Sangue em aquarela

Ser ferido por alguém é pior sentimento que podemos experimentar, como um doce amargo, que no fim, deixa um azedume nos lábios de quem o prova. Nos sentimos como uma concha, na qual reside a mais bela pérola, que exposta ao predador, é devorada, deixando-nos em pedaços.

Nos recompomos, mas as falhas ficam evidentes, como as ranhuras de um vaso quebradiço, colado pedaço a pedaço, isso quando é possível juntar os estilhaços da própria alma. Homens, fazem isso conosco o tempo todo, e nós, pobres mulheres, inocentes, dadas a amores tolos e novelescos, deixamos nossos corações expostos, desprotegidos, prontos para estes predadores viris e opressores, e eles os tomam entre suas garras, tirando o suco de vida que há entre os dedos, em uma cena primorosa.

Nos ferimos, nos curamos, e vivemos com nossas cicatrizes, este é o ciclo interminável do crescimento, ou seria, do sofrimento?

Este sofrimento um dia cansa. Este choro solitário em noites frias, regados a vinho barato, enquanto assiste pela enésima vez o amor de muitos nas ruas, também cansa. Logo, vem a raiva, e todos os rostos que passam por você em uma dança interminável nas ruas, lhe parecem iguais, parecem sorrir às suas custas, eles zombam, eu sei. Os mesmos sorrisos debochados, e aquele cheiro de perfume barato insuportável e aquele gel rançoso no cabelo. Eram todos iguais, mesmos nos rostos desiguais. Os mesmos olhos cativantes, os lábios cínicos, e as vezes aquela expressão de um pensamento distante, sobre coisas que somente ele compreendia.

Mas aquele rosto estava morto. Apodrecendo em um caixão coberto de terra negra. Provavelmente seus únicos amantes e amigos, eram os vermes a acariciar o que restou da pele negra e ressecada. As mãos cruzadas ao peito, deveriam estar segurando o terço que a mãe religiosa lhe dera, que jura, veementemente, que eu o matei. Imenso perjúrio, eu diria, nem todas, tem a sorte de ter uma sogra primorosa. Que Deus a tenha.

Um dia a tempestade cessou em minhas ideias, e toda a calmaria novamente reinou. O dia novamente nasceu mais belo, sem as cores escuras das nuvens agourentas da chuva, e o horizonte ganhou novos tons através dos olhos de um pintor, que tece em suas telas, aquarelas suaves e vivas, explosões de vida e cor. E foi assim que o conheci, enquanto ele silenciosamente procurava a luz perfeita do sol, como um girassol que abre suas pétalas em busca de luz. Quando coloquei os olhos em um dos seus quadros, eram os mais belos traços, as mais belas cores.

Aquele coração haveria de ser meu.

Dia após dia eu observei, o pintor, absorto em suas criações, em um mundo que lhe pertencia apenas. As mãos queimadas pelo sol, faziam movimentos leves e circulares, traçavam céus, terras e mares. Corpos perfeitos, belezas extremas. Seus olhos eram rápidos e curiosos, um belo azul profundo e criativo. Os cabelos eram claros, mas estavam cobertos por uma boina preta, que o deixava com um aspecto curioso. Os punhos da blusa estavam dobrados até os cotovelos, manchados a muito tempo de variadas cores e tons.

O segui por várias tardes, vendo-o carregar os quadros ladeira acima, em uma rua estreita com calçamento de pedras lisas, pude ver seu ateliê, um pequenino casebre apertado entre dois outros edifícios. Os muitos quadros ficavam expostos a venda, muitos retravam cenas de nossa cidade, em momentos diferentes do dia, em muitos tons. Vidas em diferentes tons. O seguia por noites a fio, enquanto ele ouvia a música boemia dos bares noturnos. A cada passo, eu era seu fantasma apaixonado, seguindo um último resquício de vida, ou seja, um amor possível. Não tive coragem, ou oportunidade de revelar minhas intenções, pois na mesma noite o vi nos braços de outra. Entre beijos regados a álcool e caricias desmedidas, a morena de cabelos fartos e pele bronzeada o apertava contra os seios.

Algo novamente se quebrou em mim. Ouvi por um breve instante os estilhaços se espalharem, e então a raiva veio novamente.

Aguardei o raiar do dia, escondida nas sombras, esperei que meu amado finalmente deixa-se a alcova da rameira e partisse para seu ateliê. Não irei descrever aqui os pormenores do que realmente fiz, mas posso dizer que fora uma obra de arte digna de Da Vinci. Mas a tinta usada, era algo mais vivo, digamos assim, mais rubro, conferindo mais vida a imagem da mulher de cabelos fartos que pareciam nascer das chamas feitas de puro sangue.

O presentei com isto, afinal, eu lá também tinha os meus dotes artísticos.

E assim ninguém mais ouviu falar da jovem rameira que fora esquartejada e jogada nos córregos da cidade. Creio eu.

Deixei que seu coração aflito se acalma-se, e assim caminhei até o seu ateliê, lhe pedindo gentilmente que fizesse um retrato meu. Parecia perdido em seus próprios pensamentos, perdido em suas telas, em paisagens que somente ele compreendia, em pinceladas nervosas e expressivas. Afastou o cachimbo da boca, dando uma longa baforada, observando-me como a quem procura algo de belo para reproduzir, mas parecia decepcionado.

- Não irei pintar você, retrato aquilo que o meu coração ordena, desculpe-me...

Mais uma vez, meu artista havia me desapontado. Eu não era bela o suficiente para suas telas, meus traços eram simples, tortos e pálidos. Eu era uma mulher de olhos tristes e vagos, com uma vida vaga. O que teria a oferecer a as hábeis mãos divinas de um artista?

Mas aquele coração teria de ser meu...

E foi assim. Em uma luta sôfrega, que minha lamina atravessou a carne, o invólucro daquela alma pura, e finalmente ele me entregou o seu coração. Abriu-se como uma caixinha de música pulsante entre as minhas mãos, e a tinta divina rubra escorria entre os meus dedos.

Logo, fora uma sucessão de fatos, encontraram-me em meus aposentos, e os vários recipientes. Havia sim, um coração de poeta, outro de escritor, outro de escultor, e agora de um pintor, as belas artes estavam unidas, completas.

Ninguém há de entender o que fiz, a obra que realizei e a perfeição dos meus atos. Nem mesmo o médico que agora trata de meus ditos transtornos. Cara irmã, pergunto-lhe, todas as noites, quando virá me visitar? Quando irá me tirar dessa prisão de loucos?

Há poucas semanas, um paciente muito curioso chegou a clínica, chamado Van Gogh, não o vi ainda, pois encontro-me no isolamento. Mas dizem que suas obras são maravilhas aos olhos, espero que possa ver um dia.

Não esqueça de sua amada irmã.

Abraços

Camille.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 24/08/2014
Código do texto: T4935749
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