O colosso.

Os dois homens espreitavam a figura na distância. Cada passada da criatura fazia o pó se erguer em nuvens que dançando lentamente, criavam a ilusão de uma manada correndo entre as ervas longas de tons esmeralda. O som do caminhar da coisa reverberava no vale cercado por muralhas de granito, coroadas pelo branco gélido do inverno sempre reinante nos ninhos das águias, como as trombetas de uma tormenta no mar.

A gigantesca figura envergava uma complexa armadura de placas, onde após séculos, o musgo e a ruína da ferrugem acabaram por conferir o aspecto de uma escultura esquecida por uma cultura esmagada pelas rodas do tempo. Em suas mãos carregava um tronco de um altivo carvalho morto, que após tantas matanças, acabou por se tingir com as cores do rubro ferruginoso da seiva das vidas tomadas.

Lentamente, o monstro se aproximava das duas diminutas figuras deitadas sobre as sombras das ramagens vadias de uma pequena colina. A dupla era composta por um caçador vindo das tribos de pastores ao sul, já o outro, era um mercenário proveniente do outro lado do oceano.

O caçador perdeu seu povo durante um ataque da besta gigante e tendo o peito repleto de dor e desespero, se lançou em uma vendeta cujas chances de vitória eram quase nulas. Era apenas um garoto, que trazia consigo um arco feito com galhadas de cervos, cuja altura era duas vezes maior do que ele. Seus olhos cinzentos exsudavam ódio e determinação, dando a sua figura magra e acobreada, uma aura de fanatismo quase religioso.

O mercenário vestia um gibão de couro, parcialmente escondido pela cota de escamas prateadas, cheias de ranhuras ganhas em combates quase sem fim. Nas mãos, trazia um escudo de corpo, onde a figura de uma besta mágica começava a desaparecer sob as manchas do descaso, e um pesado martelo de guerra, em formato de cabeça humana. Seus olhos pretos nada diziam, apenas uma sensação de cansaço parecia fugir de sua face vincada e puída.

Os homens ficaram sob o regaço protetor da penumbra do mar de ramagens por longos minutos, eles estudaram a criatura, esperando o momento propício de atacar e quando ele se apresentou, ambos se ergueram e após o retesar do arco disparar uma seta sibilante em direção do gigante, a batalha teve início.

O projétil rasgou o céu frio com velocidade e então se chocou contra o corpanzil do alvo, gerando um som metálico e breve. Só então, o colosso notou a presença da dupla e um brado raivoso surgiu de sua fossa bucal, fazendo as aves escaparem na direção do firmamento topázio. O gigante passou a correr na direção dos homens, girando ameaçadoramente a árvore morta sobre sua cabeça.

Novas setas foram lançadas, inutilmente, contra as placas que recobriam o corpo titânico, enquanto sua sombra passava a eclipsar a luz do sol distante e indiferente. O colosso parecia uma montanha de aço e rancor, que em desembestada carreira, galgava centenas de metros a cada passada.

Assim que seus pés, maiores que casas, chegaram a tocar as bordas da colina, o velho mercenário golpeou um espigão que prendia um cordame camuflado pelo mato alto, fazendo com que ele se soltasse de sua prisão no solo, liberando um som de madeira estalando a algumas dezenas de metros.

Escondida, sob galhos secos de arbustos, uma enorme balista disparou um tronco afilado em direção do monstro. A madeira aguçada zumbiu no ar, como um inseto atarefado, e se chocou contra a enorme besta, a lançando no solo ao se encravar em seu flanco.

Uma espessa nuvem de pó e vegetação invadiu os pulmões dos dois homens, ao passo que roubava a luz de seus olhos por momentos. Mesmo cegos e com o ar a lhes faltar, ambos correram até a besta caída e se lançaram sobre ela, escalando suas enormes formas, que lentamente se erguiam do solo esmagado.

O colosso se debatia violentamente, tentando se livrar dos guerreiros, que como carrapatos, lentamente espalmavam seu caminho em direção da cabeça disforme do ser. A besta urrava de ódio e frustação, a cada novo metro vencido pela dupla em direção ao topo. Ela tentava os alcançar com suas enormes mãos, mas as duas figuras diminutas estavam protegidas em suas costas recobertas por metal e ramagens parasíticas.

Após uma hora de espasmos, urros e esforços quase sobre-humanos, o caçador e o mercenário palmilharam a nuca do gigante. Eles trabalhavam em conjunto, tentando encontras uma passagem entre o elmo de dimensões ciclópicas, para assim desferirem um golpe certeiro e final. O colosso, prevendo a ação, lançou suas mãos abertas contra os pequenos insetos em forma de homem, que tentavam trazer a obliteração até sua existência.

Os guerreiros olharam para as duas enormes garras que lentamente se aproximavam, trazendo consigo a destruição, e então, sem qualquer outra possibilidade, se lançaram no ar. O impacto do golpe rasgou o vale com um estrondo seco de metal, fazendo o gigante arquear ante seu poder.

Durante a queda, o caçador conseguiu se agarrar a uma peça da armadura da besta, postergando seu ocaso, no entanto, o velho apenas tombou até se tornar uma poça de metal e sangue sobre o piso verde do vale. Ao ver a carcaça do guerreiro, a besta de guerra ergueu um de seus pés e como uma rocha celeste, o lançou contra o cadáver, o tornando menos do que pó.

O medo dominou o jovem, mas sem outra possibilidade, ele novamente escalou a fera até chegar a sua nuca. Ao alcançar o lugar, se dirigiu na direção do elmo, mas desta vez, não tentava encontrar uma fenda, apenas corria ao seu redor até conseguir chegar ao que seria a face do ser colossal. O garoto saltou em direção dos olhos do titã, com uma grande faca entre os punhos, em um ato desesperado. Mas antes de tocar o alvo, foi abraçado pelo punho do monstro em forma de montanha e tudo escureceu ao seu redor.

***

O exército do imperador marchava em direção do vale proibido. Após uma onda de matança perpetrada pelo colosso que habitava o lugar, o governante finalmente lançou um ataque punitivo contra a lendária besta.

Lentamente as legiões, com suas pesadas armaduras, cavalos e armas de cerco, avançavam no mar de ervas, que se curvavam ante a brisa gélida soprada do cume das montanhas.

Na distância, a montanha viva se aproximava lentamente do numeroso exército, urrando quase que satisfeita. Em seu pescoço, carregava o corpo ressequido do caçador como um troféu, como um aviso.

Um aviso de que nenhum homem seria capaz de lhe enviar de volta ao Abismo, o lugar onde um dia, foi o único senhor.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 20/09/2014
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