do seu caseiro já de si temeroso. Chegados às Lameiras, pertença já da freguesia, o vento pareceu quebrar ligeiramente a sua fúria, os sopros espaçaram um pouco, mantendo-se a onda de chuva copiosa.

Nas Lameiras um souto com majestosos castanheiros de largas e frondosas copas, convidava os caminhantes a abrigar-se; e o Acácio sabia de tocas em em velhos castanheiros, onde um homem cabia á vontade, imune às tormentas de Inverno ou aos rigores do estio. Correu portanto para um tal ninho, mas o doutor atalhou-o firme:

- Nem penses abrigar-te aí. Nunca em hora de trovoada, as árvores são bom abrigo, e menos ainda grandes castanheiros, onde um bom abrigo pode ser a cova de um homem. Demais não é hora de parar. Vamos em frente, anda!

- Lá isso é verdade, mas é uma tentação. Eu sei que o Repolho meu vizinho, ficou leso de um lado e foi aqui nas Lameiras, a gente nem se lembra nos apertos, mas se o Diabo anda á solta, realmente é melhor não ceder a tentaçoes. Prá frente é que é o caminho.

Dito isto um forte estrépito, de relâmpago que os cegou e um estrondo de trovão brutal, deixou no ar um forte cheiro a lenha queimada.e uma grossa ramada da arvore de grande porte jazia fumegante no caminho. Ambos sentiram e pensaram num segundo com uma forte comoção comum como a vida é e não é num só segundo. Aqui o Acácio ajoelhou de novo na lama, juntou as mãos em prece e pediu misericórdia ao divino:

- Ai meus ricos filhinhos, deixai-me ainda vê-los, meu Deus! E prosseguiu; - Pai Nosso que estais no céu... E lembrando-se da sua Maria, evocou a que está no céu; - Avé Maria cheia de graça...

O doutor exasperado rodopiava no cavalo em volta do orador petrificado de medo, e mergulhado no transe da oração. Não sendo ateu o doutor acreditava no entanto que Deus deve ser ajudado pelos crentes e se havia pecados a penitência estava a ser cruel e assustadora. Era portanto melhor caminhar com fé, do que rezar parado. Então desmontou ergueu o Acácio à força e empurrou-o em frente.Zangado o Acácio ripostou:

- Olhe que os pecados não são meus o senhor é quem mais peca por não crer em Deus.

- Olha que não Acácio. Só que Deus entende-me. Falo-lhe talvez noutra linguagem. Tu não vais torcerce-lhe os desígneos, com as tuas preces, mas podes se te mexeres rápido estares na protecção do deuses do lar em dez minutos. Vamos!

O Acácio acelerou o passo, mas tentava de novo em murmúrios surdos a intervenção de Santa Bárbara. Talvez por terem entrado na jurisdição da padroeira, a santa que para quem nela crê faz milagre, aplacou a tempestade, amainando-lhe os ímpetos, moderando os ventos e a chuva, empurrando-a para paragens mais a sul, onde esperamos não haja mortais ao relento como estes. E havendo que Santa Bárbara os proteja, se por lá tiver poderes, se não, que lhes valha Deus, que esta tormenta é do Demónio. Por mim velo por este par que conduzi de Arcendo a Goudim a salvo da fúrias das forças naturais, que de outras não diria ser capaz.

Finalmente á porta de casa o Acácio benzeu-se.

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo pronúnciou o Acácio persignando-se e entrando em casa ansioso.

- Para semprre seja louvado respondeu-lhe o Doutor para ele não pensar que era um radical ateu e um ingrato.

Penetrando no silêncio profundo e negro da paz e da bonança, que sobrou dos sibilantes ventos e trovões, do ranger de portas e janelas e do rugir das rajadas nas vielas, apenas soava agora o trote metálico do cascos ferrados do Faísca. Um eco estranho incomodava o cavaleiro, a sua terra familiar, íntima surgia-lhe espectral, um azul electrico parecia colorar o negro da noite. Impressões! Rondava a meia-noite. Quem não dorme? Talvez só o lobisomem! Haverá sempre alguém a presumir ouvi-lo e vê-lo por frestas da insónia doentia, e tomá-lo a ele pelo mito.

Recolhido o Acácio, o doutor, agora sózinho meditava. Longinquos clarões, recortavam lá no alto de Palhais a capela da santa, "Pára- Raios" dos fiéis, e o cemitèrio, onde os ciprestes apontavam ás almas, como torres góticas, o caminho do céu. Junto a essa capela, sobre o vale do rio, gostaria de repousar eternamente no dia que lhe pertencer deixar a vida. Pensamento breve sublinhado pelo pio da coruja, que parecia sempre pronta a adivinhar estados de alma. As aves nocturnas têm ligações profundas a outros mundos.

A Casa do Vale, a sua casa, via-a como se de dia fosse. Tantas memórias de criança, de jovem, e de homem feito, se lhe apegavam a este casarão! Sem ele seria como um viajante sem bússula. Aqui sentia a segurança de um senhor feudal em seu castelo sem muralhas nem guardas, mas de grossas paredes, escadarias, portas e portões; a Casa do Vale era a sua alma. A meio do casarão junto ao mirante, a alta claraboia rematava no catavento em ferro encimado pelo galo ferrugentomas e altivo qual atalaia mirando os horizontes. O salão velho, amplo soalho de castanho eterno era a sala de visitas dos jornaleiros. O movimento agrícola aí decorria porque aí em divisões ao fundo se guardavam alfaias, caixas do azeite, latões de almude e cântaros, tudo fechado a sete chaves. Neste salão velho sem forro, nas grossas traves de castanheiro, pendurava-se o porco após as sua morte celebrada em festa e continuada na cirurgia perita do Zé da Cacilda, que as mulheres esperavam com largos alguidares para tratar as carnes. A bexiga era entrgue à canalha atestada de ar, para a lúdica função do futebol.

Um perito como este Zé da Cacilda só tinha visto na faculdade de medicina em aula de anatomia. Ocorreu-lhe o dito popular "se queres ver o teu corpo mata o teu porco". Nestas ocasiões o salão rangia ao peso do povo, que o povo surgia nesta hora, para ajudar, empatar, comer e conversar. Desde criança se lembra deste ranger do salão, que não é portanto produto da idade.

Voltado ao norte, donde vinha em solitário trote, este salão parecia a popa desta nau que era o casarão. O porão por baixo abrigava a adega, onde enormes toneis ficavam ainda assim bem abaixo do teto, porque o pé alto era mesmo assim.

Seguia-se á adega a cavalariça do Faísca. Aí cessou a rememoração do doutor e o trote, tinha chegado, desmontou, abriu a pesada porta, leve do azeite que lhe untava os gonzos e aliviou a montada da pesada sela.Palha seca e manjedoura farta aguardavam o cavalo, que deixou com afagos e palavras de gratidão e elogio. O animal entendia. Entre a cavalariça e a tulha erguia-se a larga escadaria interior talhada em blocos de granito, e acedendo ao corredor de calçada tosca que ligava a saleta do escritório da contabilidade agrícola, até á adega passando pela cozinha velha, negra de fumos, onde se curtia o fumeiro pendurado no caniço sobre a lareira, e onde decorriam os serões; um coração da casa.

As esporas tilintavam no granito. Aos primeiros passos uma revoada de morcegos esvoaçou sem nexo, ante o isqueiro de gsolina á falta de lanterna, mas com luz bastante para quem conhecia os cantos á casa. Um susto este bando negro de morcegos, se não fora sabido serem os ditos, moradores antigos nos escanos esburacados pelo salitre. Deixá-los morar, pensava o doutor; limpam a casa de insectos e vermes, é largo o espaço, e as visitas não entram por aqui; dexa-os viver embora não sejam uma simpatia.

O corredor alargava-se logo a seguir á escada formando uma saleta de penumbra fria própria para albergar as caixas de madeira onde jaziam presuntos mergulhados em sal, depois de terem passado pelo fumo curativo na lareira da cozinha velha. O chão desta área velha era de terra batida e calçada, excepto o escritório, onde se pisa um soalho de esfregar. No resto o trânsito a que se destina a não mais obriga. Nem sequer a luz eléctrica farol recente da civilização merece descer a esta velha ala, embora ilumune já a outra burguesa e patronal. O doutor chegado á porta que separa e une estes dois mundos num só, acendeu o isqueiro para enxergar a fechadura, mas uma lufada de ar como se fora um sopro de alguém invisível, lançou de novo trevas com coincidentes guinchos e pios de corujas soando bem perto. Talvez as corujas farejem o azeite! È ouro e brilha, não só à vista humana e é às igrejas que as corujas vão beber esse ouro que ilumina os santos. Nova tentativa pemitiu ver a fechadura, colocar a chave, rodá-la três vezes, e fazê-la ranger nas dobradiças perras. O ruído de madeira seca misturou-se a outro metálico e estranho. O doutor subiu os quatro degraus que levavam ao piso superior desfez-se do capote chumbado de água, estendendo-o sobre a baloustrada do corrimão, abriu a porta do quarto rei desta casa, o quarto do pai, e acendeu a vela do castiçal colocado na mesinha de cabeceira. Não valia a pena ir ver os fusíveis do quadro eléctrico, a falta de corrente tinha concerteza origem na central do concelho, e só amanhã o Eurico, o electricista da Câmara, iria reparar a avaria, mas seria preciso telefonar do posto público para a Cãmara, porque ninguém iria tomar a iniciativa e o Eurico permaneceria no café a jogar bilhar ou sueca e só acabadas as partidas talvez se digna-se ir à cabine verificar a situação. E se na sede do concelho havia corrente, para que a queriam as aldeolas? Que esperem que eu já lá vou. Há ainda muitas candeias e azeite por essas terras e velas também não faltam.

Na comoda esquecido um pijama seco confortou o doutor. Deitou-se finalmente, soprou a vela mergulhando o quarto no negrume da noite, e nesse instante exacto um ruido rouco, rangente e sonoro trepassou o escuro e os seus sentidos cansados, erguendo-o num pulo de susto.

Que noite! Que noite! Acendeu a vela, saiu do quarto, foi ao salão velho, desceu a escadaria percorreu o corredor dos quartos, verificou a porta principal e nada. Voltou ao quarto disposto a ignorar; apagou a vela e, mal a soprou voltando ao escuro, novo rangido de ferros bem sonoro, nem o deixou deitar. Tinha de descobrir a origem deste ruido fantasma, e se não existem donde vem? Ou será que o Acácio tem razão? Andará por aí o capitão-mor com saudades do seu velho casarão? Gostava de o conhecer, mas se foi assassinado terá mau aspecto, ou mau espectro antes diria. Ainda lhe sobrava algum humor para opor ao medo sem sentido, ao terror que não o iria tomar assim tão fácil, embora já carregado de emoções fortes nessa noite. A sublinhar o peso da noite e salpicá-la de presságios os mochos e as corujas piavam entre os silêncios da madrugada. Eram familiares, mas agora pareciam participar de uma conjura. C`os diabos! Apenas espreitou da porta do quarto, e ante o escuro silêncio, encolheu os ombros, apagou a vela e deitou-se novamente.

Mal o tinha feito e o rouco rangido, ergueu-se mais ferrugento e violento do que antes, provocando-lhe um arrepio instintivo. Aqui ergueu-se com fúria e medo, acendeu a vela pela terceira vez e de impeto abriu a porta.

Silêncio negro, para além da mortiça aura de luz de uma vela bruxuleante, incapaz de explicar ruidos aterradores, apenas servindo para escurecer o mistério. O capote lançado na baloustrada tinha desaparecido . A lógica e a razão também vacilavam,as coisas perdiam sentido, mas o raciocínio enublado do doutor, ainda latente, foi de súbito iluminado pela claraboia, para onde ergueu os olhos e viu o impassível catavento, seta e galo apontando o caminho invisível do vento.

Nesse instante uma última rajada, cauda do ido temporal alado, girou o catavento e o ranger de ferrugem fez os olhos do doutor sorrir para o altivo galo empoleirado, frio,sereno e indiferente ao terror da noite e aos medos do amo, grato ao céu agora estrelado e revelador do terrível ruído.

Abriu os braços incrédulo perante o mistério anulado, e baixou-os com os olhos, para a humanizada atitude do capote de braços abertos ao fundo da escada imitando o gesto do dono, e explicando o restante do mistério.

Voltou ao quarto com um suspirio de alívio, deitou-se, e soprou a vela agora confiante. O galo do catavento tinha-se quedado enfim, a olhar viril e férreo para a direcção do vento morto, que lhe tirou a vida.

As corujas e os mochos calaram-se, perderam o pio, e no silêncio e paz o sono arrebatou-lhe finalmente as faculdades, como a um justo.

Paz á sua alma e não ao ao seu espírito que vive ainda neste conto e em mais inquietudes eternas.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 06/08/2014
Código do texto: T4912199
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